Escolhi o texto “A Autoridade de um Santo”, retirado do livro "Portugal Cruzada Sem Fim”, do Padre Francisco Videira Pires. Escutemos então o que diz um súbdito de Castela, S. Francisco Xavier, a respeito dos portugueses, da atitude dos governadores aportuguese, e do Rei D. João III de Portugal:
A AUTORIDADE DE UM SANTO
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"Ainda ninguém se lembrou de escrever a monografia da vida quotidiana dos Portugueses no Oriente, em tempos de S. Francisco Xavier. Só as cartas, completadas com os escritos dos primeiros correspondentes e biógrafos, dar-nos-iam um dos livros mais coloridos e exactos sobre esse período tão decisivo da nossa história ultramarina. Além da cor local e do pitoresco do quadro, o que lhe brota da pena fornece-nos, frequentemente, documentos de primeira-mão para a nossa situação nessas longínquas paragens, como quando nos diz, em confissão do ano 1552: «Há oito ou nove annos que forão descubertas estas ilhas do Japão pelos portugueses» (1), num dos mais firmes testemunhos do encontro desse império do Sol Nascente, em 1543. Aqui e além, quase a cada página, saltam informações preciosas acerca da firmeza e lucidez da nossa colonização. Vá de exemplo só esta curta frase relativa ao régulo Hairun: «O rei de Maluco é moiro e vassalo do Rei de Portugal, e honrase muito de o ser, e quando nele fala chama-lhe: o Rei de Portugal meu Senhor. Pala este rei muito bem português» (2).
Onde, porém, a sua autoridade sobreleva a de todos os historiadores que tratam da nossa presença no Oriente, através dessa década da sua actividade evangelizadora, é em tudo o que se refere à missionação. Não fosse ele o maior Apóstolo da época moderna, a dominar, de muito alto, não só os breves anos abrasados da sua incessante caminhada por terras e mares, mas tudo quanto veio depois, no sulco decisivo da sua pegada. Alguém falou mais eloquentemente dos objectivos espirituais do nosso domínio oriental? Tão clara e terminante é a impressão que nos deixou, que ela só basta para anular as fantasias de historiógrafos comprometidos ou de inimigos de Portugal, quando fazem dessas conquistas o paradigma acabado da capacidade das nossas gentes ou da pirataria dos nossos cabos de guerra.
S. Francisco Xavier observa muito bem todos os desmandos; mas nunca se esquece de sublinhar que eles constituíam uma traição à linha cristianíssima da política oficial e às orientações constantes dos nossos Reis. A sua palavra tem, pois, de tomar-se como padrão valorativo das restantes afirmações reivindicadoras de autores como Sá de Miranda, Diogo do Couto, Camões ou mesmo Castanheda e Gaspar Correia.
Quem se atreveu a caluniar a flor dos capitães da Índia, crismando-os com a feia alcunha de chatins? Ouça, então, o Santo contar ao Rei D. João III, mesmo em cima dos factos, como um punhado de bravos defendera a fortaleza de Maluco «gastando o seu e de seus amiguos em dar de comer a pobres lascarins, e aguazalhando os castelhanos que da Nova Espanha vierão, provendo-os de vestidos e comer, mais como a proximos que como ymiguos», para logo acrescentar esta afirmação vingadora: «Estes capitães de Vosa Alteza, como são mais cavaleiros que chatins nem mercadores, não se souberão aproveitar pera ajuda dos seus guastos do fruto do cravvo, que Deos neste terra daa; esperão ho gualardão de seus servviços de Deus primeiramente, e despois de Vossa Altezas» (3)
Outra carta para o monarca há-de gastá-la toda com uma estirada lista de Portugueses de lei, que se tinham assinalado na defesa de Malaca. Cita-lhes os nomes, indistintamente, solteiros e casados, nobres e populares, para que o Rei lhes «dee os agradecimentos», pois «os homens de cá, acrescenta, que gastão o seu em serviço de V. A., nenhuma cousa tamto deseyão, como saberem que está V. A. no cabo de seus serviços, para que os honre escrevendo-lhes e dando-lhes os agradecimentos» (4). Este «hé pobre e bom»; aqueles; abastados, «gastaram muito neste cerco» (...), «e o que lhes fica, guardam-no pera servir V. A.»; um não se poupa a «serviços e gastos que faz com os christãos»; e outro de nome Diogo Borges, foi ao ponto de trabalhar e consumir fazenda «com el-Rey das ilhas Maldiva de maneira que se fez christão» (5).
