01/08/16

O PUNHAL DOS CORCUNDAS Nº 27 (II)

(continuação da I parte)

Darei todavia, se acaso é possível, algumas tréguas à vivíssima indignação que concebi nesse tempo, e que só acabará com a minha vida, para oferecer aos meus leitores, sequer em miniatura, o quadro de insolências e atrocidades, que se ofereceu ao público no memorável dia 2 de Abril de 1822.


Comecemos por quem dispunha e mandava tudo no Congresso. "Se ele (Patriarca) julgou que entende alguma coisa com a sua consciência, para que foi tão emisso Pastor, para que mandou ao seu Clero e a todos que obedecessem?... Manda aos outros que jurem, e não quer jurar?" E a isto é que se chamava nesse tempo rectidão e justiça!! Não bastava perseguirem um chamado réu, que só merecia respeitos, e obséquios, arrancarem-no às suas ovelhas, fazerem tudo quanto neles era para quebrarem o laço indestrutível que o prendia à Santa Igreja de Lisboa, de que todos eles, ao menos na aparência, eram súbditos, senão acrescentarem a mais destinada impostura, como se o Eminentíssimo Cardeal Patriarca tivesse mandado jurar os Pastores de segunda ordem? Todo o empenho da seita foi tirar ao heroísmo de Sua Eminência, quando não fosse todo, o que lhes era impossível, ao menos uma parte do seu brilho, que dava luz tão clara aos Portugueses iludidos, e poderia ter desastrosas consequências para o Maçónismo. Daqui veio que não fizeram ler no Congresso, ou publicar no Diário, como importava num caso de tanta ponderação, os fundamentos a que recorreu Sua Eminência para dar uma absoluta negativa. Não disse simplesmente Sua Eminência "Não juro os artigos 10 e 17, porque sou Bispo, e dou Católico, nem prescindo dos meus direitos, nem atraiçoo a minha Fé", acrescentou mais coisas, motivou a sua repulsa, de que todavia nunca se fez menção nos papeis públicos. Temeram sem dúvida que a seita fosse desmascarada por Sua Eminência, o que é tão certo, que apenas se divulgou a Pastoral, ou Saudação do Eminentíssimo Cardeal Patriarca, logo a tacharam de sediciosa e incendiária, como se verá no lugar competente. Seguiu-se a Fernandes Tomás outro declamador, que não se pejou de avançar mais este delírio: "Dizia-se ao Cardeal Patriarca que jurasse que a Religião da Nação Portuguesa era a Católica Apostólica; dizer que não quer jurar este artigo é dizer que não quer observar que a Religião Portuguesa é a Católica". E chama a este procedimento "ignorância crassa e supina"!!!

Que juízo se deverá fazer do que se lê na pag. 411, que ainda é mais curioso, por descobrir as verdadeiras causas do extermínio há muito resolvido nas tenebrosas conferências? "A Bula relativa a comer-se carne para se evitar o sair dinheiro para a Inglaterra, e tão interessante ao nosso estado público; o Governo recomendou a execução dela, e o Cardeal Patriarca, não devendo reputar-se mais religioso que os outros Prelados do Reino, obstou à publicação da Bula; o que tem sido ocasião de discórdias entre as famílias, e discórdias de que ele é o culpado.
Vamos aos dois artigos das Bases em que ele embirra: Que a verdadeira Religião é a Católica Apostólica Romana.... ao menos, querendo que se acrescentasse a palavra única, dá a entender que o Congresso não quer que ela seja a única, quando pelo contrário o Congresso decretou que ela havia de ser única, e... não pôs esta palavra, em razão das modificações que se hão de fazer relativamente aos estrangeiros. O artigo.... dele não se pode seguir o perigo de se ofender em alguma coisa o dogma e a moral."

Enfim de todos os Opinantes o mais comedido tachou a Sua Eminência de alucinação; e só por aqui se poderá concluir a que ponto subiram as injúrias, se uma por extremo grave, quando se tratava de pessoa de tão alta hierarquia, passou então aos olhos de toda a Nação como um verdadeiro obséquio, e talvez como ardil para se quebrar de algum modo a fúria da conjuração. É bem para lastimar que o descuidado taquígrafo não ouvisse as falas dos Excelentíssimos Bispos presentes no Congresso, que nunca tiveram ocasião para falar bem alto, como esta, e fez horror que da boca de algum, ou de alguns, saísse o pretexto de alucinação; quando só os que não penetrassem quais eram as vistas de um Congresso ímpio, e revolucionário, é que, não sendo cúmplices da Maçonaria, se podiam chamar alucinados, e bem alucinados, pois a todos que viveram largos anos em Coimbra, se pode acomodar o Sic notus Ullysses!!

