12/01/13

"FIDALGOS DA CASAMOURISCA" - "ABSOLUTISMO PORTUGUÊS" (I)


Júlio Dinis, liberal, escreveu a obra "Os Fidalgos da Casa Mourisca" como forma didática de incutir e justificar o liberalismo e denegrir os absolutistas.

Recortei este capitulo da obra para mais tarde tecer-lhe alguns comentários:

"Em uma das espaçosas salas da Casa Mourisca, alumiada por três rasgadas janelas ogivais e mobilada ainda com certa opulência, vestígios do esplendor passado, esperavam a hora de jantar o velho fidalgo e o seu capelão-procurador frei Januário dos Anjos.

Não foi rigoroso o emprego no plural do verbo da última oração.

Frei Januário era quem esperava, porque essa era também a principal ocupação dos seus dias. Os gozos do paladar mal lhe compensavam as amarguras destas longas expectações. Eram elas talvez que não o deixavam medrar na proporção dos alimentos consumidos, porque frei Januário era magro. O mistério fisiológico desta magreza ainda não era para se devassar de pronto.

D. Luís lia as folhas absolutistas, que lhe mandavam da capital e do Porto, e dava assim em alimento ao seu ódio contra as instituições liberais um dos frutos mais saborosos delas - a liberdade de imprensa -; fruto, em que os seus correligionários mordem com demasiada complacência, apesar de ser para eles frutos proibido.

De quando em quando D. Luís interrompia a leitura com uma frase de aprovação ao artigo que lia ou de censura a qualquer medida promovida pelo governo, que nunca tinha razão.

Frei Januário secundava, com toda a força do seu obscuro credo político, as reflexões de s. exc.ª, e requintava na intensidade dos anatemas, com que eram fulminados os homens da época.

Mas, solta a frase que o caso pedia, e as competentes exclamações, voltava o padre a consultar o relógio, a abrir a boca, a suspirar; dava dois ou três passeios na sala e terminava por is inspecionar a cozinha. os intervalos das refeições eram para ele séculos!

- Humh! - disse D. Luís naquela manhã, poisando a folha, como enojado com o que lera - Lá foi concedido um subsídio para a construção do lanço de estrada de Vale-escuro!
- Fartos sejam eles de estradas! - acudiu logo frei Januário - Para esta gente a moralidade e a ventura de um país consciente em ter estradas e diligências, e acabou-se. Olhem lá se eles levantam sequer uma igreja? Isso sim!O dinheiro do clero sabem eles roubar! E que pena não terão por não deitarem a baixo os templos que por aí ainda há! Mas atrás do tempo tempo vem. Vontade não lhes falta.

Não sei se foi esta última frase que recordou ao padre que também a ele não faltava vontade... de comer. O certo é que, mudando de tom, acrescentou:

- Querem ver que o Bernardino se esqueceu hoje do jantar? Isto não quase duas horas, e eu não ouço tugir nem mugir na cozinha! Nada, aqui anda coisa. Com licença, eu vou ver e volto já.

E frei Januário saiu da sala para ir para a vigésima vez à cozinha, que ele suspeitava abandonada pela incúria do cozinheiro, estando pois a família toda ameaçada com a tremenda catástrofe duma retardação do jantar.

D. Luís pegou de novo nas folhas e deixou-se ficar lendo até à volta do padre, que entrou indignado.

- Eu que dizia?! Posto  à taramela com o hortelão, sem se lembrar do jantar? Olhem se eu lá não ia! Não que dizem que uma pessoa pode descansar nos criados. Há de poder! São uma corja! E, v. exc.ª não quer crer, aquele excomungado daquele hortelão há de ser a ruína desta casa. Foi uma imprudência da parte do Sr. D. Luís meter em casa um libertino daqueles, mação nos ossos e no sangue. Foi um passo muito errado... Aquilo é um péssimo exemplo para os outros. Sabe v. exc,ª em que ele estava falando? Não cantiga do costume. No desembarque do Mindelo. Quando eu cheguei ainda lhe ouvi dizer que eram sete mil e quinhentos bravos que vieram pôr fora da cidade os oitenta mil lobos que andavam lá, e coisas assim. E o cozinheiro a dar-lhe ouvidos, e o leitão a queimar-se e a sopa a pegar-se no fundo da panela, que logo me cheirou a esturro. É preciso que v. ex.º dê as providências, quando não...

