04/04/14

SERMÃO SOBRE O ESPÍRITO DA SEITA DOMINANTE NO Séc. XIX (VII)

(continuação da VI parte)

Jesus de Nazaré
Antes que adiante o meu discurso, e chegue com ele a pintar-vos os terríveis efeitos deste espírito de partido, não só pelo que pertence à Religião, mas pelo que pertence à sociedade, deixai que eu vos diga que a maledicência assim como é a arma mais fácil, assim também é a mais comum do espírito de partido. Nem todos têm astúcia, nem todos têm cabedais, nem todos têm amizades poderosas com que façam guerra ao bem público, e sustentem uma opinião, ou persigam a mesma Pátria, que lhe deu o berço; mas todos têm uma língua com que rebatam um mérito, com que obscureçam um nome; e os mais imperitos a costumam ter sempre mais atrevida que os outros, e sem se ocuparem em discursos sobre coisas particulares, que pedem entendimento, e perícia, dirão uma louca malignidade, E tão poucas tenho eu ouvido? Dirão, para irem por diante com o partido, a rebatida frase do concelho dos fátuos nos doirados domicílios da crápula, que nós devemos sucumbir, porque o monstro recruta em toda a Europa, isto que é um perfeitíssimo delírio é o sinal menos equívoco do espírito de partido. Do Redentor do Mundo disseram estolidamente seus inimigos em Jerusalém: Nunquid potest aliquid a Nazareth boni esse? Eis aqui uma maneira bem compendiosa de confutar a santidade, a doutrina, e os milagres do Messias, dizer, que de Nazaré, donde ele era, não podia vir coisa boa. Pois os habitantes de Nazaré não são homens? Não têm entendimento? Não professam também a mesma lei santa, que os de Jerusalém professavam? Isso é verdade, mas de Nazaré não pode vir nem com zelo, nem boa doutrina, nem coisa que voa seja. Dissessem ao menos que um Nazareno, ou dois Nazarenos tinham podido errar como errariam outros tantos, e mais em Jerusalém. Mas dizem que todos! Constituir a todos na absoluta impossibilidade de obrar bem, de pensar bem, de falar bem! Isto que parece um portento de cegueira, e de inveja, tem sido sempre conhecido por um efeito naturalíssimo do espírito de partido. Mas qual é a intenção, ou o fim desta maneira de falar? O seu fim nem é, nem pode ser outro mais que denegrir, e abater a fama alheia, e fazer triunfar a obra da iniquidade. Uns murmuram no Mundo por dicacidade, outros por passatempo para que a conversação não seja muda, nem insípida a companhia; mas nenhum destes motivos obriga a falar, e discorrer esses inimigos do público sossego, esses fatais anarquistas, esses voluntários gratuitos, ou escravos emissários do Tirano, não querem mais que a propagação, e a dilatação do sistema destruidor, que para ser aborrecido basta unicamente ser conhecido, e contemplado. Se vós quiserdes, sem paixão, lançar um instante os olhos sobre seus efeitos, então vós podereis formar uma adequada ideia de sua infernal enormidade.

