09/11/12

UM CRIME ANTICATÓLICO POR MAUS CATÓLICOS, "EM NOME" DO CATOLICISMO

A aparência... Não é porque uma maioria de católicos faz algo que tal se considere "coisa caótica". O que é da Igreja, e o que aparenta ser e não é? O que é feito em nome do catolicismo e por católicos, e é na verdade anticatólico?

Trago-vos um texto retirado da Crónica de D. Manuel (1566) de Damião de Góis (Parte I cap. 102), para que se vejam os vários comportamentos tão contrastantes entre os católicos: os bons e aceitáveis católicos e os maus católicos (estes ao ponto de um comportamento anticatólico em nome do catolicismo):



A Matança dos Cristãos-novos

"No mosteiro de S. Domingos da dita cidade [Lisboa] está uma capela a que chamam de Jesus, e nela está um crucifixo no qual foi visto então um sinal, ao qual davam cor de milagre, com quanto os que estavam na igreja achassem e julgavam o contrário, e destes, disse um cristão novo, lhe parecia uma vela acesa que estava posta no lado da imagem de Jesus; ao que ouvindo isto alguns homens baixos [inferior gente do povo] o arrastaram fora da igreja pelos cabelos, e o mataram, e queimaram logo o corpo no Rossio.

A tal alvoroço acudiu muita gente do povo, a quem um frade fez pregação, convocando-o contra os cristãos novos, após o que saíram dois frades do mosteiro com um crucifixo nas mãos, bradando: - Heresia! Heresia! O que imprimiu tanta impressão em muita gente estrangeira, popular, marinheiros de naus que então vieram da Holanda, Zelanda, Hoestelanda e outras partes, assim como homens da terra, da mesma condição e pouca qualidade, que, juntos mais de quinhentos, começaram a matar todos os cristãos-novos que achavam pelas ruas, e os corpos mortos e meio vivos lançavam e queimavam em fogueiras que tinham feitas na Ribeira e no Rossio, ao qual negócio lhes serviam escravos e moços, que com muita diligência acarretavam lenha e outros materiais para acender mais de quinhentas pessoas.

A esta turma de maus homens e dos frades, que sem temor de Deus andavam pelas ruas concitando o povo e a esta tamanha crueldade se juntaram mais de mil homens da terra, da qualidade dos outros, que todos juntos á segunda-feira continuaram nesta maldade com maior crueza; e por já nas ruas não acharem nenhuns cristãos novos, foram cometer com vaivéns [traves de madeira que servem para derrubar muros] e escadas as casas em que viviam ou onde sabiam que estavam, e tirando-os delas a rasto pelas ruas, com seus filhos, mulheres e filhas, os lançaram de mistura vivos e mortos nas fogueiras, sem nenhuma piedade. E eram tamanha a crueza que até nos meninos e crianças que estavam no berço a executavam, tomando-se pelas pernas, fazendo-os em pedaços, e esborrachando-os de arremesso nas paredes. Nas quais cruezas se não esqueciam de lhes meter a saco as casas e roubar todo o ouro, prata e enxovais que nelas achavam, vindo o negócio a tanta dissolução que das igrejas tiravam muitos homens, mulheres, moços, moças, destes inocentes, desapegando-os dos sacrários e das imagens de Nosso Senhor e Nossa Senhora e outros santos, com que o medo da morte os tinha abraçados, e dali os tiravam, matando e queimando misturadamente sem nenhum temor de Deus, assim a elas como a eles.

Neste dia pereceram mais de mil almas, sem haver na cidade quem ousasse de resistir, pela pouca variedade de gente que nela havia, por estarem os homens honrados fora, por causa da peste. E se os alcaides e outras justiças queriam acudir a tamanho mal, achavam tanta resistência que eram forçados a se recolher à parte onde estivessem seguros de lhes não acontecer o mesmo que aos cristãos-novos.

Havia ante os portugueses que andavam encarniçados neste tão feio e inumano trato, alguns, que por se vingarem do ódio e malquerença que tinham com alguns cristãos lindos [genuínos], davam a entender aos estrangeiros que eram cristãos novos; e nas ruas ou em suas casas, onde iam saltear, os matavam, sem em tamanha desventura se poder colocar ordem.

Passado este dia, que era o segundo desta perseguição, tornaram à terça-feira estes danados homens e prosseguir em sua crueza, mas não tanto como nos outros dias, porque já não achavam quem matar, por todos os cristãs-novos que escapavam desta tamanha fúria serem postos em salvo por pessoas honradas e piedosas, que nisso trabalharam tudo o que lhes foi possível, e o tempo de desordem dele lhes pôde conceder, sem poderem evitar que não perecessem neste túmulo mais de mil e novecentas almas, que tanto se achou por conta que mataram estes mais e perversos homens, no que passaram à cidade Aires da Silva, regedor, e D. Álvaro de Castro, governador, com a gente que puderam ajuntar de suas valias, sendo já quase acabado e pacífico o furor desta gente, cansada de matar e desesperada de poder fazer mais roubos dos que já tinham feitos.

Esta nova deram a el-Rei na vila de Avis, indo de Abrantes visitar a infante D. Beatriz, sua mãe, que estava em Beja, de que ficou muito triste e irritado, pelo que, para se proverem em tamanha desordem, logo dali mandou o Prior do Crato e D. Diogo Lobo, barão de Alvito, com poderes para castigarem os que achassem culpados, dos quais muitos foram presos e enforcados, por justiça, principalmente dos naturais, porque os estrangeiros, com os roubos e despojos que levavam, se acolheram a suas naus e se foram nelas cada um para donde era. Aos dois frades que andaram com o crucifixo pela cidade tiraram as ordens e por sentença foram queimados. E el-Rei mandou proceder por seu procurador contra os da cidade e termo e oficiais dela, de que muitos perderam os ofícios e as fazendas; e contra a cidade e termo foi dada sentença."

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