10/12/13

"SOBRE A TOLERÂNCIA"

 LIÇÃO XX
SOBRE A TOLERÂNCIA

 A Virtude da tolerância não é virtude por si mesma, mas parte da paciência, com a qual sofrem os vassalos os trabalhos que lhes motivam seus Príncipes, os súbditos os que lhes ocasionam seus superiores, os filhos os que lhes fazem seus pais, e finalmente os criados os que lhes granjeiam seus amos. O conselho é do famoso António Peres, que com os Príncipes se hão-de haver os inferiores em suas queixas, como os galões de pouco merecimento com damas grandes, de quem receberam alguma sem razão, que em só ver-lhe a cara dão sua queixa e lhes fazem o cargo só agravo; que com Reis não há que porfiar, senão sofrer, calar e retirar-se; porque é gente que se não vence senão fugindo, e deixando à natureza o juízo e satisfação, e a poucos a fortuna, que por tirana, e desconcertada, que é também a poucos, é verdugo da natureza, que em fim serva sua é. Não sofre ninguém por mais bem a cavalo, ou por mais alto, que se ache; porque com mais força tropeça, e caio mais forte, que o mais fraco. O concelho é de Séneca, que todo o homem sábio deve fugir à ira do mais poderoso, e procurar por todos os meios evitá-la: Sapiens numquam iram potentioris provocavit, imo declinavit. Louco é o que com o superior contende; porque aonde é seguro ser vencido, é loucura entrar na contenda; de que nos aconselham fugir os seguintes versos:

Contra maiorem nemo praesuinat honorem,
Nulli cum superis homini contendere fas est.
Pro jure hanc litem nemo probare velet.

Não menos excelente é o conselho de Epíteto, que dando regras para se tratarem os grandes, diz que quando falares a algum grande, imagina, que não o acharás em casa, ou que estará encerrado, ou que as portas não estarão abertas para ti, ou que te desprezará; e se cuidando tu isto, achares, que te importa que vás, convém, que também tenhas tolerância para tudo o que te poderá suceder, que não murmures em ti mesmo, e enfim, que não digas: Este homem se faz muito grande Senhor. Tal discurso pertence ao Povo, e não a ti, a quem não toca o por-lhe leis a teu modo, senão seguir as que eles te puserem; se os hás mister, busca-os, e se os não necessitas, venera-os, e respeita-os: para maior harmonia pôs Deus a desigualdade em todas as coisas, e não desaproves as obras de Deus. Se o grande for mau, reverencia-o como maior que a ti, a quem não pertenceu o julgá-lo, mas rogar a Deus por sua emenda, e tolera-o voluntario, para que assim te seja mais suave a dor, que te causa o seu desabrimento, ou a sua soberba; seguindo o conselho, que nos dois versos seguintes dá um poeta:

Ferre decet patientier onus, quod ferre necessum,
Qui jacet invitus, durius ille jacet.

Usa dos grandes, como usas do fogo; o fogo, que está muito distante, não aquenta; o que muito perto, queima; e o que está em proporção, sobre não queimar, aquenta. não te chegues tanto aos grandes, que te abrasem, que são como o Sol, que não permite vizinhanças; nem te afastes tanto, que te não possas valer do seu amparo, que são como a árvore, que não abriga os que se afastam do copado de seus ramos. Procura que estejam de ti a distância possível, ou pelo menos, que se te não avizinhem muito; foge de suas inimizades, trata de os ter benévolos, mas não amigos, que sua conversação não é companhia, para em servidão, quando não é inimizade conhecida. As figuras de estatura maior se hão-de alargar da vista, porque delas se goza melhor em do que na distância.

Não te deves confiar muito em nos que reconheceres grandes, e superiores, porque não é segura a protecção, e amparo, pois sempre querem ser servidos, e adorados, como superiores, e para servirem sempre têm embaraços, como escreve Francisco de Sá de Miranda na sua Egloga dos Pastores, n 36.37.38.39 e 40:

Andei daquém para além,
Terras vi, e vi lugares,
Tudo seus avessos tem,
O que não experimentares,
Não cuides que o sabes bem.
E às vezes quando cuidamos,
Que alguma coisa entendemos,
A cabra cega jogamos:
Achei-vos cá fortes amos,
Querem que os adoremos.

Para as coisas que acontecem,
Quando os bufais, ora o sono,
Ora achaques mil te empecem,
Ao tosquiar achas dono,
Nas pressas não te conhecem:
Tudo lhes o demo deu,
Têm razões más que nos dão,
Quando te hão mister, es seu,
Quando os hás mister, és teu,
Que não tem amos então.

Essa vez que saiém à rua
Estremece toda aldeia,
Eles bebem, e homem sua;
Dói-lhes pouco a dor alheia,
Querem que nos doa a sua,
Inda que o dano é me grosso,
Pudera-o dissimular,
Isto parceiro, não posso,
O entendimento que é nosso,
Não no-lo querem deixar.

Pelo qual com meu fardel
Fugi das vossas aldeias,
Não trago nos beiços mel,
Que não sou eresta colmeias,
Nem posso ser ministrel:
A saudade não se esrece,
Mas caiu-me um coração
Em sorte, que muito empece,
Que outro Senhor não conhece,
Salvo justiça, e razão.

Então queixo-me a ti logo,
Que em casos que aconteceram,
Vi-me por eles no fogo,
Bradei, e não me valeram
Brados, queixumes, nem rogos;
Assim me saí, mui quêdo,
E quêdo, e fará um dia
O que outro não fez, e hei medo
De ver mór vingança cedo
Do que já agora queria.

