06/05/24

RESGATE DOS ESCRAVOS - ANÁLISE II

 (continuação da I parte)

ANALYSE
SOBRE A JUSTIÇA DO COMMERCIO
DO
RESGATE DOS ESCRAVOS
DA
COSTA DA ÁFRICA,

NOVAMENTE REVISTA, E ACRESCENTADA
POR SEU AUTHOR


D. JOSÉ JOAQUIM DA CUNHA
DE AZEREDO COUTINHO


BISPO DE ELVAS, EM OUTRO TEMPO BISPO DE PERNAMBUCO, ELEITO DE MIRANDA, E BRAGANÇA, DO CONSELHO DE SUA MAGESTADE.

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LISBOA
ANNO M.DCCC.VIII

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NA NOVA OFFICINA DE JOÃO RODRIGUES NEVES
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Por Ordem Superior

 


 

PREFAÇÃO


Atordido, e atormentado de ouvir gritar ao redor de mim, e por toda a parte, uns por malícia, outros por cegueira "que se não deve obedecer à Lei, que é contra o Direito Natural": apenas ouvi este enunciado, eu assustado perguntei "E quem há de ser o Juiz da Justiça da Lei? Ou quem da Nação está autorizado para nos dizer se a Lei está, ou não conforme o Direito Natural?". Quando eu esperava, que todos me dissessem, que só o Soberano Legislador da Nação; pelo contrário ninguém me respondeu; uns voltaram as costas, outros por um sorriso sardónico pareciam compadecer-se da puerilidade da minha pergunta; eu olhei para uma, e outra parte, não vi algum, que tomasse o meu partido; os meus amigos mesmos pareciam fugir de mim para não seguirem comigo a mesma sorte; eu vendo-me sem amigos, e que até a mesma Lei, que defendia a minha vida, Lei à sombra da qual eu dormia sossegado, ficava à disposição dos meus inimigos! É possível que Deus me deixasse em tanto desamparo no meio dos homens! Eu prezo, e ligado pela Lei, sem poder, usar das minhas forças, e os meus inimigos, os homens perversos, e corrompidos, livres, e soltos para me tirarem a vida, quando, e como queiram! Que desgraça! No meio desta aflição se me figurou de repente, que um dos mesmos, que me cercava, corria já sobre mim; eu quis fugir, não achei para onde; por toda a parte eu vi-me rodeado de um abismo, que engolia de um só bocado a espécie humana; eu caí desmaiado, e sem sentidos (1 - parece-me estar já ouvindo um quidam, que raivoso me diz "um Bispo não deve usar de ficções"; mas eu já também lhe respondo, que o Evangelho se está explicando por parábolas, e exemplos para ser facilmente entendido por todos, sem muitos rodeios, e argumentos).

O homem uma vez constituído Juiz da justiça da mesma Lei, a que ele deve obedecer, já para ele não há Lei; a sua vontade, os seus interesses, e as suas paixões serão a só regra da justiça da sua Lei; os que se dizem Filósofos da moda, e que se creem feitos para civilizar a África, reformar a Europa, corrigir a Ásia, e regenerar a América, não poderão sem dúvida excogitar uma máquina infernal mais simples, e mais destruidora; não há um engodo mais atractivo, nem mais lisonjeiro ao paladar dos homens corrompidos para os reduzir aos tempos em que não haviam Leis, não havia governo, não havia civilização; aos tempos enfim em que os homens andavam em bandos como feras, devorando-se uns aos outros, como ainda se vê em muita parte de África, e entre Índios da América.

