07/05/15

IMITAÇÃO DE CRISTO - Thomas de Kempis (LXXXI)

(continuação da LXXX parte)

A IMITAÇÃO DE CRISTO

Thomas de Kempis

III Livro
A Fonte Das Consolações
 

Cap. LIV
Os Diversos Movimentos Da Natureza E Da Graça

1. Cristo - Filho, cuida bem em bem discernir os movimentos da natureza dos da graça, porque eles são muito subtis e contrários, e apenas o homem espiritual e esclarecido pode distingui-los.
Todos desejam o bem e, nas suas palavras e obras, buscam algum bem; por isso se enganam muitos com as aparências do bem.
A natureza é artificiosa; arrasta a maior parte dos homens, engana-os e prende-os com os seus atractivos. Ela tem sempre por fim a sua própria satisfação. Ao contrário, a graça caminha na simplicidade, evita as ilusões das aparências, não arma ciladas e tudo faz puramente por Deus, em quem repousa como em seu fim último.

2. A natureza não quer morrer, nem ser oprimida, nem domada; não obedece de boa vontade, nem pode sofrer que a sujeitem. A graça, pelo contrário, faz que a alma trabalhe por mortificar-se; que resista à sensualidade; que deseje sujeitar-se; que apeteça ser domada; que não queira usar da própria liberdade; que estime viver debaixo da disciplina; e que, longe de desejar ter império sobre alguma coisa, ame ser e viver debaixo de Deus, pronta a humilhar-se por amor ao mesmo Senhor.
A natureza trabalha pelo seu próprio interesse e considera a utilidade que pode tirar dos outros. A graça não põe interesse pessoal no que faz, pois só pensa em ser útil a muitos.
A natureza recebe convosco as honrarias e a veneração. A graça atribui a Deus todas as homenagens e glórias.

3. A natureza teme a humilhação e o desprezo. A graça gosta de sofrer injúrias por amor de Jesus Cristo.
A natureza ama a ociosidade e o descanso do corpo. A graça não pode estar ociosa e dedica-se diligentemente ao trabalho.
A natureza procura as coisas belas e atraentes e tem horror às coisas vis e grosseiras. A graça deleita-se com as coisas simples e humildes, não rejeita o áspero e o rude nem se envergonha se lhe é forçoso servir-se de vestidos velhos e usados.
A natureza olha para os bens temporais; regozija-se quando ganha, entristece-se quando perde, irrita-se com a menor palavra injuriosa.
A graça não considera senão o que é eterno; não se perturba com nenhuma perda; não se irrita com as palavras ásperas: porque o seu tesouro e a sua alegria foram colocados no Céu, onde nada perece.

4. A natureza é avarenta; mais estima receber do que dar; somente ama o que lhe é próprio e particular. A graça é caritativa; ama o bem comum; evita tudo o que representa egoístico interesse; contenta-se com o pouco e julga que é melhor dar do que receber.
A natureza inclina-se para as criaturas; para os prazeres do corpo, para os divertimentos e passatempos. A graça inclina-se para Deus e para as virtudes; renuncia às criaturas; foge do mundo; aborrece os apetites da carne; limita as recreações; envergonha-se de todas as vezes que lhe é necessário aparecer em público.
A natureza folga de ter consolações externas, que lhe afaguem os sentidos. A graça só acha consolação em Deus e, desprezando todos os bens visíveis, não acha a sua alegria senão no invisível e supremo bem.

5. A natureza é interessada em tudo o que obra. Nada faz gratuitamente. Pelos benefícios que espalha, espera alcançar ouros iguais ou maiores ou, pelo menos, aplausos e louvores. Deseja que sejam tidas em altas considerações as suas benemerências. A graça, entretanto, não busca recompensas temporais; não pede por prémio senão a Deus; dos bens do mundo não quer mais do que os porventura necessários para com eles servindo a Deus, adquirir os bens eternos.

6. A natureza orgulha-se de ter muitos admiradores e amigos; com vaidade alardeia a nobreza do seu nascimento; anda à vontade dos poderosos; lisonjeia os ricos e admira com fervor os que, nestes particulares, lhe são semelhantes.
A graça ama os próprios inimigos e não se envaidece do grande número de amigos; de nada lhe vale a linhagem onde não há virtude; favorece mais ao pobre do que ao rico; não lisonjeia os poderosos, mas compadece-se dos inocentes e aflitos; ama as almas simples e sinceras e não as artificiosas; exorta sempre os bons a serem melhores e a assemelharem-se ao Filho de Deus pelo exercício das virtudes.
A natureza queixa-se facilmente do que lhe falta e do que lhe é penoso. A graça, com perseverança, sofre a pobreza.

7. A natureza tudo ordena para si; para si peleja e disputa
A graça tudo dirige para Deus, como a fonte de que tudo dimana. Não atribui a si bem algum; de si nada presume; não disputa nem pretende impor o seu arbítrio aos outros, mas em tudo sujeita os seus sentimentos à Sabedoria Eterna, ao juízo de Deus.
A natureza deseja saber segredos e novidades; gosta de aparecer e experimentar tudo o que os sentidos podem apreender; deseja ser conhecida e fazer coisas que lhe mereçam louvores e a admiração dos homens.
A graça não trata de saber novidades nem curiosidades, porque sabe que esta paixão decorre do homem corrompido e velho e que nenhuma coisa é nova e durável sobre a Terra. Ela nos ensina a reprimir os sentidos, a vã complacência e a humana ostentação; a ocultar tudo o que é digno de um justo louvor, escondendo-se a virtude sob o véu de uma sincera humildade; e a não procurar nas coisas e na ciência senão o proveito espiritual e a glória de Deus. Não quer para si, nem para as suas obras, a exaltação dos homens, mas, se esta for inevitável, que reverta na exaltação de Deus, que prodigaliza os dons pessoais com a mais larga liberalidade.

8. Esta graça é uma luz sobrenatural e especial dom de Deus, o selo dos eleitos, o penhor da salvação, pois eleva o homem das coisas terrenas ao amor das celestiais e de carnal que era o torna espiritual.
Quanto mais dominada estiver a natureza, tanto maior a graça ao homem se comunica, de sorte que ele se reforma dia a dia, por novas comunicações, segundo a imagem de Deus.

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