15/02/16

SERMÃO DA III Sexta-Feira da QUARESMA (Venerável Pe. Bartolomeu de Quental) I

A levitação do Venerável Padre Bartolomeu do Quental
(autor português do séc. XVIII)

 

SERMÃO

DA TERCEIRA SEXTA FEIRA DA QUARESMA
Na Capela Real
(Lisboa)

[Venerável] Padre Bartolomeu de Quental
Ano 1664

"Auferetur a vobis Regnum Dei" (Mat. 21)

182. Praza a Deus não vejamos cumprido em Portugal (Muito alto, e poderoso Rei, e Senhores nossos). Praza a Deus não vejamos cumprido em Portugal, o que Cristo S. N. profetizou, e se cumpriu no Reino de Israel: num Reino tão basto de profecias, não será fora de propósito prégar de uma, e mais sendo de Cristo a profecia da ruína de Israel: Auferetur a vobis Regnum Dei (Mat. 21. 43). E se esta profecia se pode entender de Portugal, há de o dizer a causa dela: a causa em que Cristo Senhor nosso a fundou, eram os pecados daquele povo, e se no nosso houver os mesmos, podemos temer que se entenda do nosso Reino a profecia de Cristo. Eram os pecados, não a acudirem com os frutos ao senhor da vinha, matarem os servos que os arrecadavam, e ultimamente o filho; e sendo estes pecados tão graves pelo que eram em si, ainda o eram mais pelas circunstâncias que tinham. Cinco circunstâncias muito agravantes tinham estes pecados, que assim provocaram a ira de Deus; eram pecados dos lavradores, eram pecados de reincidência com teima, e obstinação, eram pecados sem pejo, eram pecados de indução, e conspiração, eram pecados públicos. Eram pecados dos lavradores; os lavradores foram os que não pagaram, os que feriram, e mais mataram: Agricolae, apprehemsis servis ejus, alium ceciderunt, alium occiderunt, alium vero lapidaverunt (ibi 35). Eram pecados de reincidência com teima, e obstinação; o mesmo que fizeram aos primeiros servos, fizeram aos segundos, que eram mais: Iterum misit alios servos plures prioribus, et fecerunt illis similiter (Ibi. 36), e ultimamente ao filho. Eram pecados sem pejo; pejar-se-hão de meu filho, disse  senhor da vinha: Verebuntur filium meum (Ibi. 37), e eles não se pejaram. Eram pecados de indução, e conspiração; induziram-se todos, e conspiráram-se para o pecado. Dixerunt intra se, Hic est baeres, venite, occidamus eum (Ibi 38). Eram pecados públicos; puderam matar o filho dentro da vinha, o lançaram primeiro fora, para fazerem público o seu pecado: Et apprehensum eum ejecerunt extra vineam, et occiderunt (Ibi 39). E foram estas circunstâncias tão agravantes do seu pecado, que provocaram a justiça de Deus tirar-lhes a vinha, e logo Cristo lho profetizou tanto que as viu: Auferetur a vobis Regnum Dei. Estas circunstâncias do pecado em que Cristo fundou a profecia da ruína de Israel, serão o assunto do Sermão para se prevenir Portugal. O Pai de família, que não vai menos interessado nesta vinha de Portugal, do que o era na de Israel, encaminhe o sucesso de maneira, que lhe deu hoje a vinha melhor fruto.

183. A primeira circunstância dos pecados que arruinaram aquela vinha (segundo a profecia de Cristo) foi serem pecados dos lavradores; os lavradores foram os que não pagaram os frutos, os que feriram: Agricolae, apprehensis servis ejus, alium ceciderunt, alium acciderunt, alium vero lapidaverunt, e serem pecados dos lavradores provocou mais a justiça divina. Plantou o pai de famílias esta sua vinha: Plantavit vineam, cercou-a com seve: Sepem circumdedit ei, isto é, pôs-lhe lei: Sepes lex est, dizem Eutímio, e Teofilato; fez-lhe lagar: Fodit in ea torcular, isto é, levantou-lhe altar, como querem muitos [como muitos defendem ter sido]: edificou-lhe torre: Aedificavit turrim, isto é, edificou-lhe templo, e religião, como é mais comum; e entregou-a aos lavradores: Et, locavit eam agricolis: e que aqueles a quem o Senhor entregou a vinha lhe faltem com os frutos que os que deviam evitar os roubos, não paguem a dívida que os que deviam castigar os crimes, façam os ferimentos, e mais os homicídios! que os que deviam fazer respeitar a torre, pervertam a religião! que os que deviam usar do lagar para pisar as uvas, pisem os servos e finalmente, que os que deviam conservar a seve, a romperam! os que haviam fazer guarda a lei, a quebraram! isto provocou mais a justiça divina; que fizeram estas extorsões os servos, que quebrassem as leis os jornaleiros! não há de passar sem castigo, diz Cristo: Auferetur a vobis Regnum Dei.

