Gustavo Corção |
1. Vamos hoje nos deter na palavra visível de nossa primeira e aproximada definição da Igreja, isto é, vamos explorar mais em profundidade o conteúdo daquele termo, como se nele aplicássemos uma lente que não só amplia como também revela a riqueza de detalhes, de consequências e de aplicações que nos havia escapado em nossa primeira aproximação.
Antes de mais nada convém notar que o termo visível é aqui usado com a significação mais ampla de sensível, isto é, daquilo que nos é acessível pelos sentidos. Como a visão é o mais nobre dos sentidos, nós usamos a palavra visível para indicar o que se vê, o que se ouve, e de um modo geral toda a ordem do sensível. Dizendo que a Igreja é visível nós queremos significar que ela tem para nós, desde a cruz que vemos no alto da torre até o "Eu te absolvo..." que ouvimos no confessionário, a nitidez corpórea da pedra ou do pão. Gravemos pois esse mais amplo sentido que damos do vocábulo, e empreendamos a sua progressiva sondagem.
2. Logo no primeiro exame do conceito nós encontramos a óbvia visibilidade que nós mesmos damos à Igreja pelo fato de sermos seus membros. A Igreja é visível em nós, de uma visibilidade humana. Em nós, e nas obras de nossas mãos; em nossos rostos, e nas torres das catedrais; em tudo isto, em suma, que se vê de longe, e que fere a atenção dos mais desatentos, a Igreja é visível de uma primeira e ainda superficial visibilidade..
Parece pouca coisa esse primeiro e tão fácil exame de conceito, mas devemos notar que é já neste nível da significação que se inicia o ataque à Igreja de Deus. Os pseudo-super-espirituais começam por solapar esse primeiro contato da Igreja com a humanidade do homem. Quereriam uma Igreja mais despegada da terra, e menos carregada da miséria de seus filhos. Nós vimos, nas lições anteriores, que entre os membros atuais do Corpo Místico contam-se justos e pecadores. Pecadores de pecado mortal, desde que não cheguem à heresia, à excomunhão e à apostasia, são ainda membros atuais do Cristo, membros mortos mas ainda presos à videira. São inúmeras as passagens das Escrituras em que está assinalado este caráter misto, transitório, peregrino da Igreja. A parábola do joio e do trigo (Mt 3, 2); o banquete nupcial em que se sentam bons e maus antes da chegada do Senhor (Mt 32, 2); as dez virgens que esperam, cinco prudentes e cinco loucas (Mt 25, 1); e tantas outras passagens nos falam do Reino, da Igreja, como de um regime de espera em que, por assim dizer, a paciência do Cristo se estica por séculos e séculos, até o dia da grande e decisiva separação.
Se a Igreja fosse constituída somente de membros perfeitos, santos, justos (em estado de graça) como pretendem os pseudo-super-espirituais, nós não saberíamos encontrá-la, pois só Deus sabe quem está em pecado. Ela seria invisível. Ou seria enganadora, a nos induzir perfidamente em erro, em vez de nos oferecer a garantia de uma realidade acessível aos nossos passos.
Nós já dissemos que a Igreja é o Cristo continuado; já mostramos que sua função instrumental é um prolongamento da instrumentalidade salvadora da humanidade de Cristo; e nessa perspectiva nós diríamos agora que a Igreja invisível dos super-espirituais seria uma magnífica inutilidade.
Antes da Reforma já os novacianos e donatistas queriam que os pecadores não pertencessem à Igreja, mas foram sempre refutados pelos detentores da tradição. Dizia assim Santo Agostinho: "Home sum in area Christi: palea, si malus; granum, si bonus". [1] São Jerônimo também comparava a Igreja à Arca de Noé, onde se misturavam o lobo e o cordeiro. [2]
Será preciso recordar que a Igreja tem partes invisíveis? Sua alma é invisível. A Igreja triunfante é também invisível. Mas tomada no seu todo, em sua realidade completa, basta que uma parte seja visível para que se possa dizer que é visível o todo, embora não totalmente visível. No homem também a alma, considerada em separado, é invisível; mas o homem todo é visível, visível pelo seu corpo, sem dúvida, mas visível no seu todo vivo e animado.
