17/06/15

O PUNHAL DOS CORCUNDAS Nº 16 (II)

(continuação da I parte)

Livros

Ainda terei ocasião de patentear as equivocações e paralogismos das Côrtes Lusitanas sobre o artigo da censura dos livros, matéria esta em que os factos são mais poderosos que os raciocínios; e por agora satisfaço-me de ponderar que apenas os egrégios canonistas furtaram à Igreja todo o exame dos livros, nunca mais de pôde ter mão neles, para que não inundassem e pervertessem os reinos onde a autoridade civil se apossou daquela censura. Descansem por uma vez os engenhosos fabricantes de novas máquinas regeneradoras, que cedo ou tarde se voltará tudo contra eles, e uma desgraçada experiência os convencerá de que há certos interesses ligados intimamente à Fé, os quais só ficam bem nas mãos de uma Depositária fidelíssima, qual é a Igreja de Deus.

Um dos primeiros cuidados da nossa regeneração foi soltar os diques à torrente de maus livros, que até esse tempo se vendiam às ocultas e debaixo do capote, e dar amplíssima faculdade aos livreiros para terem sobre os mostradores A religiosa de Diderot, as obras mais ímpias de Voltaire e Freret; que as de Rousseau, não obstante o serem proibidas há muitos anos pela Real Mesa Censória, já se vendiam antes de 1820 sem rebuço, o que não admira, quando em Julho deste ano de 1823 se imprimia na Tipografia da Universidade o Contrato Social, porventura a fim de se radicar mais e mais a adesão e fidelidade ao Trono Português. Quase não havia neste Reino uma loja de livros, que não se tivesse mudado em em uma botica a mais bem sórdida de venenos, para se matar com eles quem se desgostasse de viver segundo os preceitos do Cristianismo. Para direcção dos novos costumes liberais tinha acudido um enxame de exemplares das Cartas do Lente de Matemática José Anastácio, onde se metem à bulha os dogmas do pecado original, da predestinação, das penas eternas (freio este que os Liberais tratam logo despedaçar a todo o custo), e a imortalidade da alma, e sua liberdade, etc. etc.. Guardarão a simples decência de lhe assinarem a cidade de Paris, como o lugar em que tinham sido impressas, quando por todos os exames e combinações se depreende claramente que tinha sido em Coimbra... Pois que impulso não deram à veneração das coisas santas, e à observância dos preceitos da Igreja um Cidadão Lusitano, e as Superstições descobertas?

Que nuvem de Santos de pau carunchoso não ameaçou procriar o licencioso retrato de Vénus? Que virtuosas donzelas, que boas mães de família não devia formar a piedosa leitura do Toucador das Senhoras, onde se lhes propinou desaforada e periodicamente o que há de mais venenoso em todos os escritos modernamente dedicados à obscenidade? Se algum destes livros, como notoriamente incurso nos abusos da liberdade de imprensa, era denunciado ao Júri, lá estavam os incorruptos e venerandos Jurados de Lisboa, que deixavam passar carros e carretas, e que, ouvindo a convicção íntima de suas melindrosas consciências, achavam que a licença franca de seguir os prazeres carnais, como outras tantas virtudes, e o escárnio das obras inspiradas e canónicas era um simples jogo de crianças!!! Pois um certo periódico mensal chamado Compilador, que meteu a salvo nessa farragem de inépcias quanto lhe veio à cabeça para mofar de tudo que é sagrado, e especialmente dos milagres, a que a devoção dos Portugueses tem dado há séculos inteiro crédito!! Pois o tom dictatório com que o Diário do Governo, ou das parvoíces, metia a sua colherada nos assuntos religiosos, confundindo e enxovalhando tudo!!! Os periódicos e mais impressos constitucionais seguiram a doutrina e sistema anti-religioso da Assembleia Francesa. Esta Assembleia extinguiu as ordens religiosas, e proibiu que os regulares trouxessem o hábito das ordens extintas. O Teólogo regular que escreveu as Memórias para as Côrtes Lusitanas decretou o mesmo: "Enfim (diz) o nome de Frade nunca mais deve lembrar, nem vestuário que o indique", e as Freiras são incluídas nesta extinção. O mesmo decretou o Dr. Apóstata; nas suas advertências úteis à pág. 30 n.º5, falando das Freiras, diz: "dispondo as coisas de modo, que com andar dos tempos se venham a extinguir" etc., palavras que declaram bem a sentença de morte contra os regulares. Mas outro ex-Frade e vagabundo Teólogo decreta a sua extinção com mais infâmia nas suas reflexões sobre um e outro Clero. Ele repete contra estas ordens respeitáveis os impropérios e calúnias dos hereges, e professa contra estas instituições religiosas o mesmo desprezo, ódio e rancor dos ímpios.

Este mesmo como o Teólogo Frade estabelecem todas as máximas da Assembleia Francesa, e justificam e autorizam o Congresso Português para as decretar. Ele quer a tolerância até ao ponto de se unir o Teólogo com o Filósofo: quer a extinção do Santo ofício: declara o Congresso autorizado para as reformas eclesiásticas: quer a extinção das imunidades, e o saque dos bens eclesiásticos, que declara nacionais e pertencentes à Nação. O ex-Frade zomba e escarnece de toda a Teologia; afirma que a Polémica tem feito hereges, a Mística doidos, e a Exegética até ateus. Ele quer que se desterre essa ciência, e que a Religião seja ensinada só por um Catecismo. Mas quem deverá fazer este Catecismo? Será um Teólogo e Mestre da lei? Isso não quer o ex-Frade. Chama questões de insignificância às que se suscitaram no séc. IV entre os Arianos e Católicos, e fala com desprezo delas, tendo em nenhuma monta a defesa de um dogma fundamental da Religião, como é o da Santíssima Trindade; nem é menos notável quando fala nos debates teológicos a favor da doutrina da Graça desde Santo Agostinho até nós.

