19/02/12

COMUNISMO DO INFERNO III

(continuação do II parte)

CRISE DE FOME - PRIMEIROS RESULTADOS DO COMUNISMO

No escritório local do Soviete, exíguo mas asseado, encontrei uma conferência em andamento. Tendo-me apresentado e exibido o documento que me declarava Delegado Oficial do Departamento Político e do Comité Regional, insisti em que prosseguissem com a sessão. O comissário do Soviete local, Belousov, mostrava-se evidentemente atemorizado pela presença do secretário local do Partido, Camarada Kobzar. Também estava presente o administrador da fábrica eléctrica, Karas.

Não tenho palavras bastante fortes para descrever o horror das cenas que presenciei naquela manhã em que, acompanhado por Chadai, inseccionei, uma por uma, as casas da aldeia. No campo de batalha, a morte é rápida, o indivíduo pode reagir, existe a noção de solidariedade e de um dever a cumprir. Aqui, eu via homens morrendo isolados, morrendo aos poucos, uma morte sem beleza, sem justificação do sacrifício feito por uma causa. Eram criaturas desmaiadas e abandonadas à morte por inanição, por culpa de uma deliberação política tomada à volta de mesas de conferências ou de banquetes na capital longínqua.

O espectáculo mais impressionante era o fornecido pelas  criancinhas, de membros esqueléticos e ventre abaulados. Nos rostos, de onde todos os traços de juventude tinham desertado, só a expressão dos olhos conservava um longínquo clarão de inocência. Por toda a parte encontrávamos homens e mulheres deitados de bruços, o rosto e o ventre entumecidos, os olhos esgazeados.

Em determinada porta batemos sem obter resposta. Depois de bater pela segunda vez, empurrei-a suavemente e através de um corredor estreito chegávamos à única divisão da casa. Os meus olhos, de início atraídos pela luz de um ícone na parede, desceram depois até uma cama onde estava estirado o corpo de uma mulher de meia idade, as mãos cruzadas no peito sobre uma blusa ucraniana bordada e engomada de fresco. Aos pés da cama, uma velha e duas crianças aproximadamente da mesma idade, que choravam mansamente e repetiam em tom monótono e plangente: "Mãezinha, mãezinha querida". Passando os olhos em volta, deparei com o corpo inchado, inerte, de um homem estendido sobre a coberta do forno inútil.

O horror daquele quadro residia menos no cadáver sobre a cama do que nas condições dos vivos que testemunhavam a cena. As pernas da velha estavam entumecidas a mais não poder ser; o homem e as crianças haviam indubitavelmente alcançado os últimos limites da inanição. Retirei-me rapidamente, envergonhado da minha pressa.

Na casa vizinha encontrámos um homem de cerca de quarenta anos, sentado num banco, a consertar um sapato, Tinha o rosto inchado. A seu lado, um rapaz de aspecto asseado, reduzido a pouco mais que um esqueleto, tinha um livro entre as mãos e uma mulher, extremamente magra, atarefava-se no fogão.

-"Que está a cozinhar, Natalka?" perguntou Chadai.
-"Você bemsabe", respondeu a mulher, e na sua voz havia uma fúria assassina.
Chadai fez-me sina e retirámos-nos.
-"Porque razão ficou ela tão zangada?" perguntei-lhe cá fora.
-"Porque.. - na verdade, tenho vergonha de dizer-lhe, Victor Andreyevich... - está cozinhando esterco de animal com algumas ervas".

O meu primeiro impulso foi voltar à casa e impedir aquilo, mas Chadai deteve-me. "Não vá, peço-lhe. Você não conhece o ponto de miséria alimentar a que chegou esta gente. São capazes de matá-lo, se tenta tirar-lhes a vasilha".

(VICTOR KRAVCHENKO, Escolhi a Liberdade.)
(continuação, IV parte)

Sem comentários:

TEXTOS ANTERIORES