3. Mas não é somente dessa primeira visibilidade, encontrada nos seus membros, que nós dizemos ser visível a Igreja. É do Homem-Deus, do Verbo Encarnado, que a Igreja tira a sua feição, seus contornos, sua vida, e sua natureza divino-humana; e é dessa visibilidade enquanto divina que devemos nos ocupar agora. Essa é propriamente a visibilidade essencial da Igreja, e é dessa marca essencial, sinal de realidades divinas, que nos fala a encíclica de Pio XII, Mystici Corporis Christi. [3] E é também a esse caráter de sinal visível de coisas invisíveis que se refere o Concílio do Vaticano quando ensina que a Igreja é permanentemente um milagre.
Ninguém pretende, evidentemente, que o sobrenatural, que especifica essa sociedade fundada por Cristo, seja em si mesmo visível. O que dizemos todos, em obediência ao magistério, é que a invisível realidade divina fere os nossos olhos e os nossos ouvidos através da Igreja.
Dissemos que a Igreja segue o estilo da Encarnação. A rigor, pensando numa Igreja antes da Igreja, na expressão do Pe. Sertillange [4], nós poderíamos dizer que Deus, antes da Encarnação, fiel ao seu plano polarizado na pessoa do Cristo Jesus, já se manifestara aos homens de um modo sensível. A voz dos profetas, por exemplo, já era um sinal sensível, já era um prenúncio da Igreja do Verbo Encarnado; já era, na obscuridade da expectativa, um rumor de preparativos e um albor de madrugada.
Mas o característico desses tempos de advento, que a Igreja rememora hoje calando a música e paramentando-se com a cor das sombras, era sem dúvida uma certa obscuridade. A voz do profeta ecoava na noite dos caminhos — "Ouve! Ouve, Israel!" — buscando mais o ouvido do que a visão. Os sinais de Deus eram velados, abafados, escondidos.
Vejam agora o que acontece no mundo quando nasce em Belém o filho de Maria; e observem bem o que dizem os pastores, quando ouviram dos anjos a boa nova: "Vamos até Belém, e vejamos o que sucedeu e que o Senhor nos mostrou. E foram com grande pressa e acharam Maria e José, e o menino deitado numa manjedoura. E vendo isto compreenderam as palavras que lhes tinham dito sobre o menino. E todos os que ouviram se admiraram do que lhes diziam os pastores. Maria, entretanto, guardava essas palavras, meditando-as no seu coração. E os pastores voltaram glorificando e louvando a Deus, por tudo o que tinham ouvido e visto, conforme ao que lhes tinha sido anunciado." (Lc 2, 15, 20)
Notem primeiro a desembaraçada decisão dos pastores: "Vamos até Belém". Eles têm um endereço, um lugar aonde ir, como nós hoje temos a direção, o itinerário de nossa paróquia. Eles já têm o caminho certo, o lugar preciso, a solução exata para os pés, antes de tê-la completa para o coração.
Creio que foi um personagem de Dostoievski que dizia em certa altura de suas aflições: "Haverá para o homem coisa pior do que não ter aonde ir". E tinha razão. O drama do mundo é o da perda do antigo endereço: Mas os pastores o tinham. Vamos a Belém. E vejamos. E vendo, compreenderam. E compreendendo, voltaram glorificando e louvando.
Na liturgia de Natal, especialmente na 2a. Missa que acompanha o amanhecer, a palavra luz e seus derivados todos tomam conta do texto. O Natal é uma iluminação do mundo. A Encarnação traz para o mundo um novo regime de mais luz, como queria Goethe no seu leito de morte. Ouçam por exemplo o velho Simeão, quando teve a ventura de segurar nos seus cansados braços o menino Jesus: "Agora, Senhor, despedi em paz o vosso servo, segundo a vossa palavra; porque os meus olhos viram a salvação..."
Pensemos agora na cruz espetada no alto do monte. A luz está no seu elevado candeeiro. A cidade santa se estabelece no alto do monte, porque os seus cidadãos são a luz do mundo. "Vós sois a luz do mundo... e assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai que está no céu". (Mt 5, 14)
Em Pentecostes a Igreja nascida da Cruz manifesta seu maior esplendor, e recebe do Espírito um decisivo impulso para sua missão. Sopra o vento, descem línguas de fogo, e as vozes dos apóstolos se multiplicam pelos diversos idiomas, tudo mostrando, com profusão, a força visível do invisível Consolador. A Igreja cresce, diferencia-se, hierarquiza-se, realizando nessa diversidade impetuosa o desdobramento das graças que estavam em plenitude na pessoa única do Cristo.
