04/10/12

MOMENTO DA MORTE DE D. JOÃO III

El-Rei D. João III, de Portugal

"Uma vez (foi, por sinal, uma sexta feira 11 de Janeiro de 1557), caiu o Soberano com um ataque apoplético. Eram duas horas da tarde. Foi um reboliço indescritível no paço da Ribeira; juntos em consulta os médicos todos à cabeceira do Real Enfermo, presididos pelo Físico mor, declararam urgente uma sangria, e perigoso o mal. A Rainha D. Catarina, com a sua energia costumada, não sossobrou; mandou chamar sem demora ao seu mosteiro da Graça o Bispo de Leiria D. Frei Gaspar do Casal, para confessar el-Rei. Confessou-se, e comungou. Foi geral o sentimento de Lisboa inteira; fecharam-se as lojas, e começaram preces em todas as igrejas, e imponentes procissões, entre as quais uma concorridíssima, desde a Sé até S. Domingos, à boca da noite.

O estado do Rei agravava-se. Teve a Rainha o valor de querer ouvir aos homens da ciência a verdade, fosse qual fosse; e eles disseram, que no estado del-Rei só Deus podia influir: aquela vida preciosa via-se condenada. Foi então que a irmã de Carlos V mostrou quem era, como mulher animosa, e como esposa dedicada, refreando as lágrimas, e tomando entre as mãos um Cruxifixo, aproximou-se devagarinho ao leito do agonisante, e acordando-o suavemente do letargo em que jazia, entregou-lhe a Cruz, e disse-lhe, cheia de douçura, mas com antoridade maternal: Vamos! Animo! Lembrai-vos de que morreis.

O Rei, entreabrindo os olhos, escutava pela última vez aquela voz amiga, e parecia atender ao que lhe ouvia. A Rainha continuava com exortações espirituais, lembrava àquele poderoso da terra o que valem as grandezas mundanas, e mostrava-lhe Deus como termo desta vida transitória. Mandou vir a Unção, que foi administrada ao enfermo.

Achavam-se na câmara muitas pessoas, alêm da Rainha; a grande Infanta D. Maria irmã del-Rei; a Infanta D. Isabel, filha do Duque D. Jaime e viúva do boníssimo Infante D. Duarte; seu filho o senhor D. Duarte; o Cardeal infante D. Henrique; D. Frei Gaspar do Casal, e muitas donas do paço. Pediu el-Rei, como pôde, ao seu amigo o excelente Jorge da Silva o ajudasse a bem-morrer, recitando com ele o Crsdo; acabado isso, a Rainha, vendo seu marido a entrar em artigo de morte, poz-lhe ela própria na mão uma vela benta, e esteve com ele até ao fim. A respiração foi quebrando a pouco e pouco, intercortando-se, e seriam nze e meia da noite quando o filho del-Rei D. Manuel rendeu a alma ao Creador.

Foi logo um pranto horroroso na câmara. A varonil Rainha, que tão animosamente cumprira os seus amargos deveres, caiu então de toda a sua dor, e levada em braços foi encerrar-se no seu oratório.

O terreiro do paço enchera-se de gente. A Cidade inteira jazia em funeral.

Vestido o Cadáver como hábito da milícia da Ordem de Cristo, e posto ao seu lado o estoque e o escudo de Cavaleiro, chamados a Lisboa muitos Grandes que então se achavam nas suas terras, como o Duque de Bragança, o Marquez de Villa-Real, e outros, logo na tarde do seguinte dia, sábado, foram os Reais despojos colocados num ataúde de veludo negro, sobre duas mulas ajeazadas de luto; e entre inumerável concurso de gente, e elas intermináveis de monges, nobres, e povo, foi o despojo do senhor D. João III levado ao mosteiro de Belém."

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