21/01/15

IMAGEM DA VIDA CRISTÃ (I)

(da obra "Imagem da Vida Cristã", de Fr. Heitor Pinto)

DIÁLOGO DA VERDADEIRA FILOSOFIA
(adaptação nos diálogos, por Ascendens)

I
Capítulo

Da excelência da vista sobre os outros sentidos, e da descobrimento da verdade.

Indo praticando pelos cemceirais de Coimbra ao longo do Mondego dois amigos, que saíram da cidade, um deles dado muito ao estudo da humanidade, que presumia excessivamente de discreto e grande filósofo, e queria antes parece-lo, que sê-lo, da condição dos que escolhem antes latão lustroso, que prata sem lustro, outro menos humanista, mas mais humano, encontraram com um ermitão, homem religioso e letrado, de que tinham conhecimento doutro tempo, em que todos naquela universidade estudaram e conversaram. E depois de sandados, e passarem ante si algumas amorosas palavras, perguntou o filósofo ao ermitão como estava, e que anos tinha de idade, porque lhe parecia mais velho do que ele julgava ser:

- Ermitão: Eu não estou, nem tenho nem um só ano de idade; e o mesmo podem com verdade dizer de si todos os homens.

- Filósofo: É nova opinião, essa.

- Er: Nem é nova nem opinião, se não antiga e manifesta verdade. Que se fora nova começara há pouco, mas ela é sentença dos sábios antigos, que de si deixaram gloriosa memória: e se fôra opinião fôra de coisas contingentes e incertas, mas ela é necessária e certíssima.

- Fi: E eu tenho-a por falsíssima. E é ou tão são dúvida, que a não terá nisso, se não quem segundo o costume dos académicos, quiser em tudo duvidar.

- Companheiro: Aí há verdades que não parecem, não por não serem, mas por não entendermos a diversidade do estilo em que são ditas. Digo isto, porque o padre, como se desnaturou do mundo, para que quanto dele estivesse mais apartado, tanto estivesse com Deus mais unido, e quanto mais longe estivesse da terra, e de si ainda mais longe, tanto mais perto estivesse do céu, tem outro estilo tão diferentes do nosso, que havemos de entender: que se o não estendemos é porque passa ele além das balisas do nosso entendimento, mas não porque em suas palavras haja erro, nem falsidade.

- Fi: Não sei porque sem razões, para escusar uma sem razão: pois de querer escusar uma nascem muitas. Assim, como lançando uma pedra num grande poço se faz um círculo na água, e dele procede outro maior, e este maior faz outro mais estendido, após o qual vem outro e outros cada vez maiores, quase em infinito, assim de um erro nasce outro, e este traz outro consigo maior, após o qual vem muitos outros cada vez maiores, quase em infinito, se lhe não atalham logo no princípio. Fácil coisa seria atalhar logo no princípio a um rio, entupindo-lhe a fonte, donde nasce, ou lançando-lha por outra banda: mas depois que nele entrada de muitos rios se faz poderoso e profundo, não há quem lhe possa resistir. Isto é o que diz Aristóteles, que pequeno erro no princípio se faz grande no fim, e que dado um inconveniente se seguem muitos. E às vezes de não apagar uma palha, se vem atear o fogo numa e noutra até que se vem a queimar toda uma casa, e de pequena faisca se faz grande incêndio.

- Co: Eu não me determino logo tão asinha como isso a condenar, o que não acabo de entender. E sempre tive para mim que as coisas se haviam de julgar com deliberação. Que como diz Bias o filósofo, segundo refere Laercio, nenhuma coisa é mais contrária a deliberar que a ira e a pressa. E não vos pareça que repreendo a diligência nas obras, antes tenho para mim que não há coisa que ela não vença. Porque assim como a negligência é mãe de todas elas. Ela é uma mina de bens, e a negligência um pego sem fundo, em que todos se alagam. Mas a diligência há-de ser pesada, e levando nos pés as esporas da ligeireza e velocidade, há-de levar na mão as rédeas da razão e do conselho: de maneira que na deliberação há de ver tardança, e na execução da boa obra pressa. Donde veio aquele tão antigo como famoso proverbio: Apressa-te devagar. O que também quis significar o Imperador Tito Vespasiano, filho do grande Vespasiano, quando mandou pôr por divisa nas suas medalhas um golfinho velocíssimo, enrodilhado numa âncora vagarosa.

- Fi: É verdade que pela âncora se entende a tardança, e pelo golfinho a pressa: porque Aristóteles afirma que é ele ligeiríssimo. E opinam no seu segundo livro da natureza dos peixes diz, que nadam os golfinhos tanto pela água, como voam as aves pelo ar. E Plínio no seu nono livro da história natural diz, que são os mais ligeiros de todos os animais, assim aquatiles [aquáticos], como terrestres, como volátiles [voadores]. E não somente Tito Vespertino, mas Octaviano Augusto se soía muito deleitar com esse provérbio, como conta Aulo Gelio no décimo das suas noites Aticas, e Macróbio no sexto dos Saturnaes. Mas isso se entende, quando se representam algumas dúvidas, que fazem distrair o ânimo em diversos pareceres. Entram há dever deliberação vagarosa, e maduro conselho, o qual há-de ser secreto: e por isso edificaram os antigos romanos o templo de Conso, a quem eles chamavam deus dos conselhos, debaixo da terra. E após o conselho se há de seguir a execução com tanta diligência, que pareça que o efeito precedeu à deliberação, de maneira que primeiro pareça feito, que cuidado. Mas quando as coisas são tão manifestas, que nelas não há que deliberar, de que serve gastar o tempo em conselhos: e ocupar o juízo em escolher quantas coisas a vária fantasia lhe representa, e o pensamento em fazer dificuldades, onde as não há? Quando os erros são tão claros, como é este do padre, para que é senão condená-los logo sem mais?

- Co: Eu, todavia suspendo o entendimento, até ver como vós padre provais, que nem vós, nem homem algum está, nem tem anos de idade. Folgaria muito em saber como pode isso ser.

- Fi: Isso, disse o filósofo, não sabereis vos nunca.

- Co: Porquê?

- Fi: Porque o que nem é não se pode saber.

- Er: Eu vos provarei o que digo, se vós não tiverdes os ouvidos entupidos e opilados.

- Fi: Antes creio eu que no-los entupireis vós com palavras, e enfim não a dareis a vossa empresa.

- Co: Coisa é esta que eu em estremo folgaria de ouvir. E para isto assente-mo-nos.

- Fi: Assente-mo-nos, que eu estarei aqui encostado a esta verde e sombria árvore, e ouvi se vos bem parecer.

- Co: Vós padre podeis dizer o que quiserdes, sem nos pedirdes as vontades, em especial a minha, que não discrepará da vossa.

(a continuar)

2 comentários:

Anónimo disse...

Me encanta, tu blog. Me enamoro de ti!

anónimo disse...

pois...!!!

TEXTOS ANTERIORES