Aplica-se aqui um grande princípio: a plenitude de perfeição, que em Deus se encontra na suma simplicidade, nas criaturas se manifesta na diversidade. A unidade pessoal do Cristo corresponde agora na Igreja uma diversidade de pessoas, de grupos, de ordens religiosas, paróquias, associações, tudo isso vinculado numa unidade assegurada pelo Espírito de Cristo.
Ao contrário do que diziam os autores super-espirituais que chegaram a perturbar a grande Teresa d'Ávila, e que pretendiam ver na Ascensão de Cristo, e na descida do Espírito, uma manobra de Deus para nos livrar da visibilidade do seu Corpo, nós podemos dizer sem receio que Nosso Senhor se tornou ainda mais visível no seu Corpo Místico espalhado pelo mundo. A Igreja é de fato o alastramento universal do Salvador. O sangue derramado é agora estendido, e tinge o mundo inteiro numa prodigiosa iluminura. E a Igreja cresce, como cresce o dia, de "claridade em claridade".
4. Os protestantes, sob esse ponto de vista, cometeram o erro de quem se obstinasse a andar às apalpadelas numa sala sombria por não ter percebido que o sol já nasceu.
Persistem na obscuridade adventista, num sinistro equívoco, e dizem de nós que somos idólatras, porque usamos estátuas, estampas, vitrais e iluminuras, como se o uso de imagens implicasse necessariamente a sua adoração. Eles não sabem, ao que parece, que o Salvador trouxe a luz do mundo, e a unção dos olhos e dos ouvidos. E chegam a esquecer apesar do seu propósito de remontar às fontes — que é sempre suspeito na vida do cristianismo — que os primeiros cristãos usaram símbolos, alegorias, pinturas, mosaicos, sem que passasse pelo espírito de ninguém que estivessem adorando objetos. Eles sabiam bem o que era e o que não era idolatria, porque faziam com o próprio sangue a teológica distinção.
Mas essa ideia de super-espiritualizar (que vem sempre acompanhada, inevitavelmente, de uma atitude contrária de super-animalidade, quando se relaxa a artificial tensão) não foram só os protestantes que tiveram. Falei há pouco de Santa Teresa d'Ávila. No capítulo XXII de sua história está relatada a pista falsa a que foi levada por uns iluminados doutores. Diziam eles que num certo ponto do progresso espiritual é preciso deixar para trás tudo o que é visível e corpóreo. É preciso — diziam — deixar para trás, superada, a própria humanidade de Cristo, para considerar somente a sua divindade. Descobriu a Santa a perfídia de tal doutrina, e lá nos conta que sente um horror todas as vezes que se lembra de tão funesta experiência.
E nós, que estamos por demais advertidos, saibamos que nunca, em grau nenhum da vida espiritual, por motivo algum, devemos acolher tal ideia. Se nós deixarmos para trás, como etapa vencida, a humanidade do Cristo, ou a visibilidade da Igreja, é a nossa própria salvação que estamos deixando para trás.
5. Será preciso, neste estudo de hoje, advertir do erro contrário? Correndo o risco de parecer que estamos fazendo uma antítese, diremos que o erro contrário consiste na supervalorização do visível, a qual é uma das características do mundo moderno. No caso que aqui nos interessa, e que se relaciona com o mistério da Igreja, essa supervalorização consistiria em esquecer que o visível é apenas um sinal do invisível; e consequentemente em depreciar a vida interior chamando-a de subjetivismo individualista. Tais extremidades nos levariam a sermos um povo de gesticulantes.
É claro que nós não podemos, sem radical infidelidade ao magistério da Igreja, chegar a tais extremos, mas podemos perfeitamente, como no caso inverso aconteceu com uma grande santa, cair na inclinação, na tendência, que sem chegar à heresia já seria um grande desperdício de valores espirituais.
