O liberal Rocha Martins descompõe sobre a chegada de D. Miguel:
"Caíam bagadas de lágrimas pelos rostos dos velhos servidores, os homens da chanfana ombreavam com os fidalgos que vinham de bordo nos botes engalanados, as mulheres ajoelhavam como à passagem do Altíssimo, e quando ele pôs pé no lagedo foi no meio de uma louca algazarra carinhosa que atravessou para o coche envidraçado, lindo, cheio de ouro.
- Viva o Senhor D. Miguel! Viva o nosso Rei absoluto!
Ele sorria mais belo, com o seu chapéu de plumas na cabeça formosa e enérgica, via em volta o povoleu amalgamado, homens e mulheres, ribaldas de saiotes custosos, arrieiros e frades, fidalgos e picadores, toda a velha gente de Queluz e da Bemposta, das correrias e das touradas, berrando um coro realista, amigo e forte, uma canção em que havia estrépidos, vinda da musa popular e saudosa:
Rei chegou
Rei chegou
Em Belém
Desembarcou
Na barraca
Não entrou.
O infante esquecia já a divisão de Clinton que o esperava nas terras, a Câmara, os juramentos e naquela passagem, entre palmas vivas, repiques de sinos, estalos de foguetes e berreiro, sorria dentro do coche, olhava docemente o seu povo que o acaudilhava, a horda que se esfalfava na subida da calçada da Ajuda, sem afrouxar; olhava as mulheres que das janelas lhe deitavam flores, lhe acenavam com lenços bordados, por sobre as colchas preciosas, de matizes berrantes à soalheira, loucas, desvairadas pela sua presença, pelo seu renome de príncipe longamente esperado, como se todas fossem suas noivas, e ouvia mais trovas que se improvisavam, as vozes agudas das rascôas clamando:
À entrada de Lisboa
Está um lencinho bordado
Com letras d'ouro que dizem
Viva D. Miguel coroado.
Daí todos repetiam a quadra, cansados pela subida, em redor do coche, cantando o coro furibundo que logo foi um hino perseguidor, um çá ira relengo:
Rei chegou
Rei chegou
Era fértil a inventiva populaceira, Outras vozes brotavam vivamente das bocas, naquela consagração, calçada arriba, vendo sorrir o esbelto infante:
Ailé
Três vezes, três vezes
Viva D. Miguel
Rei dos portugueses
D. Miguel
Sendo diamante
Ele já é Rei
Já não é infante.
Os gritos da saudação ao Rei absoluto soavam com maior Violência, os sinos tocavam alegrias, os foguetes estralejavam nos ares e o mulherio, de saiotes encarnados e grilhões nos pescoços, sorria ao infante, os frades resfolegavam, todos a mostrarem-se, a quererem o seu olhar, improvisando mais versos de um carinho estranho:
D. Miguel chegou à barra
Já lá estava o seu carrinho
Para o levar a palácio
Dançar um bocadinho
Rei chegou
Rei chegou
Em Belém
Desembarcou
Na barraca
Não entrou.
Era um enorme chuveiro de pétalas dos roseirais de Alcolena e Boa Hora, das quintas do Cruzeiro e jardins de Belém, eram risos de mulheres, eram brados vitoriosos dessa multidão esfalfada em torno do coche lento como um paquiderme levando um rajá num banho de Sol; eram as palmas e os vivas, o ruido dos morteiros, o tilintar dos sinos, a onda rumorosa, adoida, que ao ver sumir-se o infante à entrada do paço da Ajuda redobrou de aclamações. Improvisaram-se bailaricos no largo e quando as autoridades, os dignatários, os ingleses de Clinton que ele esquecera, a Câmara que ele desfeiteára, chegaram, já a soldadesca, a maruja, o femeaço, numa loucura ebrifestiva, cercada de fidalgos e de senhoras, saracoteava ao som do hino realista, na sua dança revolta:
Alecrim é verde
A rosa tem cheiro
Viva D. Miguel
D. Miguel primeiro
Rei chegou
Rei chegou.