D. Luís, tomando menos a peito do que o capelão os destinos do jantar e da sopa, e fiel ao hábito de nunca falar, nem em mal nem em bem, do hortelão, não respondeu e prosseguiu a leitura das folhas.

Daí a pouco referiu ao padre a notícia que tinha lido do desastre sucedido a uma diligência ao passar em uma ponte que na ocasião abatera, resultando muitas vítimas.

A indignação do padre exaltou-se.

- Pois se esta gente que nos governa deixa as estradas e pontes em um abandono desses! Vejam que tempos os nossos! Em que país do mundo se veem estradas assim arruinadas como as nossas? São os bens que nos trouxeram os homens da Carta! Isto é bonito!

E o padre Januário continuou ainda por algum tempo a condenar, pelo crime de desleixo e de falta de protecção à viação pública, os mesmos governos que, momentos antes, acusara de conceder para esse fim subsídios e de lhe dar importância demasiada.

A política de frei Januário é vulgar na nossa terra.

D. Luís, tendo concluído a leitura da folha, pô-la de lado e resumiu a série de pensamentos que essa leitura lhe sugeria, na seguinte e contraída síntese:

- Isto vai cada vez melhor, frei Januário.
- Isto vai bonito, não tem dúvida nenhuma - secundou o padre.
- Enfim, quem viver verá onde isto vai parar, onde nos leva esta torrente.
- E não é preciso viver muito, mais dia menos dia temos aí os espanhóis, ou então passamos a ser ingleses. Não há que ver; da maneira por que vão as coisas...
- Ai, pobre Portugal! - exclamou melancolicamente D. Luís.
- Que vais à vela - concluiu o padre. - Desde que puseram a cabeça à roda a esta gente com liberalismos... ficou tudo transtornado. Agora todos mandam, todos falam, e não há quem governe. isto de não haver um que governe... Estes patetas não se desenganam de quem um país em uma cozinha, sem ninguém que os vigie, e verão o que vai! esperem por o jantar, que hão de achar-se servidos!

O simile fôra sugerido a frei Januário pela sua constante preocupação.

- O que me custa é lembrar-me de que meus filhos têm de viver nesta sociedade assim organizada. Quem sabe a sorte que lhes está reservada, aos pobres rapazes! - disse o fidalgo, suspirando com escuras apreensões sobre a posição precária da família.
- Os filhos de v. exc.ª não devem transigir em caso algum com estes homens! - exclamou com veemência o padre - É não fazer como a sobrinha de v. exc.ª, a snr.ª D. Gabriela, que já é baronesa das feitas por eles. Quando se é fidalgo é preciso ser fidalgo.
- É bem negro o futuro que espera as casas como a nossa, e sabe Deus se em parte preparado por nós - insistia o fidalgo. - Também pecamos.
- Pois é uma triste verdade, mas isso não é razão para que os que nasceram nessas casas se abaixem diante dos que nem sabem onde nasceram. Deixe v. exc.ª medrar quanto quiser o Tomé da Herdade, que no fim de tudo sempre há de mostrar que andou descalço em criança e que foi levar a beber o gado desta casa. Há certas coisas que  não dá o dinheiro.
- O Tomé da Herdade! - repetiu D. Luís com amargura - Esse é que prospera, os tempos estão para ele. Quem o viu e quem o vê aquilo!
- Então que quer? Inda mais havemos de ver. E então não sabe v. ex.ª que o homem mandou educar a filha na cidade, como se fosse a filha de alguém?
- A Berta?
- Sim, a que é afilhada de v. exc.ª Com que fim faz aquele toleirão uma coisa dessas? Veja a parlapatice daquele homem. Não repara na posição falsa em que coloca a rapariga. Meteu-se-lhe talvez na cabeça que ainda a casava com algum fidalgo! Pode ser. Veja v. exc.ª se ela serve para algum dos seus filhos.