O equilíbrio que a Igreja nos propõe é uma exaltação dos dois elementos que não podem ser tomados isoladamente; mas aí mesmo, nessa mesma exaltação, convém firmar que o primado cabe sempre ao espiritual, significado pelo sensível.
6. Todos nós sabemos que infelizmente há muitas pessoas que só prezam as aparências. Vivem para a roupa, para o automóvel, para o trem de vida exterior, numa constante preocupação do juízo e da opinião dos outros. Vivem como se a alma estivesse na pele; ou como se dependesse do olhar dos outros a própria subsistência. Vivem em suma só para o mundo no sentido que tem essa palavra quando dizemos que o mundo é nosso inimigo. Falaremos mais tarde desse fenômeno, e da importância que tem ele para a nossa salvação. No momento queremos apenas assinalar a reação que essa repulsiva mentalidade produz em nós: o desprezo pelas aparências.
Vítimas de tal impulso nós temos frequentemente o desejo de menosprezar o juízo e a opinião alheia, reduzindo todos os critérios ao do foro íntimo e da perfeita sinceridade. Se por exemplo eu sou visto em companhia suspeita e em equívoca situação, que me importa o que dizem os outros, uma vez que tenho em paz a consciência?
Estará certa essa atitude? Estará ela afinada com a feição de nossa Igreja?
Em primeiro lugar, colocando o problema no plano da moral, nós podemos ver facilmente que essa maneira de pensar ofende a justiça, e destrói a sociabilidade. Não é possível viver em sociedade com esse critério exclusivo do foro íntimo. E o que ofende a sociabilidade ofende a própria natureza humana. Não é aos outros que nós molestamos com esse culto da orgulhosa sinceridade, é a nós mesmos. Seria fácil demonstrar que tal tipo de sinceridade, que não cresce no sentido da humildade e da justiça, transforma-se pouco a pouco na pior das hipocrisias: a hipocrisia do sujeito que é convictamente e sinceramente hipócrita por ter descoberto, no seu foro íntimo, esse direito à hipocrisia.
Mas não é essa a posição do problema que hoje nos interessa, apesar de sua importância. O que nos interessa agora é saber se tal atitude afina com o sentimento da Igreja.
Ora, pelo que já vimos até agora, e pelo que ainda vamos dizer, a nossa Igreja nos ensina a prezar as aparências. Para pertencer plenamente a essa divina sociedade não nos basta ter a fé no coração, precisamos tê-la também na boca, como nos ensina o apóstolo. Não é pois nesse sentido de deixar para trás as aparências que nós devemos progredir, e sim no sentido de manter sempre harmoniosa a hierarquia de nossos critérios. Não é preciso desprezar o corpo para servir a alma. Se a rigorosa ascese de muitos de nossos santos nos induz à falsa ideia de uma repugnância pelas coisas do corpo, é justamente — vejam o paradoxo! — porque estamos apreciando esse fenômeno de ascese mais pela aparência do que pela sua interioridade. O asceta às vezes maltrata a sua parte visível, mas só é verdadeiramente cristão esse ascetismo quando o rigor vem dum amor e dum amor que inclusive se interessa pelo sensível.
A esse respeito lembro um exemplo que já lhes dei. Suponhamos que um habitante de Marte (ou então um distraído filósofo) caísse por acaso numa estância do Far-West em dias de pionagem e de alegres cavalhadas. Veria os corajosos moços com esporas e chicotes a maltratar os cavalos. E concluiria apressadamente o seguinte: essa gente não gosta de cavalo. Ora, ele tinha caído justamente no lugar em que mais se gosta de cavalo!
O problema não cabe todo, evidentemente, nessa pequena digressão. Voltaremos a ele um dia, se Deus quiser. No momento basta-nos consolidar essa ideia de que a Igreja preza as aparências, e nos ensina insistentemente a respeitar, a estimar os sinais visíveis, porque é nessa linha, e com esse estilo, que ela nos traz a nossa invisível salvação.
7. E assim sendo, já não admira que o cristianismo tenha trazido, com a estima do visível, o esplendor do visível que é a beleza. A arte cristã, realmente, vitalmente cristã, é a consequência lógica da visibilidade da Igreja. Mas aqui devemos ponderar um pouco, e fazer uma distinção que me parece necessária.