Atiravam-se os barretes ao ar, chegavam moleiros do Monsanto e do Caramão, de Cazellas e vizinhanças e os morras a D. Pedro e à Carta entravam como balas naquele tiroteio de canções pela sala do paço onde o infante dava beija-mão, onde as donas se dobravam, onde todos se prostravam, naquele ecoar bárbaro do Rei chegou.
Toda a tarde aquela turba dançou, clamou, bebeu. Os picadores pagavam quartilhos, o João dos Santos atirava moedas aos garotos, as ribaldas desenrolavam-se no bailarico e subia sempre o mesmo berreiro louco, febril, a mesma desvairada aclamação ao príncipe mais amado da populaça, que lhe adorava o garbo, a audácia, o pulso firme com que metia o rojão nos toiros em Queluz e Ribatejo além.
Caiu a noite e acendeu-se luminárias pelas torres e pelas fachadas; fiadas de ouro das luzes anunciavam a chegada do infante. Os bandos agora corriam as ruas, numa levada revolucionária, nesse espectáculo odioso que é o da turba solta mesmo quando se diverte, caíam às pauladas sobre os que passavam, despedindo golpes, obrigando todos a cantar o seu chorrilho já sectário:
Rei chegou
Rei chegou
Em Belém
Desembarcou
Na barraca
Não entrou.
Dias depois houve um Te-Deum na Sé. De novo o populacho correu atrás do coche real dando vivas, acaudilhado pelo major Gerardo de Oliveira. Fizeram-se marchas, odes, melodramas à feliz chegada de D. Miguel. Depois, ao cabo de algum tempo, no largo da Ajuda, quando devia prestar juramento, os bandos apedrejaram os constitucionais, partiram os vidros à carruagem do general Caula, espancaram o embaixador inglês Lamb, o principe de Schwatzemberg e o conde da Cunha e correndo ao Terreiro do Paço obrigaram a Câmara a proclamar D. Miguel Rei absoluto. Agitou-se o estandarte do Senado, gritou-se: Real! Real! Real! por D. Miguel Rei de Portugal.
Rei absoluto foi, imposto pela tropa e pela populaça e logo toda a gentalha, os picadores, o Sedvem, o D. Christovão, o José Veríssimo, os arrieiros, os soldados, dominaram cinco anos ao som do seu coro de ódios ou de cóleras que já tinham acrescentado, ao ritmo das cacetadas partidárias:
Rei chegou
Rei chegou
Em Belém
Desembarcou
Na barraca
Não entrou
Aos realistas
Abraçou
Aos "malhados"
Não falou.
Foi Rei, um Rei da nobreza coisa de regalias, do povoleu e dos frades, um Rei amado no frenesim, na loucura que a turba dispensa ao que a lisonjeiam, amor alto hoje logo esquecido como o das ribaldas, Rei carregado de mimos e de erros, Rei que só começou a ser homem quando tão honesto se mostrou em Évora-Monte. Depois tudo amorteceu; o constitucionalismo chegou a fazer o que o absolutismo já fazia, ao passo que o Rei, pobre, cheio de desditas, pagando as ligeirezas da mocidade, andava na jornada mísera de Roma, com pena desse povo, com saudade das mulheres que cantavam à sua passagem:
D. Miguel
Lindo ramalhete
Ele já é Rei
Já não é cadete.
Então talvez pensasse que bem melhor teria sido ficar sempre o cadete donairoso e galhardo, com o seu ar turbulento, o amor nos seus olhos vivos de peninsular que se deviam turvar à luz cruel do exílio, enquanto cá num cantinho verde de Queluz ou do Monsanto só alguma velha moleira de cabelos brancos cantava ainda, a embalar os netos nos braços pobres, aquelas trovas ora doces ora bárbaras do çà ira realengo, do Rei chegou."
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