20/01/15

SERMÃO - DE FR. FRANCISCO FOREIRO NO CONCÍLIO DE TRENTO (II)

(continuação da I parte)

I

Concílio Ecuménico de Trento
Comecemos, pois, por aqui o nosso sermão: pelos critérios de Deus, não merecem consideração esses títulos (que a parecer também se compraram por bom preço, que muitos amiúde conservam e contemplam com grande ambição, escogitados por alguns por adulação e por outros supersticiosamente guardados), mas sim a fé constante e com amor não fingido, a justiça incorrupta e não ensombrada por quaisquer vantagens próprias de favor. Tudo isso deve ser considerado como névoas que os raios do sol ou leve brisa fazem desaparecer num ápice. Daí estar escrito com muita clareza. "vi o ímpio sobremaniera exaltado e elevado acima dos cedros do Líbano; passei e já não existia; procurei-o e não se encontrou o seu lugar"; e "não temais quando alguém enriquecer e a sua casa se multiplicar de glória; pois ao morrer nada levará consigo nem a sua glória descerá com ele". E Job: "a sua confiança é como casulo de aranha. Apoiar-se-á nele e não se aguentará"; "tais são os caminhos de quantos dizem esquecer Deus". Mas com toda a razão se diz que esquecem a Deus os que de tal modo procuram brilhar junto dos homens que não se horrorizam esperando o juízo divino; mas, inanes como fábulas, o recordam. Levam a vida como o desvarios de velhinhas; e pensam das suas coisas como se estas durassem sempre.

Ó vãos cuidados humanos! ó trabalhos em vão suportados! Ó casas erguidas em lassidão e magnificência, decoradas a tapetes de ouro e seda! Ó famílias seguidas de longo cortejo atrás! Ó átrios ressoantes de rumor de criados e cavalos. Com que nome (por favor) vos marcou o Espírito Santo? Casulo de aranha a sua confiança; apoiar-se-á nele e não se aguentará.

Vistes alguma vez, ó Padre, um aranhiço trémulo, que pela fraqueza das tíbias mal pode assentar os pés no seu casulo? Tais são "os caminhos de quantos esquecem a Deus". Daí o que foi dito por David com muita sabedoria: "ruiu a memória deles com o fragor". E em Job que citei há pouco: "se for precipitado do seu lugar, pode dizer-se contra ele: não te vi".

II

Mas venha o nosso sermão ao dia do juízo. E tratemos do que sobre este assunto parece poder dizer-se sem esforço.

"Se todos nós temos de comparecer perante o tribunal de Cristo", será de homem prudente e acautelado elaborar mentalmente como vai ser esse juízo futuro, e com tal realismo e exactidão o elabore que quase o apalpe à mão; ou empregue alguma consideração para que se conserve como reparado e coberto; disponha as suas palavras ou as suas coisas para o julgamento, como se diz no Salmo, não aconteça que, semelhante às virgens loucas, fechada a porta, se exclua da boda. Ao buscar estas coisas no evangelho de hoje, só encontro nele alguns sinais que precedem o julgamento. Fiquemos então de bom grado por aqui mesmo.