Na arte-arte, para não dizer arte pura, o objeto tem caráter de fim. A operação do artista termina no objeto, que é em si mesmo completo e autônomo. O fazer artístico é mesmo uma das operações em que o homem mais se sente satisfeito por causa da proximidade e da inteireza do fim atingido.
Na arte cristã nós distinguiríamos entre arte cristã, enquanto culturalmente cristã; e arte cristã, enquanto religiosa. A primeira pertence mais à cristandade do que à Igreja. A segunda é a arte propriamente religiosa, e é essa que está diretamente ligada à visibilidade da Igreja.
Ora, se ela é um esplendor da visibilidade da Igreja, então ela participa também do caráter de instrumentalidade. Já não termina no objeto. Já não é por si mesmo autônomo e completo o seu objeto. Tal arte, religiosa, eclesiástica, será necessariamente sub-alternada, ancilar, e portanto deverá ser usada de um modo mais diáfano, humilde, diria mesmo subalterno, sem que isso signifique uma redução do seu esplendor.
Nesse sentido, uma vez que a visibilidade da Igreja tem o caráter de sinal, nós não podemos julgar com o mesmo critério cultural os objetos que se aproximam do culto, sobretudo quando se cava um abismo entre a civilização e a Igreja, como é infelizmente o nosso caso atual. Uma Igreja feita por um grande artista, se aos fiéis não parece Igreja não é uma boa obra de arte religiosa, não importando agora verificar de quem é a culpa de tal divórcio. Se ele existe, entre a cultura e a arte religiosa, é preciso corrigi-lo; mas antes disso não se pode impor aos fiéis desprevenidos uma conquista audaciosa da arte leiga.
O erro oposto que se pode cometer nesse problema da arte religiosa é o de exaltar, no sentido de um simbolismo exagerado, o caráter instrumental do objeto. Pretenderão trazer para fora, para a superfície do objeto, as realidade escondidas e significadas, o que se consegue é apenas uma arte esquelética e miserável. A solução do problema da arte propriamente religiosa está presa à solução do conflito que infelizmente existe entre o cristianismo e a cristandade de nossos tempos.
8. Depois dessas digressões, que fizemos para ilustrar com aplicações a ideia da visibilidade da Igreja, voltemos ao centro da questão. Perguntamos agora: como poderia a Igreja de Cristo ensinar e governar para santificar, se fosse invisível? A resposta protestante é muito fácil: nós não precisamos de um magistério vivo; nem de um chefe visível. O resultado dessa tentativa, que consideraríamos cômico, se não tivesse sido trágico, foi o que facilmente se pode prever. A doutrina, a joia que o Cristo confiou à sua Esposa, será entregue ao chamado livre exame; a fé é subordinada à opinião. Quanto ao governo, como sempre é preciso algum, incumbem-se dele os príncipes do mundo; e temos então um césar como papa.
Analisemos aqui um pouco mais o problema da doutrina.
Temos um depósito, um dado revelado, que para nós é constituído pela Tradição e pelas Escrituras. Agora consideremos a situação de cada um de nós em relação a esse depósito. Fomos nós que recebemos a revelação de modo imediato? Evidentemente não. Há então, de fato, um intervalo entre nós e o tesouro sobrenatural. Dizemos que a Revelação para nós é mediata, e como tal exige um condicionamento.
Uma coisa é o objeto da fé considerado em si mesmo; e outro é a fé em nós. Em si mesmo, o objeto da fé é a revelação divina enquanto puramente divina; e nenhuma composição de criatura poderá entrar no essencial da fé divina. Nós já abordamos esse problema quando analisamos o primeiro vocábulo do Símbolo dos Apóstolos: "Creio". Convém voltar ao problema.
Nós vimos que o primeiro enunciado de nosso Credo seria assim: "Eu creio em ............ porque Deus revelou". Os diversos artigos são o corpo do Credo; ma a alma é a fé na revelação divina. Considerada assim a fé na sua essência, ela é puramente divina e sem nenhuma interposição. "Nihil aliud quam Veritas Prima" diz-nos Santo Tomás.