D. Luís sorriu, encolhendo os ombros.

- Ora para que precisa a mulher de um lavrador e, que é afinal o que ela tem de ser, das prendas e da educação que o pai lhe mandou dar? Não me dirá v. exc.ª?
- Todos hoje têm aspiração a subir - reflectiu D. Luís com ironia. - A maré sobe.
- Eu bem sei o que é que dá causa a estas toleiras. Tudo isto vem da barulhada que estes liberalões fizeram na sociedade. Tudo está remexido e ninguém se entende. O sapateiro que nos vem tomar medida de umas botas parece um visconde. Onde isso é bonito, segundo dizem, é em Lisboa. Hoje todos por lá tem excelência!

Nestes sediços comentários sobre o estado do século deixaram-se ficar os dois por muito tempo, desafiando assim a sua má vontade contra as instituições modernas. O padre Januário porém não perdia com isso a  ideia do jantar, e de quanto em quando voltava os olhos para o relógio, cujos lentos ponteiros não correspondiam nunca à impaciência dos seus desejos. Enfim deu uma hora e frei Januário erguei-se instintivamente para ir ver se o jantar estava servido.

Passado pouco tempo tocava a sineta, tão grata aos ouvidos do reverendo. Vibraram pelos desertos aposentados e extensos corredores da Casa Mourisca aquele sons, que em felizes tempos punham em movimento uma numerosa e esplêndida côrte, que os ventos da adversidade tinham dispersado.

D. Luís entrou nasala de jantar, onde com impaciência o aguardava já o capelão.

Aquela grande sala vazia, aquela extensa mesa, apenas servida com quatro talheres, falava tanto do esplendor passado e da decadência presente, que poucos lugares havia na casa que deixassem no fidalgo mais melancólicas impressões. Nunca se lhe anuviava tanto o coração como ao sentar-se-à cabeceira da mesa, em torno da qual outrora vira rostos conhecidos e amigos, hoje tão solitária e abandonada.

. Luís, reparando que o escudeiro principiava a servir, perguntou, apontando para os lugares dos filhos, que ainda estavam de vago.
- Então os senhores não ouviram a sineta?
- Os senhores ainda não vieram.
- Nem Jorge?  - perguntou D. Luís, como se estranhasse menos a ausência de Maurício.
- Nem um, nem outro.
- O snr. D. Maurício - observou o padre, que temia um adiamento do jantar - saiu para a caça; quando virá ele agora?

E dizendo isto, fazia sinal ao criado para que servisse o fidalgo.

- E Jorge? - insistiu o pai.
- O snr. D. Jorge... esse não sei... talvez esteja aqui por alguma parte.

O fidalgo, evidentemente contrariado com a ausência dos filhos, que ainda mais aumentava a solidão daquela sala, resignou-se a principiar a jantar sem eles.

O jantar correu em silêncio.

O humor negro de um dos comensais e o apetite do outro não davam azo ao diálogo.

Estaca o padre deliciando-se com uma farta posta de assado e o cometente acessório de massas, quando Jorge entrou na sala.

D. Luís não lhe dirigiu a palavra, nem sequer um olhar.

Jorge formulou uma vaga desculpa, que o pai interrompeu, com o gesto a mandá-lo sentar; e, passados momentos, levantou-se ele e saiu silencioso.

Frei Januário, tendo já satisfeito as primeiras e mais urgentes exigências do seu estômago, achou-se disposto a continuar o diálogo. Por isso, ao encetar a sobremesa, dirigiu por comprazer a plavra a Jorge:

- Com que vem do seu passeio, hein? A manhã estava bem bonita. E então o que viu por esses campos?
- Muito trabalho, snr. frei Januário, muita vida rural - respondeu Jorge.
- Sim, agora é o tempo das colheitas, Anda por aí tudo azafamado.
- Mas porque é, snr. frei Januário, que nos campos da nossa casa não vejo o movimento dos outros?

