06/02/17

MARTÍRIO DE S. JOÃO DE BRITO (II)

(continuação da I parte)

Depois deste sucesso isto o Príncipe com mais alvoroço por ver este insigne Varão, que conhecendo boa oportunidade para a visita, o foi buscar, sendo dele recebido com singulares mostras de benevolência, e veneração, gratificando-lhe o incomparável benefício, que por sua intervenção havia recebido, e com firme resolução já muito disposto para receber o Baptismo. E vendo-se aqui o devoto Missionário mais livre, e desassombrado, por serem estas terras sujeitas a este Príncipe, baptizou logo mais de duzentos catecúmenos.
Mas como o Príncipe, segundo o uso daquele gentilismo, tinha cinco mulheres, lhe propôs que para poder receber o Baptismo, e seguir a Lei de Cristo, lhe era preciso ficar com uma só, e largar as quatro, porque o contrário proibia o verdadeiro Deus, e a Lei que lhe pregava: e com tal eficácia, fervor de espírito, e ilustração lhe propôs este preceito, quanto que o Príncipe saiu da Igreja, foi ao paço, e o executou, sem bastarem as lágrimas, nem os carinhos das quatro mulheres repudiadas para fraquear, ou suspender o efeito desta heroica, e Católica resolução.

Uma destas mulheres era sobrinha do Príncipe reinante, a qual logo com impaciente furor recorreu ao tio, queixando-se do repúdio, e muito mais da causa dele, ao que se ajuntou o clamor geral dos falsos sacerdotes dos ídolos, que aproveitando-se desta ocasião, unidos os principais, e fazendo seu Antesignano o de maior autoridade, propuseram com grandes lamentos ao tirano, que os seus templos se viam deserto, por não haver quem acudisse ao culto, e adoração dos ídolos, e à celebração dos seus sacrifícios, que os Sacerdotes da Europa com sua perversa doutrina haviam arruinado toda a veneração dos seus deuses, que se ele como Príncipe que era daqueles Estados, e protector de sua religião, não punha eficaz remédio para evitar a última ruína dela, se iriam todos a buscar outro reino, ou os deserto, aonde não vissem tão horríveis desacatos, e tanto opróbrios cometidos contra os ídolos.

Exasperado o intruso Príncipe com estas queixas, assim domésticas, como políticas, e atento à razão de estado que lhe não convém que sendo Católico o verdadeiro, e legítimo senhor do Principado, siga tão grande parte dos vassalos a mesma crença, e se vá cada dia aumentando o número, fez publicar um édito, pelo qual mandou que fossem abrasadas todas as Igrejas dos Católicos, e a estes saqueadas as casas, passando juntamente apertadas ordens para lhe trazerem preso o Apostólico Varão.

Eram oito do mês de Janeiro do ano de 1693, dia em que havia administrado os Sacramentos a grande número de Fiéis, e conhecendo (segundo parece) por revelação Divina a iminente perseguição, lhes havia dito repetidas vezes que quem se ausentassem para a evitar: quando daí a poucas horas lhe disseram que havia uma tropa de cavalos, saiu a receber os soldados, e ministros da ira do tirano com alegre, e risonho semblante, e eles pelo contrário o maltrataram logo com grandes injúrias, e espancaram, e pisaram com furor diabólico, e o ataram impiamente com mais dois moços pequenos, que havia convertido, e baptizado, e não quiseram apartar-se de seu amantíssimo Mestre, dizendo que queriam participar da glória do seu martírio.

Nestas jornadas padeceu o valeroso Soldado de Cristo inumeráveis afrontas, e tormentos, porque indo à pé, e os infernais verdugos a cavalo, o obrigavam a que lhe igualasse o passo, fazendo-o cair muitas vezes, e levantar com rigor desumano à força de pancadas, e feridas, não sendo menores os escárnios, e vitupérios da plebe dos lugares por onde passava. Com este vexame chegou à corte, e foi metido em uma áspera prisão com os dois moços acima referidos, e outro Cristão mais também natural da terra, o qual vendo no caminho ao Padre Brito daquela sorte, levado de uma santa inveja se declarou Cristão, e com grande alvoroço se entregou aos cruéis algozes.

Aqui acudiram de novo aos falsos sacerdotes a acusar o zeloso Pastor, fazendo-o réu não só do crime da prégação, que mais os estimulava, graduando-a por enorme delito, mas também de outros, que caluniosamente lhe impunham. Por parte do Servo de Cristo, saiu o patrocínio do fiel Príncipe Tarideven, acabando com sua autoridade, e diligências que se não executasse por então a sentença contra ele já fulminadas, de morrer arcabuzeado.

Porém como se não mitigasse o infernal ódio, e cólera do tirano, mas antes crescesse com aquele estorvo, procurou com uns abomináveis sacrifícios, que a depravada indústria de seus falsos sacerdotes lhe ensinou, e persuadiu que fizesse aos seus ídolos, tirar-lhe a vida sem demonstração pública, em que podia achar algumas renitência pela presença do Príncipe Tarideven, que se achava na corte, e mostrar juntamente a eficácia (segundo dizia) dos ritos de suas supersticiosa religião; mas repetidas uma, e muita vezes aquelas horrendas cerimônias dos sacrifícios sem algum efeito, pois o valor no Soldado de Cristo, que pretendia matar por aquele caminho, cada vez se achava com mais alentado vigor, não obstante a que o tirano da sua parte ajudava bem a imaginada, e falsa virtude dos sacrifícios com a fome, e sede, com que no cárcere o afligia: e por fim já desesperado de por este meio lhe tirar a vida, o mandou secretamente remetido a um seu irmão, que residia em Orgur, vila distante da corte duas jornadas, para que lhe desse o último suplício com o tormento, que lhe parecesse.