"No objeto formal, no essencial da fé, não pode entrar nada de criado, nenhuma composição de criatura, nada por conseguinte que venha dos anjos, nem dos homens, nem dos patriarcas, dos profetas, dos apóstolos, nem mesmo da Igreja". [5]
Quando porém se encara o problema da fé em nós, uma vez que não existe revelação imediata para cada um, torna-se mister um intermediário que, sem entrar propriamente na constituição formal do objeto da fé, é para nós uma condição sine qua non. E esse é o papel do magistério vivo da Igreja. E é por isso que agora nós dizemos assim: "Creio em ........... porque Deus revelou e porque a Santa Madre Igreja ensina". Sendo que no primeiro porque está o formal (o essencial) da fé; e no segundo a condição sine qua non.
Vamos mais tarde abordar com mais detalhes o problema do magistério vivo e infalível da Igreja. No momento basta-nos sentir vivamente a necessidade do organismo protetor e distribuidor da palavra de Deus; e basta-nos compreender quão absurda é a ideia de entregar o depósito à pura razão humana, ou pretende que cada um de nós tenha uma especial inspiração que seria equivalente a uma revelação imediata para cada um.
Mas o que tem isso a ver com visibilidade? O bom senso logo responde: se existe um zeloso e assistido magistério vivo, incumbido da conservação e da distribuição da doutrina, é evidente que eu preciso conhecer o endereço desse magistério; porque se me enganar no endereço engano-me na doutrina. É preciso ter a nítida confiança dos pastores que disseram: "Vamos a Belém".
O grande princípio de economia de causas é posto em cheque, desvairadamente, quando se pretende substituir uma organização, uma sociedade visível e hierárquica, por uma profusão anárquica de revelações individuais. E sobretudo — já que estamos agora falando em tom defensivo e polêmico — o que nos choca na atitude protestante é o seu esquisito modo de estimar a Bíblia. Nenhum de nós que escreve gostaria de sofrer o tratamento a que o protestante submete o Espírito Santo. Nenhum de nós se alegra de ser livremente interpretado; e podemos até dizer que o nosso mais acabrunhante sentimento vem do elogio equivocado. André Gide disse uma vez a um admirador apressado que, por favor, não o compreendesse tão facilmente. Pois bem, o Deus ciumento de sua identidade, que martela em nossos ouvidos a sua terrível definição, "Eu sou aquele que sou", e que nos recomenda insistentemente que guardemos a doutrina, é tratado como um acomodado personagem que nos dissesse com bonomia: Aqui está a minha revelação, estejam a gosto, e façam dela o que quiserem.
9. Os teólogos comparam o magistério da Igreja, como condição necessária da nossa fé, ao papel dos sentidos nas operações da inteligência. Não é com a vista e com o ouvido que o homem conhece e é capaz de apreender as realidades espirituais; mas é pela vista e pelos sentidos que o homem realiza o seu contato com o ser. Pois bem, esse condicionamento dos sentidos, necessário à inteligência humana por causa de nossa natureza dual, reaparece no plano elevado das coisas da fé. A visbilidade da Igreja, continuação da visibilidade do Verbo Encarnado, é a parte estendida entre a graça e a natureza; e quem a recusa, em termos de um irracionalismo selvagem como o de Lutero, que queria relegar a razão para as latrinas, é um inimigo do homem que pretende ser assim maior amigo de Deus.
Vejam pois a importância desses problemas; e aprendamos a ver, ou a pressentir ao menos a riqueza de nexos, a amplitude de ressonâncias escondidas naquela pequenina palavra visível que se destaca de nossa pobre definição, e que agora se abre diante de nós com profundidades de abismos.
10. Mas agora perguntemos, e ainda com mais ênfase: como poderia a Igreja nos santificar, um por um, se nós não possuíssemos o seu endereço? Os pastores sabiam onde estava Belém. Nós outros sabemos onde está a nossa Igreja. Muito teremos a dizer dessa função última da Igreja, a nossa santificação, a nossa incorporação em Cristo; frisemos agora o papel da visibilidade da Igreja nesse último e decisivo encontro. Já dissemos diversas vezes que nós sabemos onde está a nossa Igreja. É bom que seja visível de longe o campanário, que o sino toque, que a porta seja bem indicada por aquelas mansas sentinelas que nos estendem a mão. É bom que as velas estejam acesas; que as imagens nos nichos nos digam que é ali mesmo a casa de nossa longa família, que o padre e o bispo se reconheçam por suas vestes e insígnias.