Ainda falou segunda e terceira vez o Caudilho Tomás, que assentou da primeira vez que só extravagâncias se deviam esperar de quem zelava tão impavidamente os direitos e prerrogativas da Igreja; o que também era indispensável para a coroa dos trabalhos de Sua Eminência, a fim de que ele também pudesse queixar-se, ou antes gloriar-se, com S. Paulo: Nos stulti propter Christum. Apurou-se mais na terceira fala, que devia arrastar a seita em peso, e obrigá-la a uma lei nova para este crime novo e inaudito; e convém lançar aqui as suas expressões mais notáveis.

"O Cardeal Patriarca cometeu muitos delitos, mais do que eu supunha: primeiramente nega a obrigação de obedecer ao Congresso em tudo o que não seja matérias políticas; já se vê que exclui as matérias meramente Eclesiásticas e Disciplinares, em que o Congresso, como todo e qualquer Soberano, tem poder e direito de legislar. O Cardeal Patriarca nega mais que o Congresso tivesse poder de legislar, e decretar que a Religião dominante do país é a Religião Católica Apostólica Romana, e supõe que isto é um negócio só da sua competência, e que nesta parte ele não é súbdito do Congresso, nem tem obrigação de obedecer. O Patriarca julga mais que o Congresso nos dois decretos que fez deixou em perigo a Religião, não se explicando com toda a clareza que era conveniente, e erigiu-se ele mesmo em legislador nestas matérias, fazendo declarações que esclareçam o Congresso, então o seu crime é maior. O Cardeal Patriarca disse mais que não jurava obedecer ao Decreto das Cortes, quando ele estabeleceu a liberdade da imprensa sem censura prévia eclesiástica. É um absurdo, é um erro o julgar-se que pelas leis do país, que nos governaram até 24 de Agosto, e que hoje nos governam, que os Eclesiásticos tiveram censura prévia dos livros que se imprimiram. Aos Bispos nunca compete senão a censura dos livros impressos, ou não impressos, que se compõem de quaisquer opiniões que ataquem a Religião. Este direito foi salvo aos Bispos; e o Patriarca quer defender o contrário, quer usurpar o poder soberano que compete ao Congresso."