Qual é, na mente de Xavier, a preocupação missionária das autoridades, a começar pelo Rei? Como vivem os portugueses do Oriente a nossa vocação ecuménica de dilatar a Fé?
De D. João III refere para Roma a S. Inácio de Loiola, ainda de Lisboa: «O Rei me disse, quando dele me despedi, que por amor de Nosso Senhor lhe escrevesse muito por lago da disposição que há lá para a conversão daquelas pobres almas, doendo-lhe muito da miséria em que estão metidas, e muito desejoso de que o Criador e Redentor delas não seja perpêtuarnente ofendido das criaturas, à sua imagem e semelhança criadas, e com tanto preço compradas (6). É tanto o zelo que Sua Alteza tem da honra de Cristo nosso Senhor e da salvação dos próximos, que é coisa para dar infinitos louvores e graças a Deus ver um Rei que tão bem e piamente sente das coisas de Deus: e é assim que, se eu não fosse testemunha de tudo como sou, não pudera crer o muito que nele vi» (7).
"Vai o Santo na armada em que o novo Governador da Índia, Martim Afonso de Sousa, navega, a tomar posse do seu alto cargo. Desde o Tejo, como bom conhecedor dos problemas desse Oriente em que longamente servira a Pátria, é ele o primeiro guia missionário de Xavier, rasgando-lhe abertas, apontando-lhe regiões em que a actividade apostólica recolheria frutos mais compensadores, iniciando-o na complexa psicologia dos povos asiáticos, na sua vida, nos seus costumes, quem sabe até se nos primeiros rudimentos dos falares nativos. Nele encontrou sempre o benfeitor generosíssimo, o protector desvelado dos seus neófitos, o cristão fervoroso que não se cansava de alcançar graças espirituais da Santa Sé para as terras indianas (8)
As cristandades de Tutucurim vêem-se gravemente molestadas pelos mouros vizinhos? Martim Afonso de Sousa vai sobre estes, desbarata-os, restitui os haveres roubados os pobres cristãos paraveres, que, por isso, «têm o Senhor Governador como pai e o Senhor Governador os tem por filhos em Cristo gerados. Deus nosso Senhor sabe quanto me tem encomendadas estas novas plantas de Cristo.
O sucessor, D. João de Casto, após efémero desentendimento inicial, fará dele seu confessor e conforto, na hora da morte, pois, como escreve Jacinto Freire de Andrade, na sua prosa académica, talhada pela sintaxe latina dos memoralistas romanos, «logo que o Vice-Rei entendeu que era chamado a mais dura batalha, se recolheu com o Padre S. Francisco Xavier, buscando para tão duvidosa viagem tão seguro piloto; o qual lhe foi, todo o tempo que durou a doença, enfermeiro, intercessor e mestre» (10)
De tal modo o taumaturgo se identificara, pela alma, com os destinos da Pátria adoptiva, que a expressão «os nossos Portugueses» (11) contrasta nele, flagrantemente, com a vaga e fria designação de «castelhanos», com que alude aos espanhóis.
Bem souberam os nossos compatriotas seus contemporâneos corresponder a esta predilecção. Mercadores lusos lhe abriram o caminho, por todos os lados, ao longo da costa indiana, nas Malucas, na China, principalmente no Japão. Eles acendem, na sua alma insatisfeita, a ânsia de ir sempre mais longe, com as primeiras informações acerca da possibilidade em pregar o Evangelho. Levam-no graciosamente a bordo das naus, quando não lhe põem na mão todo o dinheiro que precisa, para a viagem, para levantar igrejas e colégios, que mantêm com esmolas constantes e avultadas. Quem naturalmente mais se salienta é D. João III. Ele sustenta as fundações, com grossas rendas. Uma hora suspeitou Xavier que o monarca se preocupava mais com os lucros materiais da Índia (12). Extremamente grave era a dúvida, até porque inteiramente infundada. O Piedoso, como logicamente sugerem os dois maiores especialistas da epistolografia xaveriana, - Jorge Schurhammer e José Wicki (13), deve tê-lo informado das tremendas despesas e apertos económicos em que se via o erário público. Só assim se compreende esta palavra de justiça, a neutralizar aquela Outra suspeita bem ácida: «…El-Rei não os provê (aos Padres da Companhia de Jesus de algumas casas da Índia), pelo pouco dinheiro que tem» (14).
