08/10/15

PORTUGAL, AGRICULTURA, E MOUROS (I)

MEMÓRIAS DE LITERATURA PORTUGUESA,
Publicadas
pela
ACADEMIA REAL DAS CIÊNCIAS DE LISBOA

Tomo II

LISBOA
Na Oficina da Mesma Academia
ano 1792
Com licença da Real Mesa da Comissão Geral sobre o Exame,
e Censura dos Livros.


[...]
§ I
DO TEMPO DO CONDE D. HENRIQUE ATÉ ElREI D. PEDRO I

O Terreno que chamamos Portugal, no tempo do Conde D. Henrique era, grande parte, senhoreado de Mouros, inimigos irreconciliáveis dos Nacionais, com que viviam quase sempre em crua guerra. O carácter da guerra daqueles tempos era principalmente de corridas, de falto, e de pilhagem, a ordem de parte a parte se roubavam os frutos, e os rebanhos. Os Lavradores, destas contínuas inquietações sempre assustados, apenas cultivavam as terras mais vizinhas às casas fortes, e povoações muradas, donde facilmente pudessem ser auxiliados das irrupções dos inimigos. Com a mão, hora nos instrumentos da cultura, outra hora nos da guerra pela maior parte colhiam, e pelejavam.

Nas Províncias do Minho, Trás-os-Montes, e uma parte da Beira se vivia com mais repouso. Aí mais a salvo os Lavradores, semeavam, e colhiam. as colheitas eram principalmente de trigo, centeio, cevada, e legumes. As frutas, e hortaliças eram abundantes à proporção do povo. O azeite era raríssimo no Minho; havia suficiente na Beira, e Trás-os-Montes (vemos isto por algumas escrituras, e doações daquele tempo, que se guardam nos respectivos cartórios, e também pelos forais; muitos nos refere Fr. António Brandão na Monarchia Lusitana, e o P. D. António Caetano de Sousa nas Provas das memórias Genealógicas da Sereníssima Casa de Bragança): do mesmo modo era o vinho. Os mais géneros floresciam medianamente.

Ainda então se não tinham introduzido tantas diferenças de qualidades na Ordem política. Um Lavrador era um homem bom, um homem honrado, que rodava com todos os bons Patriotas, e ocupava os honrosos cargos públicos do Lugar em que vivia.

O Conde vendo, que havia bastantes terras incultas, que era necessário cultivarem-se para a subsistência do Estado, e que por outra parte os cuidados da guerra lhe não deixavam empregar-se de propósito neste empenho, buscou modo, com que, sem faltar ao ministério das armas, promovesse a Agricultura. Repartiu largamente as terras incultas por alguns corpos de mão morta, com às Catedrais de Braga, e outras, e aos Monges Benedictinos; e também por muitos Senhores da sua Côrte, que as fizessem cultivar (que fez doações a vários Senhores da sua Côrte, prova-se pelos testemunhos apontados nos referidos AA. "Deus a Alberto Tibão, e a seu Irmão, e aos mais Franceses o campos de Guimarães junto ao seu Paço." Sousa T. I das prov. nº 2 "Também deu a Egas Moniz o sítio de Britiande, que logo pobrou, e fez aí quinta e morada." consta do liv. das doações do Mosteiro de Salzedas, referido por Brandão Part. III liv. VIII cap. 20; aí mesmo se leem estas palavras "e D. Henrique.... deixou-lhes haver quanto filhavam e contava-lho, e assim fez a D. Garcia Rodrigues e a D. Paião seu irmão, que lhes contou o Couto de Leomil etc..."; no mesmo lugar se acham outros muitos testemunhos; também o Conde fez fundar novas povoações de Lavradores, para multiplicar os homens, honrados a estes novos povoadores com graças e privilégios; para prova disto basta ver o foral da Vila de Constantins de Panoias, que refere Sousa no tom. I das Provas nº 1). A Catedral de Braga repartiu estas terras, aforando umas, dando outras aos Lavradores com a convenção de certas partilhas na colheita dos frutos.

Os Monges em parte fazendo o mesmo que a Catedral, em parte dando ainda melhor exemplo, também promoveram a cultura. Viviam ainda estes respeitáveis Monges em todo o rigor dos trabalhos Monásticos. Multiplicaram, com o favor do Conde, os Mosteiros, onde se recolhiam nas horas do repouso, e Oração. O mais tempo empregavam em cultivar por suas próprias mãos as terras que lhes foram doadas, dando testemunho público da sua observância, e do amor ao trabalho honesto, e proveitoso, fundando ao mesmo tempo muitas povoações, e Freguesias para cómodo daqueles seculáres, que por algum modo se agravam às suas lavouras, donde veio ser a Província do Minho a mais povoada, e por consequência a mais abundante.