A imprevista interpelação do adolescente ia entalando o padre.

- Causou-me sensação isto hoje - prosseguiu Jorge.
- Quem subir ao alto do outeiro da Faia, por exemplo, e olhar de lá, em roda de si, para o vale, pode marcar as propriedades da nossa casa; onde vir um campo quase maninho, um muro a cair, umas paredes negras, um aspecto de cemitério, tenha a certeza de que nos pertencem esses bens.
- Não é tanto assim... É verdade que... meu rico filho, que quer? depois que os homens do liberalismo tomaram conta deste país, as coisas mudaram. Quem não está por o que eles querem...
- Não vejo em que eles influam para isto, snr. frei Januário. Quem nos impede de fazer o que os outros fazem? de cultivar os nossos campos? de pôr homens a trabalhar nossas terras incultas?
- O que os outros fazem, diz ele! Os outros... os outros... e quem são os outros? Uns miseráveis que eu conheci de pé descalço, a limpar os cavalos e a cavar nos campos desta casa.
- Tanto mais para admirar e para louvar o esforço que os tirou dessa posição humilde e os elevou àquela, que hoje ocupam.
- Olhem que grande milagre! Homens que não devem respeito a si mesmos, para quem todo o trabalho está bem,como não hão de enriquecer? Ora essa é muito boa!
- E os que devem respeito a si mesmos estão pois condenados à miséria?
- À miséria... à miséria!... Que palavra! Ora para o que lhe deu hoje! Foi sobre que se lhe pegou? Se ela anda por aí tão acesa! O menino ainda é muito criança para pensar nessas coisas. Coma e beba e...

As faces de Jorge tingiram-se de um rubor intenso, e redarguiu com energia e irritação:

- Não sou criança, frei Januário; acredite que o não sou. Tenho mais de vinte anos e estou resolvido a ser homem. Córo da minha ociosidade, quando vejo que somente as nossas terras fazem vergonha à actividade deste povo. Tenho anos para viver, deveres de honra a cumprir, um nome para conservar sem mancha, e quero saber que futuro me preparam os gerentes da nossa casa, quero desviar a tempo de mim a tremenda responsabilidade de ser na minha família talvez o primeiro a faltar um dia aos seus compromissos. É por isso que falei e que desejo que me responda, snr. frei Januário.
- Ai. menino; isso não é seu! Aí anda doutrina liberal. Eu cheiro-a à distância de léguas. Então quando o senhor seu pai me honra com a sua confiança, é acaso justo, é acaso bonito que eu seja suspeito e interrogado por uma criança, que ainda nada sabe do mundo?
- E quando hei de aprender? Querem-me estúpido, como esses morgados que por aí se arruínam?
- Mas que quer o snr. Jorge afinal? Então não sabe que desde que os lavradores se fizeram fidalgos, ninguém luta com eles? O dinheiro está de lá; para lá vão os trabalhadores; senhor. Ora é boa! Eu acho graça a certa gente!
- O dinheiro está lá! Mas como conseguiram eles enriquecer? Pois não diz que eram uns miseráveis?
- Ah! então quer principiar como ele principiaram, cavando com uma enxada todo o dia e furtando à boca para juntar ao canto da caixa com o fim de comprar uns bois? etc. etc. Veja se quer.
- Não principiávamos de tão longe como eles, escusávamos de tantos sacrifícios. Bastava que olhássemos com atenção para o muito que temos ainda, e que tentássemos desenredar, a pouco e pouco, esta meiada, que nos enleia e que nos há de afogar a todos.
- Ora é boa! E então o que é que eu faço, o que é que estou fazendo há quase trinta e oito anos em que o snr. D. Luís me distingue com a sua confiança? Mas a coisa não é tão fácil, como lhe parece. É boa!
- Mas quais são os seus plano, padre Januário, qual é o seu sistema de administração?
- Os meus planos?!... Ora essa!... Então que planos quer que sejam os meus? Sistema de administração!... isso é frase de cortês... Humh! tenho entendido... É o que eu digo... Ó snr. Jorge, ora fale-me a verdade, aí andam ideias de liberalismo. Com quem falou esta manhã! ora diga.
- Venham de onde vierem as ideias. A origem pouco importa, a questão é que elas sejam boas. Eu não trato de liberais nem de absolutistas agora. Vejo que a minha casa se perde, vejo caírem os muros e nunca se repararem; vejo campos e campos sem menor cultura, encontro em tudo quanto nos pertence profundos sinais de decadência, e quero saber a grandeza do mal que nos oprime.
- E se for grande o mal, o que quer que se lhe faça?
- Quero que se trabalhe para remediá-lo; que se façam sacrifícios úteis, que deixemos a louca vergonha e o orgulho enfuatuado que nos faz viver hoje ainda uma vida que não é destes tempos. Desengane-mo-nos; a época não é de privilégios nem de isenções nobiliárias, é de trabalho e de actividade. Plebeu é hoje só o ocioso, nobre é todo o que se torna útil pelo trabalho honrado.
- Jesus! O que aí vai! O que aí vai! Eu bem o digo! Há liberal na costa! Isso é tão certo como dois e dois serem quatro. Se o pai  o ouvia!
- Há de ouvir-me, porque tenciono hoje mesmo falar-lhe.
- Que vai fazer, snr. Jorge?
- O meu dever. Eu e meu irmão seremos um dia os representantes da nossa família. Para que nos orgulhemos do nome que herdamos, é necessário que esse nome não tenha manchas e que nós lhas não lancemos.
 - Mas quem lhe diz, quem lhe fala em manchas? Ora... ora... ora... ora esta não está má!
- Frei Januário, eu não sou criança, repito-o. Sê-lo-ia ontem, hoje não o sou já. Faça de conta que o sol desta manhã me amadureceu. Por isso não me iludo enquanto à natureza dos meios com que se sustenta ainda nesta casa um resto de esplendor de antigos tempos. Pois mais valeria comer em louça nacional e vender as matilhas e os dois cavalos de luxo, que ainda temos, para comprar dois bois.
- Mas...
- Até logo, frei Januário, conversaremos mais de espaço sobre isto.
- Mas...

