20/10/14

FLORES DE HISPANHA, EXCELÊNCIAS DE PORTUGAL (III)

(continuação da II parte)


AO LEITOR

Não bastam a um Reino as heróicas virtudes dos seus naturais para ser famoso, caso lhe faltem escritores que as publiquem; porque a memória daquelas com o tempo (como tudo) acaba-se, e estes fazem com que viva externamente livre das leis do olvido; o qual por experiência vemos em muitas monarquias, que antigamente houve, e umas pelo cuidado que tiveram seus escritores, conservam até hoje sua fama, outras por esta falta estão tão esquecidas como se nunca tivessem sido. Entre todas as nações que padecem nestas partes, é a portuguesa tão pobre de crónicas antigas quão sobrada de insignes virtudes e gloriosas façanhas, de que muitos livros poderiam estar cheios: coisa que deu motivo ao grande historiador João de Barros a fazer uma exclamação muito grande; mas em que os portugueses mostram mais seu ânimo, e alcançarão o maior triunfo jamais visto, pois não satisfeitos com ganhar as admiráveis victorias de que as quatro partes do mundo são testemunho, triunfaram do tempo, e do olvido, mostrando em conservar sua fama sem escrituras, que não têm poder os anos para diminuir um pouco a glória, que lhes é devida. Pois considerando eu o proveito que se segue aos reinos com escrever-se deles, e deixando fazer algum serviço à minha pátria, usando nesta parte mais de ofício de estrangeiro que de condição portuguesa, quis sair com este tratado de suas Excelências, vendo que há quem diz que tanto serviram os autores romanos a sua cidade em escrever sobre as suas coisas, como Scevola, e os Décios em oferecer-se por ela a voluntários perigos. Bem sei que isto não irá com aquela elegância que deveria, mas não me parece que faço agravo à minha pátria, porque suas excelências são tão claras que não as poderá escurecer o mais nublado estilo, e basta que sirva meu propósito de mover a outros a que com mais levantado engenho façam o mesmo; porque o prémio que mais estimarei de meu trabalho será ver-me vencido por troco deste Reino ficar mais louvado e com o que se lhe deve mais engrandecido.

Para fazer esta obra consultei os autores possíveis, tudo o que digo é fundado nas suas autoridades, que vão alegadas o mais que pude, pretendi que fossem estrangeiros porque os naturais não pareçam suspeitos; contudo, muitos dos que alego são portugueses, por não poder ser menos, visto que estes tratam mais particularidades que servem ao meu intento do que os estrangeiros, que apenas tocam no geral, não falam: mas nem por isso terá menor crédito o que eu escrevo fundado neles, pois além de ter os seus escritos tão boa opinião de verdadeiros, que ninguém se atreva a dizer o contrário, é certo que os historiadores naturais merecem mais crédito no que toca às suas pátrias, que os estrangeiros. Se algum escritor achar que vou eu contra a sua opinião, no tem que incomodar-se quando eu na reprovação usar de bom termo e não fizer mais que dizer o que melhor me parece, cumprindo com a obrigação que cada um tem; contudo, poderá quem quiser contrariar o que digo, estando certo, que se suas razões me parecerem boas, não irei contestar se também não me lo parecerem assim, hei-de responder com a brevidade que convier estando algum, antes com muita alegria, porque não há coisa, que lhe dê maior, que tais competências entre curiosos.

Mormente, peço perdão aos que lerem, ou então emendem os erros que encontrarem fora de meus desejos, advertindo que encobri-los,e desculpar faltas de sábios, e o contrário de ignorantes; e quando em vinte e dois anos, que tenho somente de idade, dou princípio com este tratado a escrever, e sair à luz com outro de diversas matérias curiosas, razão parece que espere todo o favor possível.

A satisfação de um só ponto, em que poderá considerar-se alguma nota, quero dar aqui. Poderão dizer-me que sendo o título deste livro Flores de Espanha, Excelências de Portugal, não trato nele de algum outro reino de Espanha, senão em ordem a Portugal, e assim parece que não concorda o título com a matéria, e que poderia tirar-se o nome de Flores de Espanha, à qual, deixadas outras respostas, digo, que como Portugal é parte tão principal de Espanha, escrevendo eu as Excelências deste Reino, escrevi Flores de Espanha, e deste modo está muito bem o título, pois as Excelências de Portugal não há dúvida, que são Flores de Espanha.




(continuação, IVparte)

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