D. Pedro de Alcântara, Imperador do Brasil, deu ordem de extinção de todas as Ordens religiosas em Portugal.

Para justificar a autoridade, que dá ao Congresso para as reformas eclesiásticas, não só calúnia os Concílios, e até os gerais, mas também afirma que sente mal destas Assembleias gerais. Ele as tem, como os Protestantes, por meramente humanas, isto é, não vê nelas senão homens, e as paixões dos homens, o que é injurioso ao Espírito Santo que as dirige, e às promessas de J. C. à sua Igreja, que tão positivamente nega. Este Teólogo confirma com a sua doutrina o que o Reformador da Itália dizia em 1769: que a Seita Teológica estava já adiantada em Portugal.

Item decretam contra os celibatários, e que ao Papa se peça licença para que os Frades e Freiras de pouca idade se casem. Podia-se-lhe repetir aquela sentença de Erasmo a Lutero: "A vossa reforma acaba, como as comédias, em casamentos, e provar com Bergier que é mais prejudicial à república civil e moral o celibatário da libertinagem do que o eclesiástico e religioso. Decreta mais a reforma das rendas dos arcebispos, Bispos, e Cónegos etc., e com poder mais que pontifício os põe a pão e laranja, e extingue os dízimos com fundamento de que não são de direito divino. Em consequência desta abolição manda sustentar o Clero secular pelos seus fregueses. Que política1 lançar uma nova contribuição ao povo para lhe tirar os dízimos a que estava acostumado: e que doutrina! J. C. ordenou que os que servem o Altar vivam do Altar, e proibindo-lhe o implicarem-se em negócios seculares, não lhe especificou e realizou esta côngrua e quota, e não pertencia à sua Igreja o realizá-la, quando isto se fez necessário? Pode haver autoridade mais legítima do que a Comissária de J. C. para todos os assuntos religiosos? E como estes dízimos não foram taxados por J. C., mas sim pela sua Igreja, decide que sejam abolidos, e até o seu nome. E quem não vê que pretendem nisto reformar mais o poder da Igreja que os Eclesiásticos? Nem um Concílio geral faria tanto. mas se por não serem os dízimos de direito divino devem ser abolidos, que outra coisa se lhes poderá substituir que não fique sujeita á mesma sentença de abolição dada pelo mesmo direito, e pelos mesmos juízes? Sustentem-se de pensões dadas ou pelos povos, ou pelo Estado; e afinal que teremos, senão decretos de direito humano para a sustentação do Clero? e por mais que se decrete para se substituir os dízimos, ficará sujeito à abolição pelo mesmo fundamento de que não é de direito divino. O fim destas reformas era, à imitação da revolução da França, tirar aos Eclesiásticos a sua côngrua sustentação, para que diminuísse e acabasse o Clero, e com ele a Igreja, porque esta não subsiste sem Ministros. e se a côngrua sustentação deles é de direito divino, não será contra direito divino tirar-lha? Veja-se Bergier sobre este ponto.

Item extinguiram estes dois Mações a Ordem de mala, e das Comendatarias, e até as músicas das Catedrais, e tão republicanos como os da Assembleia de França, queriam dar cabo dos vínculos, e nos eclesiásticos de toda a representação civil. Abolindo assim pelo primeiro decreto a Nobreza ou aquilo que a sustentava, e pelo segundo o que constitui o Clero um dos estados da Monarquia, reduzindo por estes dois decretos a Monarquia a um estado popular. Ambos decretam a tolerância universal, que é o mesmo que religião nenhuma.

O Reformador regular exclui, como a assembleia Francesa, o Papa da eleição e confirmação dos Bispos, cometendo-a a um Concílio nacional; e o Apóstata acrescenta que toda a dignidade eclesiástica será dada pelo Rei e pela Nação, e que nunca mais se torne a recorrer a Roma para a sagração de Arcebispos, Bispos, e Párocos (sagração de Parcos!!), porque (diz este fauto) não consta que J. C. desse mais poder ao Bispo de Roma que aos mais Bispos; seguiu o erro condenado de Mersilio de Pádua, e é Protestante, porque nega o primado de autoridade ao Sumo Pontífice, e é réu do Alvará de 30 de Julho de 1795, por igualar os Bispos ao papa seu Primaz. Uns tais Bispos não teriam Missão divina, e uma tal doutrina nasceu do espírito de insubordinação com que sacudiram o jugo das leis da Igreja, e lhe negaram o influxo do Espírito Santo. Fiquemos por aqui.

Eis aqui muito em grosso uma noção sucinta do que nós aproveitámos durante o Sistema Constitucional, que, se por nossos pecados, chega a ter mais um ano de duração, creio firmemente que seriam irreparáveis os seus danos. Entretanto será coisa bem lastimosa que não seque de todo a fonte que ainda corre dos países estrangeiros, e que o Império civil não desembainhe quanto antes a espada da lei para castigar os seus infractores; visto que será inútil qualquer outro remédio enquanto a nossa mocidade se imbuir das perversas doutrinas de tais mestres, que seriam os únicos autores de nossas maiores desgraças, se os mestres vivos, e existentes não fossem ainda mais para temer.

(continuação, III parte)

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