As Seitas dos Anabatistas do XVI século, e dos Novos Filósofos do XVIII ainda que pareçam diametralmente opostas entre si; pois que aqueles afectavam um total desprezo das Ciências, e estes um soberbo orgulho de que só entre eles há Ciência, e sabedoria; contudo a base fundamental de uma, e outra Seita, a liberdade, a igualdade, a comunhão dos bens são comuns entre ambos (1 - Gmeiner. Histoir. Ecclesiast. tom 2. epoch. 4-membr. 4. cap. I.de Anabaptistis pag 510 Histoir. Philosoph et Politiq. tom 7. liv. 18 chap 1). Os Anabatistas diziam-se rígidos observadores da Lei de Jesus Cristo; mas eles não se embaraçavam com examinar o dogma, ou o que deviam crer; eles só diziam, que o verdadeiro Cristão devia ser justo, e santo; mas não definiam em que consistia o justo, e o santo; a Religião deles era arbitrária (1 -  Gmeiner. d. pag. 518 "lerumque enim non tam de natura dogmatum, quam de eo, quod justum, vel injustum, lictum, vel illicitum habere debeat, vehementer decertatum. Sanctum vero quid esset, quid esset, quid non esset, non ratione, et judicio, non Sacrae Scripturae recta interpretatione, sed sensu potius, et opinione definiebant"). Os da nova Seita Filosófica, que se dizem rígidos observadores da Lei Natural; e que a Lei que é contra o Direito Natural, e a Humanidade é injusta, e que em consequência não deve ser obedecida, não nos dão contudo uma definição clara, e distinta dessa sua Humanidade, nem desse seu Direito Natural; nem nos dizem o como ele deve ser aplicado no estado da Sociedade, nem qual seja o sujeito, ou sujeitos, que no estado da Sociedade estão, ou não autorizados para nos dizer se a Lei está, ou não conforme o Direito Natural, e a Humanidade: O seu Direito Natural é arbitrário, a sua Humanidade é só de nome. Os Anabatistas afectam ter horror a efusão de sangue, eles diziam, que os verdadeiros Cristãos não deveriam tomar armas, nem ainda mesmo para se defenderem, e que por isso não deviam ser obrigados a assentar praça para servir nos exércitos da Nação (1 - Gmeiner. d. §. 507 "Vim vi depellere, et bella gerere illicitum esse" Histoir. Phil. d. pag. 3 "Il nést pas permis à des Chretiens de prendre les armes pour se defendre; à plus forte raison ne peuventils s'en roler au hasard pour la guerre"); e contudo que rios de sangue não fizeram eles correr por toda a Alemanha, e principalmente na Wesphalia? Os Novos Filósofos, que se dizem os Defensores da Humanidade oprimida que de males não têm eles feito sofrer à Humanidade? A revolução da França, e a carnagem da Ilha de S. Domingos não bastam ainda para desmascarar estes Hipócritas da Humanidade?

Os da Seita Filosófica, supondo, que a reforma do Mundo, ou ao menos da França era obra de alguns dias, passaram a pôr em prática os seus desvarios: mas temendo acordar a vigilância dos Soberanos, e dos que tinham nas mãos as rédeas dos Governos, fingiram dirigir as suas setas contra a justiça do Comércio dos resgate dos Escravos da Costa de África, debaixo do pretexto de defender a Humanidade oprimida, para assim ao longe, e por caminhos tortuosos irem espalhando a semente dos seus infernais princípios até arrastarem os homens aos seus primeiros tempos de barbaridade, para eles então lhes darem a Lei a seu modo.

E querendo eu concorrer com tudo quanto estivesse da minha parte para a felicidade geral dos homens, passei a analisar os princípios da Seita, que com tanta arte se espalhava, para ou destruí-los, se pudesse, ou ao menos excitar os ânimo dos verdadeiramente amigos da Humanidade a ajudarem-me a persegui-los, e a combatê-los; e como era necessário atacá-los pela mesma estrada, que eles seguiram, eu tomei a defesa da justiça do mesmo Comércio, contra o qual eles tanto declamavam (1 - V. Analyse sur la justice du Commerce du Rachat des Esclav. de la Corte d'Afrique à Londres 1798. Currier de Lond. 468 Juin 1798 article Avis au Public.) Feri-los por esta parte era feri-los no coração; pois que debaixo do pretexto de atacar a injustiça das Leis, que mandam, ou aprovam semelhante Comércio, eles tratavam de injustas todas as Leis, que não eram medidas pelo seu compasso; eles chamavam Tiranos aos que nas suas Leis punham a pena da perda da vida, ou da liberdade; eles os desacreditavam, e punham tudo em revolução, que era o seu fim; e por isso todo aquele que tomava a defesa da justiça de um tal Comércio, era por eles amaldiçoado, e detestado como um monstro inimigo da Humanidade.

Eu porém, que nunca temi ser sacrificado pela defesa da Justiça, e da Causa Pública, posto que sem forças; com tudo como estou persuadido, que o homem verdadeiramente Filosófico é o mais fácil a convencer-se, logo que se lhe faz ver a verdade; e que por isso que ele tem a vista mais aguda, e penetrante percebe logo a luz ainda mesmo quando se lhe mostra de longe; assim como também, que o verdadeiramente amigo da Humanidade é o que mais se harmoniza à vista da cilada, que se lhe arma, e que é o primeiro a abraçar de coração àquele, que lhe mostra o precipício; vali-me do método próprio para convencer os homens de juízo, e de probidade, posto que um pouco enfadonho, e desagradável para os que amam os discursos livres, e soltos para impor à multidão.