Considerais a Europa no estado, na situação, na época em que a quiserdes considerar, vós não descobrireis nela um quadro tão honroso como agora se vos apresenta. Considerai-a naquela já de nós remota, e apartada época, em que se começou a estender, e engrossar o espantoso Império Romano, vós vereis a Germânia quase vencida, as Gálias avassaladas, a Espanha depois de pertinacíssimos combates de duzentos anos submetida ao jugo; passai com a imaginação o Adriático, vede o Epiro subjugado, a Grécia dividida, a Macedónia, a Trácia agrilhoadas, a Síria, e seus vastos Reinos assoberbados pelas Águias, tiranizados por orgulhosos Proconsules. Vede Crasso acometendo a Arménia, vede-o infeliz, mas destruidor entre os Partos. Vede Pompeu levando no coração a República, e a conquista, encadeando uma a uma as Ilhas do Mediterrâneo, arvorando as Águias até às vertentes do Nilo; assustando o Eufrates, desfechando raios na aterrada Mesopotânia, penetrando triunfante pela Palestina, e deixando por toda a parte cadeias, e pavor. Retrocedei um pouco com a imaginação, e vede na Mauritânia Tingitana os dois Cipiões, e após eles o ferocíssimo Mário conservando na condição plebeia o coração de César, e a magnanimidade de Alexandre, não deixando uma pedra sobre outra pedra nos levantados muros de Cartago. Vede antes dele a mesma Itália assolada pelas bárbaras Legiões Cartaginezas, comprando os Romanos uma só victoria pela ruína de tantas Cidades, pelos lutos de tantas famílias, pela morte de seus ilustres Cônsules.... basta. Considerai a mesma Europa debaixo da dominação Romana no quarto, e quinto século da era Cristã, já dividido o vacilante Império, e oprimido da sua mesma grandeza, e com suas intestinas discórdias, abrindo as portas à aluvião dos Bárbaros, que do norte, e do levante da mesma Europa rebentaram como vulcões, e correram a vingar as não esquecidas, posto que antigas injúrias, que à sua natural liberdade tinha feito a soberba Romana. Vede aqueles densíssimos enxames de Gépisdas, de Ditas, de Hunos, de Hérulos, de Vândalos, de Godos, derramando-se como impetuosas torrentes das montanhas da Escandinávia, por onde quer que vem pondo os pés, não deixarem outros vestígios mais do que estragos, e cinzas. Já despedaçam o Império usurpador, e de cada pedaço formam um Reino, querendo a reguladora Providência, que onde tinham chegado com o voo as Romanas Águas, aí chegassem também os vingadores dos ultrajes, e afrontas, que os conquistadores do Tibre tinham feito à Natureza, e à sociedade humana. Penetra, e transpõe os mares Genserico, e naquela mesma África, onde tantos troféus tinha levantado a vaidade Romana, levanta sobre suas ruínas um novo, e mais bárbaro Império. Considerai a mesma Europa no começo do oitavo século, e vede a mais espantosa vicissitude nos acontecimentos humanos. Já se haviam amaciado os costumes dos bárbaros; Teodorico, e Amalasunta fizeram leis, que ainda admiramos, e o celeste poder do Cristianismo desarmou a fúria Gótica, e viviam as Nações tranquilas: eis das montanhas, e dos areais da Arábia com a nova seita então levantada correm legiões de novos conquistadores, alaga-se de sangue a terra, e os mais florescentes Impérios da Europa gemeram pisados, e destruídos pela ferocidade dos Sarracenos. Eis os homens sujeitos a novas leis, e a novos dominadores, e passam os séculos sem mudarem de grilhões, e a terra não oferece outro espetáculo mais que o da miséria, e da escravidão. Pois nós podemos chamar a tantas catástrofes os séculos da felicidade, quando as compararmos com o quadro das calamidades, que nos oferece a Europa infelicíssima há vinte anos. Os estragos, que ela sofre, não parecem ser obra das mãos dos homens, mas dos Demónios. Vede a que se reduziu a majestade, grandeza, e constituição do Império Germânico. Vede como está o poder guerreiro da guerreira Prússia; a independência da Polónias; a majestosa soberania da Holanda; a divisão tranquila, e equilibrada da Itália; o poder pacífico de Roma; a representação de Nápoles, a política, e diuturna existência de Veneza, a confederação fraternal da Suíça, a liberdade do Piemoute, o majestoso, e venerável colosso da Monarquia Espanhola, a conservação triunfante de Portugal; vede tudo, e dizei-me, se pode outra, ou mais medonha, e espantosa a imagem, e representação do caos. Horrorizam-vos tanto cabeças decepadas, tanto sangue vertido, tantas lágrimas derramadas, tantos lutos constantes, tantas proscrições sanguinárias, tantos cativeiros injustíssimos, pasmais de ver a Natureza ofendida, a liberdade encadeada, a Religião perseguida, os homens transformados em feras indómitas, e carniceiros Abutres? Pasmais de ver cadeias mais grossas, grilhões mais pesados, escravidão mais insuportável do que a que vira, e sentira a mesma Europa nos séculos mais bárbaros? Assombrar-vos ver que homens que se diziam fieis, e Cristianíssimos, excedam no orgulho dos Romanos, na ferocidade das Seitas, nas destruições os Vândalos, na desumanidade os Unos, na brutalidade sensual os Herulos, no fanatismo revolucionário os Sarracenos, na conducta, nas blasfémias, nas profanações, nos desacatos, nos insultos feitos aos mortos, e às mesmas sombras dos sepulcros os Demónios? Pasmais de ver Canibais na Europa mais sedentos de sangue, mais vagabundos, mais carnívoros, mais incultos? Admira-vos ver uma nova Nação de Caraíbas, sem pátria, sem lares, sem relações naturais, e humanas? Transportais-vos de horror vendo não nas bordas do Amazonas, mas nas margens do Tejo uma horda de Tupinambás estúpidos, brutos, insensíveis, sem ideias da moralidade, cometendo assassinos sem remorsos, roubos sem turvação, incêndios sem emoção. Tudo isto existe, tudo isto nós vimos, e sentimos já três vezes. E se vos não horrorizais muito, e quereis ver tudo isto junto num só quadro, eu vo-lo mostro. Vede, e observai bem de perto um apaixonado dos Franceses; seria honrá-lo muito dizer que é um Antropófago; se Satanás se torna visível, eu não sei quem seja mais o seu retrato... Perdoai-me que não cabe em mim a dor de ver o abismo em que iam lançando a nossa Pátria, o nosso Rei, a nossa Religião... Perdoai-me, e pois já me cansaram, ou se me sacaram os olhos de chorar, tenha o meu abafado coração um desafogo pela língua. Eu detestarei, eu ensinarei todos os séculos a detestar estes malvados. Há quatro anos não derramei ainda uma só lágrima, que suas ímpias mãos as não espremessem de meus olhos. E se estes espantosos efeitos vos assustam, fugi, Povos, fugi da sua causa, que é, e somente é o Espírito de Partido.

Disse."

(Sermão Sobre o Espírito de Seita Dominante no Século XIX. D. O. C. Ao Clero Português. Pe. José Agostinho de Macedo, Lisboa 1811)

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