Ou favemos de entender por esses sinais que tal será o juízo, ou certamente perceberemos (o que é capital e diz respeito maximamente à salvação) que haverá com absoluta certeza um juízo futuro e que o Filho de Deus e Senhor nosso de novo voltará ao mundo para julgar os homens. Por minha parte, caríssimos Padres, eu que gastei algumas horas com este pensamento muito agudo e muito atento, nada achei que mais diga respeito à salvação do que meditar estas coisas com frequência. Deus é quem julgará o mundo, mas "deu todo o julgamento ao Unigénito"; este "virá outra vez com majestade". Que mais desejareis saber? É Deus: "não perverterá o julgamento" (como está escrito em Job), "nem torcerá o direito". Julgará com verdade o que remiu com misericórdia. Dirá talvez alguém: que havemos de desesperar ou temer? É nosso advogado - o nosso sacerdote e pontífice, que intercede por nós, que se deu por nós como "preço", "redenção", "justiça" e "santificação". "Se, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte do seu Filho, muito mais, já reconciliados, seremos salvos da ira na sua vida." Se é Deus que justifica, quem é que condenará? Sei, ó Padres, e tenho-o verificado na prática, que muito disto é aduzido por alguns da Escritura Sagrada, sem dúvida, mas instruídos pelo espírito do diabo. Tirem, com isso, o medo aos homens para que, quando pensam ter paz, se preocupem com a morte repentina. Quem duvidará de que "nenhuma condenação afectará os que estão com Jesus Cristo", se é o mesmo Paulo a testemunhá-lo? Mas para que não se pensasse impiamente que se podem dizer estar em Cristo os que só estão imbuídos da fé de Cristo, acrescenta prudentemente: "que não andam segundo a carne". os que andam segundo a carne (como ensina o Apocalipse noutra passagem) perecerão. E, não fosse alguém enganar-se, enumera as "obras da carne". Quem negará, pois, que para aqueles para quem Cristo se tornou "santificação e justiça", e por ele mesmo foram reconciliados com Deus, se retiverem esta justiça e santificação na vinda do Senhor, nenhum perigo de ira do poderosíssimo juiz ocorrerá? Por isso é que eu, pelo contrário, interrogo essa gente, de bom grado, é certo, mas não sem horror e temor: se o advogado, se o sacerdote, se o pontífice que está em favor dos homens condenar os homens, quem haverá de interceder por eles? Se os que foram reconciliados com Deus pela morte do Filho de Deus de novo quiserem exercer inimizade com o Pai e o Filho, que lhes aproveitará a recenção comprada a tão grande preço? Quem será o patrono daqueles a quem Deus rejeitar? Pois, como mui sabiamente dizia Job, "se for questão de força, ele é fortíssimo; e se se tratar de justiça, quem me servirá de patrono?" Pois "quem Deus tiver justificado ninguém certamente poderá condenar; mas aos que condenar quem livrará do juízo? Ó desvario de homens imprudentes! Que não pensam que são inumeráveis os que entram pela via da perdição, até elo testemunho do próprio Senhor nosso, e com a tempestade fortíssima desabando sobre eles ainda se prometem serenidade. Pois se os que não acreditam já estão julgados, o juízo de Deus virá sobretudo para aqueles que "confessam a Deus com a boca mas o negam com os factos". Eles que ensinam os outros (como diz Paulo) e a si mesmos não ensinam; que pregam contra o roubo e eles mesmos roubam; que dizem ser ilícito o adultério e eles mesmos cometem adultério; que abominam os ídolos e cometem sacrilégio; que se gloriam da Lei e desonram a Deus prevaricando a Lei. São os que (como se lê em David) enumeram as benemerências do Senhor e assim em a sua aliança com a sua boca, mas porque aborreceram a disciplina e deitaram para trás das costas as advertências do Senhor, esses têm de ouvir: "hei-de denunciar-te e lançar-te em rosto".

Por isso os adverte deste modo: entendei isto, vós que esquecei a Deus! Que sem dúvida conheceis a Deus, mas não glorificais como sendo Deus! Que honrais a Deus com os lábios, mas de coração estais longe de Deus! Que tendes "uma aparência de piedade", mas renegais "a sua virtude". Entendei estas palavras, insisto, ou seja, que haveis de ser acusados e julgados; para que, "quando arrebate", "não haja quem liberte". A esses costumo dizer muitas vezes, ò Padres, a sentença de Tertuliano: o juízo do Senhor não se exara nos grilhões nem no barrete da liberdade, isto é, se o servo deve receber carta de alforria e ser restituído à liberdade ou retido como escravo nas cadeias, exara-se na eternidade da pena ou da salvação. Para evitar tal severidade ou conseguir misericórdia, tão grande é o cuidado a ter quando são grandes ou a severidade que ameaça ou a misericórdia que promete. nem o Apóstolo de balde aconselhava a que operássemos a nossas salvação com temor e tremor?

(a continuar)

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