01/11/14

FLORES DE HISPANHA, EXCELÊNCIAS DE PORTUGAL (X)

(continuação da IX parte)

EXCELÊNCIA V
O Bom Clima, Quanto Faz a Bondade da Terra, e Como Isto o Tem Portugal.

A melhor coisa que em qualquer terra pode haver é o bom clima, do qual dependem ser bons ou maus outros mais atributos, não somente pertencentes à mesma terra, como o caso dos frutos e outras coisas, mas também as qualidades dos homens, pois é certo que do tempero da terra toma o corpo seu temperamento, e as paixões do ânimo seguem o temperamento do corpo, como diz Galeano (a) num livro inteiro que sobre este assunto compôs. E quem haverá que fugindo do mau clima e natureza do monte Quimera de Farsela, dos montes Hefesto de Lisia, do Cofanto nos Bactrianos das terras de Media nos povos de Castia, nos confins da Pérsia, e em Suria do campo dos magalopoditanos, da ilha Hiera, uma das Eólias, do monte Teon, o Chema de Etiópia, do Etna da Sicília, de cujos grandes fogos e ardores estão cheias as histórias, não julgará logo quais serão as outras suas qualidades? Quem fugindo dos grandes frios do rito Tanais e da lagoa Meotis não dirá que aquela terra, por não ter coisa boa, é inabitável? (b) E deixadas aquelas partes tão remotas, há cá outras mais próximas às nossas, umas tão quentes que parece que de contínuo estão padecendo os ardores que iraram da terra, quando os poetas dizem (c) que Phaeton a abraçou; outras tão frias que é pouco dizer que levando ali vinho de outra parte se azeda logo, como se conta que sucedeu na Noruega. (d)

[(a) - Galen. m lib. quod animi mores;
(b) - Plin. nat. hist. lib. 2 c. 106 Fr. Hier. de Castro nas addiciones a Julian de Castillo lib. 1 discurs. 1 Joan Boem de morib. gent. lib. 3 cap. 1;
(c) - Ovid. metam 1 2;
(d) - Mariana histor. lib. 5 cap. 1;]


1. São tão maus estes extremos que certos gentios, moradores na terra que chama dos bacalhaus, que nos seus faltos ritos têm a opinião de que as almas dos bem-aventurados depois de saídas dos corpos vão viver em certas terras muito boas e temperadas, e a [alma] dos maus [vão] a outras de muito mau clima; (e) porque estes julgam que não pode dar-se maior prémio ao [homem] bom que uma terra de bons ares na qual habite, nem pior castigo ao [homem] mau que obrigá-lo a estar em terra de mau clima, pois é tão grande, que não somente os estrangeiros não podem sofrer tais rigores, mas também os naturais, que pelo costume pareceriam ter mais paciência para sofrê-los; e assim diz o Padre João de Mariana, (f) que uma das principais razões pela qual os Godos saíram para encontrar novas terras, foi por não poderem sofrer os excessivos frios das suas. Finalmente, tão má coisa é a terra de áspero clima que foi antiga opinião de alguns graves médicos (segundo refere o Doutor Juan Huarte de San Juan, (g) no seu curioso tratado de exame de engenhos) que todos os homens, que vivem em regiões destemperadas, estão actualmente enfermos, e com alguma lesão, ainda que por serem engendrados e nascidos nela, e não haver gozado de outra melhor temperança, não sentem o mal que padecem.
Nisto há muito que louvar por Portugal, porque seu céu é muito sereno e claro, os tempos muito aprazíveis, porque no inverno não há demasiado frio, e no verão os calores são moderados, e assim em todo o tempo são os dias salutíferos, e costuma dizer-se (principalmente de Lisboa) que nunca tem frio que não se resolva com o uso de uma capa de baeta, nem calores que obriguem a tirá-la.
Pois assim disse um romancista estrangeiro (a) ao referir esta cidade:

La clemencia de tu cielo
Es tal, que no se apreciben
En invierno, ni en verano
Con que poder resistirse.
Ni en invierno se permite
Mudar habito, ni hazer
Los fuegos a el convenibles.

Já o Padre Fr. Nicolau de Oliveira (b) dá a isto razão ao falar particularmente de Lisboa, e diz que Lisboa está quase no meio da zona temperada em 39º, sítio boníssimo, pois está onde nem a vizinhança do Sol pode acalorar com excesso, nem o seu afastamento esfria demasiado; de onde se infere que, estando Lisboa no meio da zona temperada, fica situada debaixo do signo de Aries, cujos efeitos são bem melhores que todos os dos outros signos, pois a sua natureza é gerar e produzir, e a dos outros destruir e corromper. [não confundir este tema com o do "horóscopo"; neste tempo, os signos são vistos como meras forças naturais que dispõe mais ou menos a certas características estáveis, e nada que tenha a ver com adivinhação ou previsão do futuro]. Isto que dizemos de Lisboa pode ser aplicado a todas as restantes terras de Portugal, das quais não falamos de modo especial, porque seria coisas infinita, contentando-nos com tocar somente a mencionada cidade de Lisboa, porque é a cabeça.
Também ajuda muito à boa temperança dos ares Portugal estar colocado junto ao mar, de donde no verão vem vêm ares frescos, e pelo inverno aquece. E não é pequena a prova do nosso intento o haver em muitas partes de Portugal, principalmente em Lisboa, grande abundância de rosas, e todo o género de flores pelo inverno, sem que haja rigor de frio que as ofenda, como costuma ser nas outras partes, do qual trataremos no próximo capítulo. (c) Finalmente, o clima em todo o Portugal é tão bom, os tempos tão temperados, os ares tão sãos, que a pior terra que em todo o Reino há é Castro Marim, para a qual desterram os mal-feitores por castigá-los, e nesta terra vive a gente muitos anos, e com tanta saúde que poucas vezes há enfermos, e é muito ordinário que as pessoas chegem aos noventa, e cem anos, e alguns mais. Tomara a outros reinos que a sua melhor terra fosse como a pior de Portugal.
Escreve Gaspar Estaço, (d) que falou com uma Filipa Martins, da paróquia de S. Vicente de Sousa, de 104 anos e meio, a qual disse que a sua mãe tinha vivido 105 anos, sua avó 115 e seu avô 135. E isto não deve parecer incrível, porque Plínio e Sabelico (e) contam que no tempo do imperador Vespaciano achou-se em Placência, cidade italiana, um homem de 131 anos, e em Arimino três de 137 cada; e anos depois D. Aleixo de Meneses, Arcebispo de Goa, na Índia, encontrou um homem de 138 anos, casado com uma mulher de 120, e havia 106 anos que estavam casados, como refere Fr. António de Gouveia no tratado que fez das jornadas que fez o dito Arcebispo. (f) Ainda de maior idade era um homem que estava em Dio, quando o Governador Nuno da Cunha tomou aquela cidade, e que se afirmava ter 335 anos, e não se sabe quanto viveu depois; e de muita mais idade foi João de Tampes, francês, que dizem ter vivido 370 anos, ainda que outros digam que não viveu mais de 160. (g)

[(b) - Fr. Nicolás grandesas de Lisboa trat. 4 c 1 e trat. 5 c. 6;
(c) - Cap. 2 Excel 1;
(d) - Estaço nas antiguidades de Portugal c. 27;
(e) -
Plin. lib 7 c. 49 Sabellic. Enn. 7 lib. 4 fol. 157;
(f) - Fr. Ant. de Gouvea lib. 2 cap. 13;
(g) - Duarte Nunes cron. de Dom Afonso Henriques Maris dal. 5 c. 1.

(continuação, XI parte)

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