Ora vejam que pesada injúria fazia o Eminentíssimo Cardeal Patriarca à facção preponderante no Congresso de os sentir inclinados à tolerância religiosa, e dispostos a admitirem neste Reino toda a espécie de cultos religiosos, inclusa a Maçonaria com os seus aventais nos seus dias clássicos, e de reunião geral!!! Aqui se pode trazer bem ao intento o rifão Português: Quem não quer ser lobo não lhe vista a pele. Ainda que o sucedido nas sessões de 13 a 16 de Fevereiro não abrisse os olhos à pessoa mais cega, e menos advertida de quais são os intentos da Maçonaria, bastava o que se passou nesta mesma, de que vamos tratando, para se concluir que a liberdade da imprensa, até em matérias religiosas, só era benefício dos Irmãos, que se metessem a impugnar as verdades dogmáticas e morais do Cristianismo, como depois mostrou a experiência.... Dizer um homem versado em papeis e livros velhos que nunca os Bispos censuraram livros, senão depois de estarem impressos, não é como esbofetear a gente que sabe que há livros, e que os têm aberto e folheado desde o princípio até ao fim? Que seria uma licença do Ordinário, que vem à frente das obras jurídicas de Pegas, de Caldas, e de todos os mais reinícolas? Não foi por mais de duzentos anos coisa indispensável neste Reino que os Bispos vissem, e censurassem o livro antes de se imprimir? (Agora mesmo neste últimos tempos, quando por extinção da Mesa da Comissão Geral sobre o exame e censura dos livros tornaram as coisas ao pé antigo, não se devolveu aos Ordinários a antiga licença? Não foi sem licença de algum Ordinário que o próprio Fernandes Tomás imprimiu a sua obrinha contra Manuel de Almeida de Lobão, e o seu grande Repertório das Extravagantes; e se os Ordinários censurassem o livro poderia sim haver algum conflito com as autoridades seculares, mas por via de regra não seria fácil que o livro censurado pelo Ordinário se chegasse a imprimir; o que, ainda nesta hipótese, está bem longe de favorecer ou patrocinar a doutrina de Fernandes Tomás.) Decidiu-se numa das causas mais importantes que se têm agitado neste Reino; decidiu-se porém a sabor das paixões frenéticas e exaltadas dos corifeus da Maçonaria..... Gemeram os bons; a piedade cristã seguiu todos os passos da vítima; estremeceu dos perigos que ele teria de encontrar, pisando um território inficionado das mesmas doutrinas ímpias e revolucionárias; e foi-lhe preciso encerrar-se, fugir de testemunhas, recear as paredes de um cubículo, para desafogar em suspiros a sua mágoa e saudade!!! Animou-se todavia de que a passagem através de Castela, bem longe de ser arriscada para o intrépido Confessor da Fé, se tornasse para ele a mais segura e cómoda, e exultou quando leu a Pastoral datada em Baiona, e cobriu de bênçãos e merecidos louvores o impávido redactor da Gazeta Universal, que assim fazia constar ao rebanho quais eram as vezes do seu Pastor ausente, e cada vez mais solícito  por desviá-lo de famintos lobos, e de pastagens venenosas... Não foi esta a primeira vez que a França deu asilo aos Pastores violentamente separados de seu rebanho... Desde Santo Tomás de Cantuária até ao Eminentíssimo Cardeal Patriarca de Lisboa podia tecer-se um catálogo imenso destas vítimas de um apego entranhável à causa do Cristianismo.... Recebemos, enquanto durou a tormenta revolucionária que assolou a França, um crescido número de Sacerdotes, e um Bispo, um Confessor da Fé, um herói Cristão, veio rematar seus dias ao Mosteiro de Alcobaça: pagou-nos a França esta dívida franqueando os seus lares a um Pontífice desterrado pela mesma causa; e já tornando a si de antigos e funestos delírios, se reputou feliz de que já voltasse outra vez a ser o refúgio da inocência oprimida o há pouco ingrato país, que arrojava cruelmente para fora de si os mais constantes defensores do Trono e do Altar... Assim mesmo, que longo foi o desterro de Sua Eminência, não tanto a contar pelo número dos dias, como pelo íntimo desejo de unir à Esposa, com quem contraíra matrimónio espiritual, e indissolúvel a todos os esforços e pretensões do Maçonismo!! Quantas vezes ao lembrar-se de que os males do seu rebanho engraveciam, e ameaçavam tocar o ponto de incuráveis, ele sentiria como abalarem-se-lhes as entranhas, e fugir do seu coração a doce paz, este mimo com que os Céus regalam os que padecem por honra do Evangelho? Quantas vezes o coração de Sua Eminência saíra um eco fiel por extremo das palavras de S. Leão Magno a Fláviano: "Ainda que nos glorifiquemos no Senhor, que nos sustenta pelo poder da sua graça, é de necessidade que choremos o desastre daqueles que combatem a verdade, calcam aos pés a Religião, e abalam os fundamentos da Igreja?" E que recompensa recompensa davam os nossos legisladores a quem lá desde o seu retiro fazia quanto nele era por apagar todo o ressentimento e o menor incentivo da guerra civil, e endereçava ao Céu os mais puros votos pela felicidade da Monarquia Portuguesa? Ele não tinha deixado de ser Patriarca, ainda subsistia firme o laço da sua união com a Igreja Ulisiponense; e quem duvida que lhe tocasse por direito ao menos uma parca substância? A tudo se negaram esses homens liberais, que faziam brindes de 10000 cruzados, à causa de um Reino atenuado e empobrecido, a uns Quixotes aventureiros, e como refugos da espécie humana. Ah! fizeram bem; porque Sua Eminência teria menos esta razão para ser admirado, se os ímpios o tivessem socorrido. Parece que eles só tratavam de cansar-lhe a paciência, a fim de que ele, vencido pelo tédio e privações próprias de um desterro, cantasse ainda a palinódia, e segurasse à causa liberal mais um triunfo, que lhe seria por extremo agradável. Quanto é possível conjecturar de um ânimo grotesco, desinteressado, e só atento aos preciosos interesses do Cristianismo, eu me abalanço a pôr na língua do Eminentíssimo Cardeal Patriarca as formais doutrinas do S. Padre Pio VI, só com uma leve mudança. "Vós tendes todo o poder sobre as rendas da Patriarcal; porém a minha alma, e o meu carácter sagrado estão fora do alcance dos vossos tiros. Eu não careço da vossa pensão. Um bordão, em lugar da Cruz Pastoral, e um vestido de burel são bastantes para quem deve expirar sobre o cilício e cinza. Adoro a Mãe do Todo Poderoso, que castiga o Pastor, e o seu rebanho; podeis saquear a vosso gosto as habitações dos vivos, e até as sepulturas dos mortos; porém a Religião é eterna. Há de existir depois de vós, assim como existiu antes de vós, o seu reino há de perpetuar-se até ao fim dos séculos."

(continuação, III parte)

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