Para abreviar Os numerosos testemunhos comprovativos da constante munificiência régia, bastem estas linhas: «Em todo este tempo que estivemos em Japão nos mandou dar pasamte de mil cruzados. Não se pode crer quão favorecidos somos de Sua Alteza, e o muyto que connosquo gasta em dar tão largas esmolas para colegios, casas e todas as outras necessidades» (15).
Émulos do soberano, os particulares traziam também sempre as mãos abertas, para ocorrer ao enorme sorvedoiro da sua empresa. O aventureiro Fernão Mendes Pinto, além de outros, empresta-lhe «trezentos cruzados pera fazer huma casa em Amanguchi» (16). E mais fez ainda o capitão de Malaca, D. Pedro da Silva Gama, - filho do descobridor do caminho marítimo para a Índia, o qual não só lhe adiantou igual quantia, mas aprestou o navio que o levará até ao Japão, cumulado de ricos presentes para o dáimio que o recebesse (17).
Mas já no coração lhe arde a febre de cristianizar a China, Faz-se na volta do mar, ainda pela mo do mercador português Diogo Pereira, que lhe oferta magníficas dádivas, para levar ao rei chinês. Nenhumas igualam, porém, o dom real de D. João III para o imenso império que ele espera, agora, abrir ao Evangelho. Xavier lho confidencia, em carta que é também o adeus final, antes de fechar os olhos na ilha de Sanchão, com a costa verde da China a esfumar-se, entre a neblina do horizonte: «E de parte de V. A. levo-lhe uma peça, que nunca foi enviada por nenhum rei nem senhor àquele rei, que é a lei verdadeira de Jesus Cristo, nosso Redentor e Senhor» (18).
O que nos espanta é que o Santo, em vez de condenar farisaicamente o mercantilismo lusíada, ainda o encoraja, sugerindo a necessidade de o intensificar com o Japão, mediante a criação de uma feitoria em Sacai. «Os Padres quando vierem (recorda), fazei com o Governador que mande algumas peças e presentes para o Rei de Japão com uma carta, porque confio em Deus que, se se convertesse à nossa santa fé, que se há-de suceder muito proveito temporal para o Rei de Portugal, fazendo-se uma feitoria em Sacai, que é porto mui grande, e uma cidade onde há muitos mercadores e mui ricos, e muita prata e oiro, mais que em nenhuma outra parte do Japão» (19).
Ninguém mais realista que os místicos do catolicismo. Bergson tinha razão. Longe de reprovar o comércio português do Oriente, como os fariseus de hoje, Xavier impulsiona-o ainda. (…)
Mas voltemos a D. João III. A historiografia romântico-liberal fez dele um imbecil e um “beato”. Só porque introduziu a Inquisição em Portugal e se tornou o mais desvelado protector da Companhia de Jesus, em todo o mundo, como proclamaram, a uma voz, S. Inácio de Loiola, S. Francisco Xavier e o P. Simão Rodrigues (20). A despeito de erradios fogos-fátuos, cada vez mais esparsos e hesitantes, ateados aos manes do Herculano panfletário, toda a boa crítica reconhece já que temos antes de considerá-lo, pela energia com que lutou por impedir a inevitável decadência da nossa grandeza, pela protecção clarividente dispensada à cultura, pelo brio em prestigiar tudo o que fosse legitimamente português, pelo alto sentido moral que imprimiu sempre ao duro ofício de reinar e principalmente pela empresa ciclópica da colonização do Brasil (que a ele em primeira mão se deveu, desde a experiência das capitanias, ao sapientíssimo Regimento para o Governador-Geral Tomé de Sousa, passado a 17 de Dezembro de 1548, ao desvelado amparo dado a todas as iniciativas missionárias dos Jesuítas), — por tudo isso, o Piedoso entrou já a considerar-se um dos vultos salientes da nossa história.