184. Com pena de morte quis Deus castigar a Moisés: Volebat occidere eum, por não circuncidar um filho seu no tempo em que o mandava a lei. Diz Abulense: Quia non circumciderat filium suum Elieser tempore debito. E mais tinha uma escusa bem relevante, que lhe aponta o mesmo Abulense: nascera-lhe o filho ao tempo em que estava de partida para o Egipto por mando de Deus a libertar o seu povo, e viu-se em talas sobre o cumprimento da lei, porque se o circuncidava tão perto da jornada, punha em perigo a vida do inocente, e se o circuncidava, e esperava por ele algum tempo, dilatava a liberdade do povo, e por não dilatar a liberdade do povo, nem arriscar a vida do inocente, dilatou a circuncisão: há escusa mais relevante? e não lhe vale? Sim valerá para outros, mas não para Moisés, porque havia ser Legislador, e já era Núncio, diz Abulense: Quia ipse erat futurus Legislator Hebraeorum, et unc mittebatur ut Nuntius: e porque era Núncio, e Legislador, não houve razão que o desculpasse da transfressão da lei: que aquele que deve fazer guardar a lei, a quebrante, diz Deus, e que dirão os outros se lha virem quebrar a ele? Moisés que há de fazer guardar a lei, a quebranta? Ele corta pela lei, por não cortar pelo filho? Logo também nós por não cortarmos pelos filhos, cortaremos pela lei? pois por atalhar estes inconvenientes, uma de duas, ou ele há de cortar pelo filho, ou eu hei de cortar por ele: Valebat occidere eum.

185. Tão rigoroso se há Deus com os transgessores da lei, que tem obrigação de a fazer guardar, que ainda quando há razões para dissimular com os mais, não dissimula com eles, porque corre diversa razão neles, que nos mais: se os que estão obrigados a guardar, a quebram, quebram-na eles, e quebram-na os mais; porque tanto que eles a quebram, é muito certo quebrarem-na todos. Parou o Sol às vozes de Josué para apadrinhar a sua victoria; e retrocedeu dez linhas às diligências do Profeta, para certificar a Eséquias da sua vida. Pergunta Abulense, se parando, e retrocedendo o Sol, pararam, e retrocederam os mais Planetas também. E responde, que sim; e isso porque? Pare, e retroceda o Sol, mas os outros Planetas? Nem Josué mandou parar mais que o Sol, nem o Profeta Isaías fez retroceder mais que o Sol; logo, porque pararam, e retrocederam os mais Planetas? porque parou, e retrocedeu o Sol; parar, e retroceder o Sol, foi perverter as leis da natureza, e como era o luminar maior: Luminare maius, o presidente do dia: Ut praesset diei, tanto que quebrou as leis, logo as quebraram os mais Planetas também: O Sol quebrou as leis por amor dos homens, os mais quebraram as leis com o exemplo do Sol: o Sol quebra as leis por seus respeitos! (diriam os mais Planetas) pára por obedecer a Josué! retrocede por condescender com Isaías, e deferir a Ezequias! pois saiba Josué que também os mais Planetas paramos; saibam Isaías, e Ezequias que também retrocedemos; e veja o mundo, que tanto que o Sol quebrou as leis, as quebraram os mais Planetas também. Advirtam os Luminares grandes que presidem nas Repúblicas pelo Eclesiástico, e pelo secular, quanto mais carrega sobre eles a observância das leis, pois de eles as quebrarem, se segue quebrarem-nas todos. E advirta o Sol, que em quebrando as leis, já não é Sol, porque já não é só.

(a continuar)

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