Mosteiro do Lorvão
Estas Comunidades de Monges lavradores se aumentaram tanto, que além dos Mosteiros Lorvaniense, e Bubulense serem muito povoados, o Palumbário, segundo escrevem alguns, chegou a ter 900 Monges (Que os Monges Beneditinos viviam do seu trabalho manual, já desde as suas fundações em Portugal, e antes do tempo em que falamos, além de ser conforme à sua regra, e testificado pelos seus anais, se deduz da doação, que fez ElRei D. Ramiro aos Monges de Lorvão, que não querendo eles possuir herdades, e sustentando-se como Lavradores jornaleiros, o Rei lhes dá uma herdade, e os obriga a aceitar "quoniam inter istos montes non habetis campos ad laborandum" prova de que eles trabalhavam nos campos para se sustentarem. Que os Monges deste Mosteiro trabalhavam por suas mãos nas herdades que já depois possuíam, prova-se porque as suas lavouras eram muito grandes. Tais, como se colhe de doação que lhe fez ElRei D. Sancho de Leão, que contendo, como quisera levantar o cerco de Coimbra por falta de víveres, acrescenta: "os frades me deram de tudo o que tinham para comer, ovelhas, bois, porcos, cabras, aves, pescados, e muitos legumes, pão, e vinho sem conto que.... tinham guardado etc."; tais eram as suas colheitas que sustentaram um Rei, e um exército - estas não podiam ser feita senão pelas suas mãos; porque tendo sido, depois de expugnação de Coimbra por Almansor, levadas cativas a Sevilha "todas as pessoas que eram de trabalhar"; e algumas poucas que ficaram, constrangidas pela escravidão, a servir aos Mouros, que dominavam a terra, como podiam ter os Monges tanta cópia de criados para tão grandes lavouras? nem os Mouros lhos consentiam, principalmente tendo tão perto o Mosteiro Bubulense, ou da Vacariça, que unindo-se seriam temíveis aos inimigos; além disso "Os Mouros deixavam trabalhar aos Monges pagando-lhes certo tributo, e ainda sim os vexavam."; são palavras de um monumento antigo referido por Fr. Manuel da Rocha no Portugal Renascido - Que o mosteiro Paumbário, ou de Pombeiro, tivesse 900 Monges, diz Fr. Leão de S. Tomás nos prolómen, às Constituições Beneditinas; outros duvidam do número; como quer que fosse, sempre era grande; o mesmo A. refere uma passagem do Livro dos usos do dito Mosteiro, que determina, que "na 5.ª feira Maior se chamem para o Lava-pés tantos pobres, quanto Monges houver: e no caso de se não acharem tantos pobres Curet Soliem (o Abade) quos centum et viginti minime deficiant."). A utilidade intrínseca de Agricultura, os exemplos destes virtuosos Monges, o favor do Príncipe, e dos poderosos, para o aumento da povoação, e por consequência da Cultura, tudo animou os homens, e começaram a empregar-se com mais gosto nos trabalhos da lavoura.

Neste tempo ainda não era cultivada por nós, mais que uma pequena parte da Estremadura. A Beira nem toda era cultivada, o Além-Tejo era ocupado de Mouros, que não deixavam trabalhar os naturais, oprimindo-os ou com a escravidão, ou com a guerra.

Entrou o governo DelRei D. Afonso Henriques, em cujo tempo já nas três Províncias havia muita colheita de grãos, vinhos, e azeite, principalmente nas vizinhanças de Coimbra. Duarte Galvão, e Duarte Nunes de Leão nos contam, que estando este Príncipe em Guimarães vieram os Mouros cercar Coimbra, e destruíram "pães, hortas, vinhos, e olivais, com tudo era tanta a abundância destes géneros na Cidade, que davam cinco quarteiros de trigo per um meravidy de ouro e dois moros de vinho por outro maravidy" são formais palavras por que Duarte Galvão se explica (Duarte Galv. Crónica Cap 7).

As armas Portuguesas conduzidas por este Príncipe foram correndo pela Estremadura, entrando por Além-Tejo, e compelindo os Mouros até aos fins da Monarquia. Novas terras conquistadas pediam novos povoadores, e colonos. Ele todo ocupado na reparação da Pátria, vendo que os trabalhadores da guerra lhe não deixavam pôr todos os esforços no aumento da Cultura, seguiu os vestígios de seu Pai, já em cuidar, que se fizessem novas povoações, já em repartir as terras pelos Corpos de mão morta; deu muitas às Catedrais de Viseu, e Coimbra, que fizeram fundar inumeráveis povoações (consta das nossas Crónicas, da Monarquia Lusitana, e de infinitos documentos dos referidos cartórios; fez das terras de Coja outro, e Senhorio dos Bispos de Coimbra, que as fizeram cultivar - Brand. Part. III liv. 9 Cap.18), outras muitas ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (o livro das doações de S. Cruz está cheio de provas "Fez o couto de Verida a esta Casa, na Era de 1204 e deu suas terras para se fazerem abrir", "deu também o Castelo de S. Olaia"; A doação deste Castelo traz Brand. Part. III Liv. II Cap. 7; também lhe deu Leiria, da qual o Rei diz "Quod castruns in terra deserta ego primitus edificavi" Id. Part. III Liv. 9 Cap. 25). Estas corporações repartiram também as terras pelos seus colonos com foros, ou por convenções de partilhas na colheita, por terço, quarto, e oitavo; e esta foi a origem dos direitos que este Mosteiro ainda hoje tem nos campos de Cadima, Tocha, Antuzede, Reveles, Ribeira de Frades, Condeixa a nova, e Vetride povoações, que aquela Comunidade ou fundou, ou reedificou para cómodo dos seus Lavradores.

(a continuar)

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