Poucos episódios nos darão, porém, tão perfeitamente a medida da sua forte personalidade, como o diálogo aberto que, durante dez anos, travou com S. Francisco Xavier. Nas cartas de ambos, vibra sempre a linguagem da sinceridade firmemente cristã. Era incapaz o Santo dum assomo de adulação; desconhecia o Rei a covardia da pequena vaidade, ferida pela afirmação acaso rude, mas leal. Dai que todas as discrepâncias acabassem por se ajustar, na harmonia das almas superiores.
Ao partir de Lisboa, levava certamente Xavier, além de outras, a missão de informar D. João de tudo quanto de interesse observasse nos domínios portugueses do Oriente, em especial no que respeitava à obra missionária. Ele o confessa, para Roma, a S. Inácio: «El-Rei me disse, quando dele me despedi, que por amor de Nosso Senhor lhe escrevesse muito largamente da disposição que há lá para a conversão daquelas pobres almas» (21). Em carta de 1541, diz-lhe: «Por me Vossa Alteza mandar por suas cartas que lhe escreva dos que nestas partes o servem com muita verdade e fieldade, faço saber a Vossa Alteza que Duarte Barreto o tem mui bem servido em Malaca, servindo-o de feitor» (22). E, já para o termo da sua infatigável correria apostólica, a 8 de Abril de 1552, ainda abre deste modo uma extensa carta para o monarca: «Este ano de 52 escrevi a V. A., de Cochim, nas naus que foram ao Reino, da cristandade do Japão, e na disposição que há naquela terra, e do rei de Bungo quão amigo era de V. A., e em sinal de sua amizade escreveu a V. A. e lhe enviou suas armas» (23).
Fiquem estas citações, curto ramalhete cortado entre tantas outras omitidas, para que ninguém documentadamente recuse o facto de que S. Francisco Xavier seria, por entÉmulos do soberano, os particulares traziam também sempre as mãos abertas, para ocorrer ao enorme sorvedoiro da sua empresa. O aventureiro Fernão Mendes Pinto, além de outros, empresta-lhe «trezentos cruzados pera fazer huma casa em Amanguchi» (16). E mais fez ainda o capitão de Malaca, D. Pedro da Silva Gama, - filho do descobridor do caminho marítimo para a Índia, o qual não só lhe adiantou igual quantia, mas aprestou o navio que o levará até ao Japão, cumulado de ricos presentes para o dáimio que o recebesse (17).
Mas já no coração lhe arde a febre de cristianizar a China, Faz-se na volta do mar, ainda pela mo do mercador português Diogo Pereira, que lhe oferta magníficas dádivas, para levar ao rei chinês. Nenhumas igualam, porém, o dom real de D. João III para o imenso império que ele espera, agora, abrir ao Evangelho. Xavier lho confidencia, em carta que é também o adeus final, antes de fechar os olhos na ilha de Sanchão, com a costa verde da China a esfumar-se, entre a neblina do horizonte: «E de parte de V. A. levo-lhe uma peça, que nunca foi enviada por nenhum rei nem senhor àquele rei, que é a lei verdadeira de Jesus Cristo, nosso Redentor e Senhor» (18).
O que nos espanta é que o Santo, em vez de condenar farisaicamente o mercantilismo lusíada, ainda o encoraja, sugerindo a necessidade de o intensificar com o Japão, mediante a criação de uma feitoria em Sacai. «Os Padres quando vierem (recorda), fazei com o Governador que mande algumas peças e presentes para o Rei de Japão com uma carta, porque confio em Deus que, se se convertesse à nossa santa fé, que se há-de suceder muito proveito temporal para o Rei de Portugal, fazendo-se uma feitoria em Sacai, que é porto mui grande, e uma cidade onde há muitos mercadores e mui ricos, e muita prata e oiro, mais que em nenhuma outra parte do Japão» (19).