Porém faz sempre muito para tê-los favoráveis, porque senão servem de ordinário para amigos, para inimigos são muito poderosos; e assim procura por todas as vias merecer-lhe o agrado, em quanto senão atravessar entre eles, e tia tua consciência; porque não deves temer perder aos homens por mais poderosos que sejam, quando conservares amizade com Deus, como verdadeira, e piamente cantou certo poeta:

Si placeas Christo, facilis jactura potentum est,
Latius imperium Caesare Christus habet.
Nam, si placeas mundo, facilis jactura salutis,
Quem diligit mundus, displicet ille Deo.


Porque Deus tomará à sua conta a tua defesa, pois nunca desamparou os justos perseguidos; e por isso cantou certo poeta na forma seguinte:

Vide egojactos varios discrimine justos,
Et vidi nullum deseruisse Deum.


Muita paciência é necessária para tolerar poderosos, cujos rogos são mandados, como sentiu Ausónio, quando escreveu:

Scribere me Augustus jubet, et mea carmina poscit,
Pene rogans blando vix latet imperium.


Porque quando pedem, é já quase coma espada nua, como canta outro poeta:

Est rogare Ducum species violenta jubendi.
Et quasi nudato supplicat ense potens.


Sendo a razão para se fazer, e obrar o que pedem, de ordinário nenhuma outra mais, que a sua vontade, como chorou outro poeta:

Sic volo, sic jubeo, sit pro ratione voluntas,
Natura sequitur semina quisque suae.
--------------- Pro lege voluntas
Principis esse jolet, quidquid decreverit ille,
Est ratum, mos est, et legis habere vigorem.


E a razão deste desconcerto está, porque a prudência, e poder raras vezes vivem juntas, como disse Carlos Scribanos: Nisi quis credat potentiam, et prudentiam justim stabulare non posunt. E daqui procede, que são mais prontos para o mal, que poderosos para o bem, como escreveu Ovídio, aconselhando, que se fuja deles:

Vive tibi, quantumque potes praelustria vita,
Saevum praelustri fulmen ab arce venit.
Nam quamquam soli possunt prodesse potentes,
Non prosunt, potius plurium obesse solet.


E o mesmo cantou outro, com não menos elegância:

Vive, et amicitias Regum fuge; pouca monebras,
Maximus hic scopulus, non tamen unus erat:
Vive, et amicitias nimio splendore nitentes,
Et quid quid colitur, perspicuum fugitio.
Ingentes Dominos, et famae nomina clarae,
Illustrique graves nobilitate domos,
De vita, ex alto magna ruina venit.


O remédio deste dano consiste em afastar de poderosos com tão proporcionada distãncia, que nem se viva com eles, nem sem eles; porque ainda quando eles franqeiam a entrada, e abrem as portas a toda a hora, sempre é perigosa a sua familiaridade, como escreveu num elegante epigrama Thomaz Moro, e depois o experimentou o mesmo:

Saepe mihi jactas faciles te ad Principis aures
Liberi, et arbitrio ludere sape tuo.
Sic inter domitos sine noxe saepe leones
Luditur, atnoxae non sine saepe metu.
Infremit in certa crebra indignatio causa,
Et subito mors est, qui modo ludus erat:
Tuta tibi non est, ut sit secura voluptas:
Magna tibi est, mihi sit, dummodo certa, minor.


Bem poderão estes poderosos do mundo, que tudo querem governar ao seu arbítrio, viver lembrados da morte, e acabar de entender, que hão-de os seus corpos ser sustento de imundos bichos, para fugirem às vaidades do mundo, e cuidarem só em contentar a Deus, como lhe aconselha certo poeta:

Vive memor mortis, pascendis vermibus esca,
Vana fuge, et soli quaere placere Deo.


Bem poderão também advertir, que por mais poderosos que sejam em quanto vivem, poderosos, e não poderosos, no fim da vida, todos são iguais, como fazendo semelhança do jogo do xadrez, os admoesta Sebastião Covas Rubias (centúria I Emblema 23).

ElRey, la Dama, Arsil, Roque, Cavallo,
Cada qual destos tiene en el tablero
Su casa, su poder, e en el mudallo
Se guarda orden, y concierto entero.
Al fin del juego, por mi cuenta hallo,
Que en el facto el Peon entra primero,
Y al rematar los biens, y los males
De aquesta vida, todos son iguales.


Mas se eles esquecidos de si, pedem o que não devem, faz tu o que deves, sem receio de que te possam fazer mal, ainda que o queiram fazer, segundo o que te aconselha certo poeta:

Tu, quod jura petunt, facies pietatis amore,
Nec metuas quemquam, quisquis obesse velit.

Pondo toda a tua esperança em Deus, porque este é o único bem do homem, como escreve Santo Agostinho (lib. 10 de Civitate Dei cap. 4 ibi: "Bonum nostrum, de quo inter Philosophos magna contentio est, nullum esse aliud, quam illi cobaerere, cujus anima intellectialis in corporeo, si dici potest, amplexu, veris impletur, faecundaturque virtutibus".) E o disse também certo poeta do nosso século:

Discite virtutem juvenes; não solabeatos
Nosfacit, et dirae non timet armanecis.
Fortunaeminas, aut saevi spicula fati,
Quaeque facit tremula cura senecta manu.
Imbibe virtutes, et inania gaudia vera boni:
Nec quemquam placidis adeo complectitur ulnis
Sors, ut non aliqua parte molesta premat.


(Cap. XX da Escola Moral, Política, Christã, e Jurídica, Diogo Guerreiro, LISBOA M.DCC.LIX)

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