Jorge, sem o atender, dispunha-se a sair, quando o padre, puase assustado, o chamou.

-Mas venha cá. Ouça-me valha-me Deus! Olhem que homem este! Tem muita razão no que diz. Sim senhor. As coisas não vão bem. Hoje não é ontem; e esta casa já viveu melhores tempos do que os que correm. Mas de quem é a culpa? É de mim ou do senhor seu pai? Pois não foste! Para remediar o mal trabalhamos nós há muito. A culpa é desta gente que nos governa, destes homens que juraram perder tudo quanto era nobreza para poderem à vontade fazer das suas, sem ter quem lhe vá à mão. Percebe agora? Desde que os liberais...
- Por quem é, frei Januário, não me venha outra vez com os liberais. Eu tenho a razão bastante clara para ver as coisas como elas são, e não me deixar levar por essa cantiga do costume. Os liberais!... Os liberais o que fizeram foi aliviar a agricultura dos enormes encargos que dantes pesavam sobre ela e que não a deixavam prosperar, foi criar leis e instituições que facilitássemos esforços dos laboriosos e castigassem se veramente a incúria e a ociosidade. Quando ao de oprimir-se o lavrador de tributos pesados e iníquos e dos odiosos vexames do fisco, ao tornarem-se-lhe mais fáceis os contactos e as transmissões da propriedade, ao criar-se-lhe recursos para ele tirar do seu trabalho e da sua inteligência dez vezes mais do que antes podia obter, quando na época em que tudo isto se realiza, uma casa como a nossa, em vez de prosperar como tantas, vê apressada a sua decadência, é porque tem em si um velho e incurável cancro a roê-la. E é esse cancro que eu quero conhecer, para extirpar-lo, se ainda for possível.
- Eu estou pasmado! Pelo que ouço, acha o menino que todas essas fornadas de leis, que esta gente tem feito, são muito boas e que a sua casa devia ser muito bem servida com elas?
- Essas leis de que se queixa, são racionais; uma casa racionalmente administrada não pode pois perder com elas.
- Sim, senhor! Visto isso, o menino, que depois da morte dos manos, ficou sendo o filho mais velho da família, gostou talvez muito de ver acabar com os morgados? Sim, como as leis modernas são tão boas, havia de gostar - Argumentou o procurado, com ares de finura, como de quem apanhava em falso o seu adversário.