Ninguém mais realista que os místicos do catolicismo. Bergson tinha razão. Longe de reprovar o comércio português do Oriente, como os fariseus de hoje, Xavier impulsiona-o ainda. (…)
Mas voltemos a D. João III. A historiografia romântico-liberal fez dele um imbecil e um “beato”. Só porque introduziu a Inquisição em Portugal e se tornou o mais desvelado protector da Companhia de Jesus, em todo o mundo, como proclamaram, a uma voz, S. Inácio de Loiola, S. Francisco Xavier e o P. Simão Rodrigues (20). A despeito de erradios fogos-fátuos, cada vez mais esparsos e hesitantes, ateados aos manes do Herculano panfletário, toda a boa crítica reconhece já que temos antes de considerá-lo, pela energia com que lutou por impedir a inevitável decadência da nossa grandeza, pela protecção clarividente dispensada à cultura, pelo brio em prestigiar tudo o que fosse legitimamente português, pelo alto sentido moral que imprimiu sempre ao duro ofício de reinar e principalmente pela empresa ciclópica da colonização do Brasil (que a ele em primeira mão se deveu, desde a experiência das capitanias, ao sapientíssimo Regimento para o Governador-Geral Tomé de Sousa, passado a 17 de Dezembro de 1548, ao desvelado amparo dado a todas as iniciativas missionárias dos Jesuítas), — por tudo isso, o Piedoso entrou já a considerar-se um dos vultos salientes da nossa história.
Poucos episódios nos darão, porém, tão perfeitamente a medida da sua forte personalidade, como o diálogo aberto que, durante dez anos, travou com S. Francisco Xavier. Nas cartas de ambos, vibra sempre a linguagem da sinceridade firmemente cristã. Era incapaz o Santo dum assomo de adulação; desconhecia o Rei a covardia da pequena vaidade, ferida pela afirmação acaso rude, mas leal. Dai que todas as discrepâncias acabassem por se ajustar, na harmonia das almas superiores.
Ao partir de Lisboa, levava certamente Xavier, além de outras, a missão de informar D. João de tudo quanto de interesse observasse nos domínios portugueses do Oriente, em especial no que respeitava à obra missionária. Ele o confessa, para Roma, a S. Inácio: «El-Rei me disse, quando dele me despedi, que por amor de Nosso Senhor lhe escrevesse muito largamente da disposição que há lá para a conversão daquelas pobres almas» (21). Em carta de 1541, diz-lhe: «Por me Vossa Alteza mandar por suas cartas que lhe escreva dos que nestas partes o servem com muita verdade e fieldade, faço saber a Vossa Alteza que Duarte Barreto o tem mui bem servido em Malaca, servindo-o de feitor» (22). E, já para o termo da sua infatigável correria apostólica, a 8 de Abril de 1552, ainda abre deste modo uma extensa carta para o monarca: «Este ano de 52 escrevi a V. A., de Cochim, nas naus que foram ao Reino, da cristandade do Japão, e na disposição que há naquela terra, e do rei de Bungo quão amigo era de V. A., e em sinal de sua amizade escreveu a V. A. e lhe enviou suas armas» (23).
Fiquem estas citações, curto ramalhete cortado entre tantas outras omitidas, para que ninguém documentadamente recuse o facto de que S. Francisco Xavier seria, por então, um dos informadores de mais confiança que o nosso Rei mantinha no Oriente, em tudo o que lhe importava saber, no plano temporal e mais no espiritual. Pelos elementos de que dispomos, havemos de concluir que o atendeu sempre.
"Estendidas e recheadas de súplicas e exigências vinham para Lisboa as suas cartas. As que se relacionam com as cristandades indianas são, por certo, as mais vivas. (…) Para mais, nessas paragens, palpitava, mais estuante, a presença lusíada, desde capitães de praças fortes espalhadas por ilhas e costas, a mercadores que sulcavam dia e noite os mares ou jornadeavam por essas terras, a missionários que arroteavam cristandades florescentes, mesmo onde não alastrava a sombra da nossa bandeira dominadora. Pobres, pela maioria das últimas castas sociais, apertados entre orgulhosos brâmanes e moiros fanáticos, esses cristãos, os da costa da Pescaria e de Ceilão mais que nenhuns, viam-se, a cada volta, perseguidos pelos vizinhos e potentados pagãos, que os roubavam, maltratavam e martirizavam até. O plano de Martim Afonso de Sonsa, que é de juntar todos estes cristãos, que estão longe um dos outros, e pô-los numa ilha, e dar-lhes rei que olhe por eles, mantendo-lhes justiça e com isto juntamente olhe pelas suas almas», como o próprio Santo se exprime (24), esse generoso projecto fracassou. E a ferida desta grave preocupação continuou aberta, a sangrar.
