25/03/18

Sermão sobre Sta. Teresa de Ávila em dia de Ramos - "PRO MULTIS"


§II

345. Declara melhor o que tenho daquele soberano Juiz, e Senhor Sacramentado, em outro sucesso milagroso, e raro, e foi, que comungando Teresa aquele divino Pão em dia de Ramos, antes que passasse a forma Sagrada ao estômago, ficou com grande suspensão, da qual como volvesse em si depois de um espaço, lhe pareceu que verdadeiramente tinha toda a boca cheia de sangue, e a si mesma, e que todo os seu rosto, e toda ela estava banhada no mesmo sangue tão quente, como se então se acabara de derramar. Era excessiva a suavidade, que com este divino banho sentia, e disse-lhe o Senhor: Filha eu quero, que o meu sangue te aproveite, e não haja medo, que te falte minha misericórdia. Eu o derramei com muitas dores, e tu o gozas com grande deleite; como o vez. (46) Há maior maravilha? Há maior fineza? Há prova mais clara para confirmar o discurso em que estamos, e nossa matéria? O sangue que derramou Cristo por todos, e pela redenção de todo o mundo; e agora o lemos derramado só por Teresa. E que o extremo que Cristo o obrou por todo o mundo, o obrasse só por Teresa, e a maior maravilha, obrar só por Teresa o extremo, que tinha obrado por todos, a publica a mais amada, e uma que vale por tudo na estimação Divina.

346. Entre mortais agonias se via o Amorosíssimo, e Amabilíssimo Redentor do mundo no Horto. Tão mortal foi o seu sentimento, que se viu às portas da morte, e correu o sangue, como a preparar-lhe na terra a sepultura: Factus est ejus, sicut guttae sanguinis decurrentis in terram. (47) Razão foi esta porque Hildeberto chamou a esta agonia Cruz antes da Cruz, ou morte antes da morte: Sanguineus sudor Crux fuit ante Crucem (48) Agora o maior reparo: se uma morte na Cruz do Calvário bastava para redemir, e remediar todo o mundo; para que fez Cristo este antecipado extremo de derramar o sangue na cruz do Horto? É, que o sangue, que derramou na cruz do Calvário, era para todos, e por todos: Redimisti nos in Sanguine tuo. Per crucem tua redimiste mundum. Porém o sangue, que derramou na cruz do Horto, era para remediar os seus amados Discípulos: Ut fidem, videlicet, Discipulorum, quam terrena adhuc fragilitas arguebat, suo sanguine purgaret. (49) Maior dúvida. Pois o mesmo sangue derramado na cruz do Calvário, não era bastante para remédio dos Discípulos, e de todos? É certo, que sim. Pois para que era repetir, e antecipar a efusão do sangue na cruz do Horto? É, que eram os Discípulos os mais amados; e uns que seu amor parece, que avaliava por todos; pois na ceia, quando os tinha pelos pés, e nas palmas: Caepit lavare, disse o Evangelista, que tinha nas mãos a todos: Omnia, dedit ei Pater in manus: Omnia, idest homines. Comenta Jerónimo; e para os publicar por tais, achou seu amor necessário, singularizá-los no benefício. Em benefício comum derramou Cristo no Calvário o sangue, e o que aqui fez por todos, fez seu amor no Horto singularmente pelos mais amados Discípulos; mostrando, que a singularidade com que por eles derramava o sangue era a mais singular prova para mostrar o muito, e singular amor, que lhe tinha; que eles eram uns, que o seu amor avaliava por todos; pois só por eles obrava o que pelo bem se todos fazia: Sanguineus sudor crux fuit ante crucem. Ut fidem Discipulorum suo sanguine purgaret.

347. Escuso aplicar o texto ao nosso intento, porque é trabalho supérfluo. Passo a confirmar o pensamento com as palavras que disse aquele Senhor, quando instituiu aquela divina iguaria, o qual falando do seu sangue disse: Hic est enim sanguis meus, qui pro multis essundetur. (50) E em São Lucas disse: Qui pro vobis essundetur. (51) Num Evangelista diz; este é o meu sangue, que será derramado por muitos: Pro multis essundetur, em outro Evangelista diz que o sangue será derramado pelos Apóstolos: Pro vobis essundetur; e que mistério tem dizer Pró vobis, e pro multis? Em dizer que seria derramado o sangue por todos se dizia, que seria derramado pelos Apóstolos. Parece logo supérflua a palavra Pro vobis. Notem, que assim como diz Pro vobis, e pro multis, também diz: Essundetur, e essunditur, como está no Grego. (52) Derramou Cristo o sangue na Cruz por todos: Pro multis essundetur, e derramou só pelos Discípulos no Cenáculo: Pró vobis essunditur. In Sacramento altaris sub speci vini dum sumitur (53) Para mostrar os Discípulos mais amados, quis fazer por sós eles a efusão do sangue, que havia de fazer por todos; mostrando em isto o seu amor os avaliava por todos os Justos: Pro vobis, pro multis; pois só por eles derramava no Cenáculo o sangue, e chegava a fazer o extremo, que por todos na Cruz havia de obrar: Qui pro multis essundetur, pro vobis essunditur. Assim Cristo, quando quis dar o maior testemunho, de como os seus Discípulos eram do seu amor o maior emprenho: Cum dilexisset suos in finem delexit eos; (54) Para publicar como eles eram o maior desvelo do seu amor, declarou  como eles na sua estimação valiam por todos os Justos: Omnia idest homines; e para declarar isto não achou prova mais evidente, que derramar só por eles no Horto, e no Cenáculo o sangue, que derramou por todos no Calvário. Assim também o mesmo Cristo, para declarar o muito, que a Teresa amava, derramou o sangue só por ela; e fazendo só por ela o extremo que por todos obrara, a publicou mais amada, e uma que valia por todos na estimação Divina. (do IV sermão de Fr. António de Santo Eliseu, no II tomo do Estrela Dalva, 1740)

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