Jorge respondeu serenamente:

- E porque não? A abolição dos morgados acho eu que foi um grande acto de justiça e de moralidade; além de ser uma medida de longo alcance político.
- Ai... ai... ai... o que mais terei de ouvir! O menino está perdido!... Pois já me aplaude a maldita lei, que há de dar cabo das famílias mais ilustres do reino... Ai, como ele está!...
- Deixe-se disso. A abolição dos vínculos só trouxe a morte às casas que deviam morrer. O que ela fez foi proclamar a necessidade do trabalho indistintamente para quem quiser prosperar. O esplendor das famílias deve ficar somente ao cuidado dos membros delas e não da lei. Quando esses não tenham brio nem dignidade para o sustentar, justo é que ele se apague, e que o nome dos antepassados não continue a ser desonrado pelos vícios e ociosidade dos descendentes. Mas deixa-mo-nos destas discussões, frei Januário.O meu partido está tomado. mais tarde saberá das consequências dele.

E Jorge que saiu da sala, deixando o egresso apertado com o que ouvira.

- Que anda aqui liberalismo, isso para mim é de fé. Mas que mosca o morderia? Querem ver que já fizeram do rapaz maçon? Pois olhem que não é outra coisa. Eu quando os ouço falar muito do trabalho... já estou de pé atrás. Tem graça! Quem os ouvir, persuade-se de que o trabalho é um prazer. Ora adeus! O trabalho é uma necessidade, o trabalho é um castigo. Para aí vou eu. Que trabalho tinha Adão no paraíso? E não lhe chamam os livros sagrados um lugar de delícias? Amassar o pão com suor do rosto, olhem que título de nobreza! Estes modernismos! Mas é a cantiga da moda. O trabalho enobrece, o trabalho consola, o trabalho é uma coisa muito apetitosa... Será, será, mas eu, por mim, se pudesse deixar de trabalhar... Ah! ah! ah!.

Aqui bocejava o agresso.

- Mas que ali anda liberalismo, isso é tão certo como eu estar onde estou. Como ele falou nos morgados!... Provará que é tão pateta que, sendo ele morgado, diz daquilo. E que cai declarar ao pai... Não declara nada. Um criançóla que não sabe senão passear. Tomara ele que o deixem... O ocioso é que é o plebeu, o nobre é o que trabalha. Sim, sim, contem-me dessas. Aquilo é música de anjos. Diga-se o que é verdade, quem puder queixar de trabalhar...

Frei Januário, nestas graves ponderações, deixou-se a pouco e pouco invadir pelo sono, e acabou por adormecer à mesa, sonhando-se em uma espécie de paraíso, com o tal lugar de delícias de Adão, cuja ociosidade sempre fora objecto muito dos seus enlevos.

Deixe-mo-lo adormecer, e vamos ter com Jorge a um dos menos arruinados ângulos da Casa Mourisca."

2 comentários:

Manuel Marques Pinto de Rezende disse...

Por essas e por outras nunca gostei de ler Júlio Dinis.

anónimo disse...

Manuel Rezende,

Obrigado por comentar.

Júlio Dinis era profundamente liberal, e conhecia suficientemente o pensar tradicional português... contudo, pelos visto, não o entendia.

Uma mesma pessoa não consegue crer no pensamento tradicional católico e, ao mesmo tempo, no liberalismo (entre si são contraditórios).

Pena é que os liberais foram os "vencedores", e trataram de nos instruir contra os que "perderam". Pena é que os republicanos mais tarde vieram a fazer o mesmo... etc etc etc ... Por milagre há hoje alguns portugueses de facto, e por milagre uma vez por outra lá aparece algum!

Volte sempre.

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