Não era menos dramática a situação da Igreja, em Ceilão. Uma rivalidade dinástica entre príncipes locais, em que o senhor cristão, preferido por Xavier, saiu preterido ao outro, muçulmano e perseguidor do catolicismo nessas plagas, levou ao rubro a sua indignação. Em abono da verdade, devemos declarar que D. João de Castro, Vice-Rei da Índia nessa altura, procedera de boa-fé, ludibriado pela astúcia do régulo moiro. A explosão de sinceridade do Santo raia, então, pela violência, quando ãssim se dirige ao Rei de Portugal: «V. A. nam hé poderoso na Imdia pera acrecentar a fé de Christo, e hé poderoso pera levar e posuir todas as riquezas temporais da Índia» (25). Desabafou rude, arrebato momentâneo de alma cristalina e singela, que ignorava os meandros da torcida diplomacia oriental, em que D. João III e o seu Vice-Rei se viam enovelados, bem os emendaria, ao diante, em numerosas confissões, das quais ressaltam, com toda a limpidez, a nunca recusada generosidade do nosso monarca e a primazia que impunha sempre à obra espiritual, Aduzi já os mais importantes, nas páginas precedentes.
Magnífica reparação lhe dariam, sem demora, tanto D. João de Castro, segundo refere Orlandini (26), como o próprio soberano, em minuciosa carta que Jacinto Freire de Andrade insere, e na qual parece propor-se, expressamente, satisfazer, ponto a ponto, cada urna das reclamações do famoso apóstolo (27).
Determina que os novos cristãos «gozem todas as isenções e liberdades dos tributos». Nenhum poderá ser forçado a servir nas armadas portuguesas. Manda repartir «trezentas fanegas de arroz perpétuas» à cristandade de Chaul. Protege todos os convertidos contra as extorsões de moiros, Quanto aos paraveres, não os defende só das violências de capitães nossos sem escrúpulos, como «sobre tudo vos encomendamos, que em tudo o que se oferecer, consulteis ao Padre Francisco Xavier», Pede contas ao rajá de Ceilão «das crueldades que executou nos que à nossa Santa Fé se converteram». Ordena a construção de numerosas igrejas, «da traça e magestade que vos parecer conveniente, pois é cousa que nada mais despertará nos Gentios a devoção às cousas da nossa Santa Fé, que a afeição que da nossa parte virem». E termina com este preceito, que é uma fórmula admirável do sentido da nossa colonização: «Os que se convertem sejam bem tratados, para que os mais se afeiçoem, favorecendo-os não só em geral, mas ainda em particular, por pobres e miseráveis que sejam».
Porque as medidas propostas não surtiram o efeito almejado (tão fundos eram os males, para se sanarem num ápice), não custa aceitar que a nomeação de D. Pedro de Mascarenhas, o velho amigo da Companhia de Jesus, por cuja mão ela entrara em Portugal, para Vice-Rei da Índia, obedecesse ao propósito de oferecer a Xavier o colaborador ideal que, no campo civil, ele ambicionava.