Chegou o Varão Apostólico a Orgur o último de Janeiro de 1963, com inexplicável aflição, e tormento, mas com igual constância de espírito, e consolação, porque era tal a crueldade dos infernais ministros, que pelo caminho o faziam andar mais apressadamente, do que permitia sua grande fraqueza, ferindo-o tão impiamente, que pelas estradas deixava sucessivo rastro de seu sangue.

Aos quatro de Fevereiro pelo meio-dia foi levado à praça de Orgum, e chegando ao pé de um poste alto, que estava prevenido para este efeito do martírio, se prostrou de joelhos, e depois de estar na última oração por espaço de meia-hora, para o que pedia licença aos algozes, alegre, e com uma paciência, brandura, e humildade se lançou aos pés daqueles ferozes ministros, que eram cinco, e lhes agradeceu o incomparável benefício, que lhe queriam fazer,

Neste tempo se ateou tanto o zelo em dois dos novos Cristãos, que saindo do concurso, correram para os algozes, protestando a Fé Católica, e clamando que por ela queriam padecer martírio, e fazer companhia ao seu santo Mestre: o que os verdugos não fizeram, porém maniatados foram remetidos ao cárcere, e logo remetendo furiosamente a despojar o felicíssimo Padre das vestiduras, e rasgando-lhas com grande alarido, e infernal fúria, lhe acharam um Relicário no peito, e dando logo grandes brados, que ali se encerravam os encantos, com que pervertia os naturais, se retiraram, admoestando-se reciprocamente que não tocasse no Relicário, porque cairiam no mesmo frenesim, e loucura, em que caíram os mais, que se haviam pervertido: e para se livrarem deste perigo tão grande, (como diziam) indo a cortar-lhe com um alfange o cordão, de que pendia, lhe deram um grande golpe em uma ilharga, e pouco depois lhe cortaram a cabeça, padecendo tudo este invencível Mártir de Cristo, não só com admirável constância, mas com uma incrível serenidade, e alegria de espírito; e não contentes ainda os algozes com o golpe, porque ainda ficara presa a cabeça ao corpo, lha acabaram de separar, dizendo que com os seus encantos, e feitiçarias a poderia unir, e reviver. Também lhe cortaram as mãos, e os pés, que tudo expuseram no mesmo poste aos ludibríos da plebe.
Aos dois Cristãos, que no lugar do martírio se declararam,  mandou depois o tirano cortar os narizes, e orelhas, um dos quais não cessa de lamentar com muitas lágrimas a pouca sorte de lhe não haverem tirado a vida pela verdade da Lei Evangélica.

PROTESTAÇÃO.

Por quanto neste discurso se usa dos termos, Martírio, e Mártir, e Santo, dando estes título algumas vezes ao venerável Padre João de Brito, e se refere como maravilha sobrenatural a instantânea saúde, recuperada pelo Príncipe Tarideven, protesto que não pretendo qualificar a morte do dito Servo de Deus por legítimo martírio, nem a ele por verdadeiro Mártir, e a dita saúde por miraculosa enquanto o não declarar a Santa Igreja, e que uso daqueles termos como vulgares, sem a mereçam mais autoridade, e crédito, do que se deve à fé da humana história, sujeitando tudo à censura da mesma Santa Igreja, e do sagrado Tribunal de nossa Santa Fé.

Manoel de Coimbra.

LISBOA. Com as licenças necessárias. Na Impressão de Bernardo da Costa de Carvalho, Impressor. Ano 1695.

(breve relaççam do ilustre martyrio do venerável padre João de Brito, religioso professo da sagrada companhia de Jesu, residente na missam de Maduré reino dos Maravís, o qual padeceu em 4 de Fevereiro de 1693. Lisboa, ano 1695)

3 comentários:

Unknown disse...

Salve Maria.

Atenção para algumas palavras nos seguintes parágrafos:

2º : (...) tinha "sinto"mulheres" (...)"larbar" as quatro";

5º : (...) e pisaram com "furo"(...);

6º : (...) Nestas "jornada"(...) e

10º: (...) pedia licença aos " alfozes"(...).





Unknown disse...


Valorosos Santos, que suportam com bravura e coragem os martírios.

E nós, não suportamos nem uma dor de cabeça!!!

Que Deus nos dê tamanha virtude.

Que Nossa Senhora, anjos e santos da Milícia Celeste, roguem por nós.

anónimo disse...

Cláudia Arruda,

obrigado pela correcção. Vou transmitir o caso a quem generosamente fez a transcrição, e tb. tem conta no blog ASCENDENS.

Sim, um Mártir nas mãos das falsas religiões. Hoje ainda há onde procurar o martírio, longe; mas o assédio à pureza da Fé, à moral etc., encontramo-lo mais perto.

Volte sempre.

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