Se eu não conseguir o meu fim, eu terei ao menos a consolação de ter apontado a ferida mortal destes monstros inimigos da espécie humana, e de ter feito ver, que a necessidade da existência é a suprema Lei das Nações, que a justiça das Leis humanas não é, nem pode ser absoluta, mas sim relativa às circunstâncias, e que só aos soberanos Legisladores, que estão autorizados para dar Leis as Nações, pertence pesar as circunstâncias, e aplicar-lhe o Direito Natural, que lhes manda fazer o maior bem possível das suas Nações relativamente ao estado em que cada uma delas se acha; assim como o prudente Médico, que não aplica a todos os doentes o mesmo remédio, nem em toda a ocasião, e tempo. A verdadeira demonstração destes princípios será, parece-me, o maior presente, que se possa fazer à Humanidade; ela sossegará as consciências; ela firmará os Impérios; ela enfim fará tanto bem, quanto têm feito de mal as opiniões contrárias. E para que se possam facilmente ver os resultados da minha Análise, eu os vou pôr todos em um só ponto de vista.

I. O Sistema dos Pactos Sociais é contrário à natureza do Homem, e destruidor da ordem social § II e III;

II. O Homem é por sua natureza sociável, e feito para a Sociedade sem dependência de algum pacto. § 

IV. até X;

III. Assim como a forma, e a sede é a linguagem pela qual a Natureza manda ao Homem, que trabalhe para sustentar a sua vida, e a sua existência; assim também pelo medo, e horror da sua destruição, que ela lhe infundiu, quando o criou, lhe manda que defenda a sua vida, e a sua existência com todas as armas, e meios, que ela pôs nas suas mãos § XI;

IV. O Homem deduz os seus direitos naturais da necessidade da sua existência;

V. As Sociedades humanas são da mesma sorte obras da Natureza, que criou o homem para a Sociedade, e com as mesmas obrigações de sustentarem, e defenderem a sua existência por todos os meios, que a mesma Natureza pôs nas suas mãos. § XII;

VI. As Sociedades humanas deduzem os seus Direitos naturais, assim como cada um dos homens, da necessidade da sua existência. § XI no fim, e § XVII, XVIII, e LXXXVII;

VII. Cada um dos Indivíduos da Sociedade deduz os seus direitos da Lei da Sociedade. § XIII até XVIII;

VIII. A justiça das Leis humanas não é necessário, que seja absoluta, basta que seja com relação às circunstâncias. § XIX até XXIV;

IX. A justiça da Lei de qualquer Sociedade ou Nação consiste no maior bem, ou no menos mal dela no meio das circunstâncias. § XX até XXIV;

X. Só ao Legislador da grande Sociedade, ou Nação pertence julgar, ou decidir qual é o maior bem, ou menor mal da Nação em tais, ou tais circunstâncias. § XXV até XXVIII;

XI. A necessidade da existência do Homem, que no estado da Sociedade estabeleceu a justiça do Direito da Propriedade, foi também a mesma, que no estado da Sociedade estabeleceu a justiça do Direito da Escravidão.  § XXIX até XXXV;

XII. O Comércio da venda dos escravos é uma Lei ditada pelas circunstâncias às Nações Barbaras para o seu maior bem, ou para o seu menor nal, § XXXVIII até XLVIII;

XIII. Os argumentos dos Declamadores contra a justiça do Comércio do resgate dos escravos da Costa de África são mais contra eles do que a favor deles. § XLIX até XC;

XIV. Os escravos devem ser protegidos pelas Leis, assim como são os menores, sem jamais entrarem em juizo com seus Senhores. § XC até XCII

XV. A Razão natural não se deve confundir com o raciocínio. § XCIII até XCIX;

XVI. A Liberdade dos homens no estado da Sociedade não é, nem pode ser absoluta; mas sim restricta aos limites marcados pelas leis da mesma Sociedade. § C. até CVIII;

XVII. A Sabedoria do Povo ou é uma quimera, ou é só de nome. § CIX até CXXIII;

XVIII. Projexto de uma Lei para obrigar o senhor a que não abuse da condição do seu escravo. § CXXIV até CXXVIII;

(continuação, III parte)

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