Mas chegava tarde, pois o grande taumaturgo acabava de expirar, «chamando peilos sanctissimos nomes de Jesus e Maria, com os quais na bocca e no coração deu a bem-aventurada alma a seu Criador, ficando o seu rosto com tão extraordinária formosura, como se lhe começara já a communicar parte da gloria que logo recebeo», conta um dos seus primeiros biógrafos portugueses, no estilo ingénuo e doirado das legendas medievais. Lentos como eram os correios, nessa época, nau que largava nau que regressava do Reino, em arrastados meses de escala, tanto à ida como na volta, só três anos corridos, em 1555, D. João III tomou conhecimento da infausta nova, Imediatamente se apressa a expedir ao Governador da índia, já Francisco Barreto, esta belíssima carta, espelho cristalino de um Rei, grande como poucos, e efusão comovida de uma alma medularmente cristã:
«Governador amigo. Eu El-Rei vos envio muito saudar. A vida e obras e trabalhos do P. M. Francisco foram de tanto exemplo e edificação, que averia por grande serviço de Nosso Senhor manifestaren-se pera sua gloria e louvor, E pera que isto se possa fazer com authoridade que pera isso se requere, vos encomendo muito que com a mayor diligencia que poderdes, façais tirar em todalas partes da Índia, ónde ouver pessoas dignas de fee que disto saibão, instrumentos authenticos de todas as cousas de edificação e obras sobrenaturaez que Nosso Senhor obrou pelio dito Padre, assym em sua vida como depois de sua morte, E como isto for feito mo enviareis por vias approvado com toda authoridade; e muito vo-o agradecerey. Escrita em Lisboa a desasseis de Março de 556» (29).
Perdera o Rei, na terra, o melhor Amigo; mas ganhara um advogado no Céu. Não lhe escreverá mais, com palavras terrenas. Doravante, rezar-lhe-á de joelhos, naquele diálogo, mais íntimo que nunca, de uma alma com outra alma."
(1 ) Georgius Sdiurhammer S. L et Josefus Wicki S. 1., Epistotae S. Francisci Xaverii aliaque ejus scripta, nova editio, (...) ediderunt (... ),Romae, 1945, tainus II, p. 254
(2) Ib., tomus 1, p. 385 e 386.
(3) Id., ib., tomus 1, p. 348.
(4) Id.. ib.. tomus 11, p. 302.
(5) Id,, ib,., II, p. 304; 302 e 303; 305 e 307.
(6) Resgatadas
(7) Id. ib., 1., p. 81
(8) Id., ib.. 1, p. 133-135 e 139-140.
(9) Id., il,., p. 150.
(10) Jacinto Freire de Andrade, Vida de D. João de Castra, Lisboa, 1852, p. 331.
(11) G. Schurhannuer et J. Wicki, Epistolae..., tomus 1, p. 346.
(12) Id., ib., 11, p. 61.
(13) Cfr. ib,. II, p. 318, n. 6.
(14) Id., ib., II, p. 318.
(15) Id.. :b., II, p. 273.
(16) Id., ib., II, p. 304 e 305.
(17) Id., II, p. 117-119, p. 467 e 468.
(18) Id., ib., II, p. 361.
(19) Id., ib., II, p. 223.
(20) S Ignácio de Loyola, Obras Completas de..., B. A. C., Madrid, MCMLII, p. 681-831; Cfr. também Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, tomo 1 (vol. 1), pussim.
(21)G. Schurhanimer e J. Wicki, Epistolae S. Francisci Xaerii..., I, p, 81.
(22) Id., ib., II, p. 157.
(23) Id., Ib., II, p. 360
(24) Id., ib., I, p. 150 e 151.
(25) Id., ib., II, p. 61.,
(26) Orlandini, Hjstoriae Sodetatjs Jesu pars prima, Antuerpia, 1620, Liv. VIII, n.° 112.
(27) Jaeinto Freire de Andrade, Vida de D. João de Castra, Lisboa, 1852, p. 54-61.
(28) P. Sbastiam Gonçalves, Primeira Parte da História dos Religiosos da Companhia de Jesus, (...)publicada por José Wicki S. L, vol. I, Coimbra, 1957, p. 418.
(29) O original autentico, ainda para D. Pedro de Mascarenhas, é mais completo. Mas, entre uma tradução da sua versão latina ou francesa, que era a única de que dispunha, em Tuirsellini ou A. Brou (Cfr. Horatius Tursellinus, S. I., De t’ita Francisci Xaverii... libri sex, Romae, 1956, 111,. VI, cap. 1; A. Brou, S. J., S. François Xatier, Beauchesne, Paris, 1912, vol, II, p. 392), preferi o único original português que tenho à mão, apesar das suas lacunas.
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