Mas o melhor da visibilidade da Igreja está guardado para o último passo de nossa aproximação. Nos sacramentos nós temos a santa visibilidade do Cristo entre nós, continuado, disperso, esticado, distribuído. O nome técnico do sacramento é sinal sensível. Sensível porque mostra, deixando velada a realidade última, e realizando assim o duplo objetivo de nos ajudar e de nos dar uma oportunidade para o mérito da fé.
Aqui, junto ao sacramento, o binômio visível-invisível, que encerra o grande mistério da Igreja, ganha um realce inaudito. A fé, que por sua própria natureza é obscura, ganha uma transluminosa obscuridade, a luz tenebrosa de que nos fala São João da Cruz. Permanece o mistério da luz escondida, mas ao menos já sabemos onde está o ponto de apoio da divina centelha. Vamos pois a Belém, e vejamos. Vamos e adoremos.
Ali está, no santo sacramento do altar, o meu Deus, o meu Salvador! O olhar se demora na pequena luz distante e vazia. Ali está, oferecido, o meu Deus, o meu Salvador! Por que se esconde Ele, o bem amado, naquela pequena brancura? Eu me perco em vãs cogitações, a imaginação se cansa, o olhar se perde, a atenção se desvia; mas a Igreja visível me cerca: as velas, as imagens, os paramentos, os rostos dos outros, os perfis, os dorsos dos outros, tudo, como um rico sistema de espelhos convergentes, tudo me torna a dizer que não me enganei, que é esta a casa luminosa, e que está ali no foco visível, na imagem real, o meu Deus e o meu Salvador. Tudo me cerca, me ampara, me encoraja; e tudo me diz que siga, que prossiga, que persiga essa imensa e milagrosa procissão que marcha, pelos séculos e séculos, de claridade em claridade.
11. E agora vejamos. Terminou o nosso dia. Cessaram por hoje as nossas atividades. Mais um dia. Mais uma boa coleção de atos truncados, decepções inesperadas, aflições persistentes. Mais um dia. Vamos nos despedir desse dia dizendo adeus a uma multidão de pequeninas esperanças pisadas, e dizendo até amanhã, até logo, às velhas e familiares aflições. Pedimos perdão a Deus, reconhecendo as nossas faltas, as de hoje e as de sempre; e depois de bater no peito, e passando para os acusativos, como diz Jacques Rivière, nós tomamos uma nova atitude de coragem e de quem quase tem um direito à misericórdia de Deus e à intercessão dos Santos. "A oração é a força do homem e a fraqueza de Deus" disse Santo Agostinho. Usemos pois a arma de Jesus Cristo, e exploremos a fundo o desarmamento de Deus.
Mas observem agora a oração, entre outras, que a Igreja recomenda para a despedida do dia. É feita com as mesmas palavras do velho Simeão: "... despedi em paz o vosso servo... porque os meus olhos viram a Salvação".
Como se explica essa aproximação? O velho Simeão viu de fato o Salvador. Mas nós? O que foi que nós vimos? Ou estará colocada em nossa boca uma palavra inadequada ao nosso coração?
Nós vimos, realmente vimos no Corpo Místico de Cristo o que viu Simeão no pequeno corpo físico do menino Jesus. Nós vimos. Na pedra da Igreja, na porta, nos irmãos, nas imagens, no sino, na vela, no altar, na hóstia. Nós vimos. E podemos dizer, com o mesmo direito, de todo o coração, que nós vimos, na Santa Visibilidade, a nossa Salvação.
(a ordem, Maio de 1951)
Notas e Bibliografia Recomendada:
[1] Contra Petil. III, 12.
[2] Dial. cont. Lucifer n. 22.
[3] Ver O Corpo Místico de Cristo, Pe. Penido, pg. 170 e seg.
[4] Le Miracle de l'Eglise, Pe. Sertillange (trad. Ed. Vozes).
[5] Fr. F. Marin-Sola, O.P., "L'Evolution homogene du Dogme Catholique", I, 216.
(do site da PERMANÊNCIA - 2009)
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