05/12/14

EM TEMPO DO CARDEAL REI D. HENRIQUE

Cardeal Rei D. Henrique, Rei de Portugal
"Achava-se (disse Soldado) em Alcobaça o Cardeal Infante quando teve a notícia da morte do sobrinho, perda da batalha, destruição do Reino; veio logo a Lisboa, que o recebeu com lágrimas, vendo os dois extremos, em que se estribára a nossa desgraça, D. Sebastião aclamado na idade de três anos, este na de sessenta e seis anos, e sete meses; aquele por menino, este por velho incapazes, perigosos, e infelizes. Na Igreja do Hospital Real de Lisboa o aclamaram Rei; e o Camareiro mór, chorando muitas lágrimas, lhe entregou o Ceptro, que ele recebeu derramando muitas. Acção foi esta a mais bem considerada naquele tempo; porque um Rei tão velho, e achado, que tomava o Ceptro de um Reino tão enfermo, só no Hospital devia ser aclamado. Apenas o viram no Sólio os Príncipes da Europa, quando quase todos com os pêsames, e parabéns, lhe mandaram dizer que eram seus herdeiros. Ainda se não viu Clérigo rico que deixasse de ser perseguido de sobrinhos, e parentes quando velho, esperando cada um que lhe deixe tudo: este foi o Clérigo mais rico, que teve este Reino; todos os sobrinhos, e parentes o cercavam agora no Sólio para herdá-lo; eram eles D. Filipe II, Rei de Espanha, o segundo D. Catarina de Bragança, terceiro o Duque de Saboia, quarto o Príncipe de Parma, quinto D. António Prior do Crato, sexto o Sumo Pontífice, sétimo a Rainha Isabel de Inglaterra, oitavo a Rainha de França, nono (este era, e foi o crítico) o povo do Reino, dizendo-lhe que pertencia dar a Coroa livremente a quem quisesse; porque [segundo alguns queriam] ele a dera ao Rei D. Afonso Henriques, e a D. João I [veja-se já neste tempo as erradas ideias democratistas]. Deixo à vossa consideração os tumultos, conciliábulos, discórdias, ideias, parcialidades, em que ardeu esta miserável República [significa: ordem pública, e não é a ideia de "república" como o sentido que hoje se difunde] com oito Embaixadores, oito Pretendentes, alegando cada um o seu direito, e solicitando o consentimento da Nobreza, e Povo, e este, monstro quase desenfreado, querendo ser Árbitro, e Juiz sem cabeça, nem juízo. Aflito se via o venerável Rei velho, perseguido de tantos; e como a raíz desta perseguição era o ser Clérigo, resolveu-se a deixar de o ser, para que eles deixassem de o perseguir; pediu ao Papa dispensa para casar; e em quanto ela não vinha, começou nova discórdia na escolha de noiva, uns votaram na sobrinha, filha do Duque de Bragança, outros, que o julgavam incapazes para donzelas, lhe aconselhavam as viúvas; e com efeito mandou vir o retrato da Rainha mãe, de França; em fim tudo era buscar Médicos, sem tomar os remédios; o Rei tinha em casa a mulher pintada, e é como a podia ter (diz Faria). O Papa sim queria expedir a licença; porém uma mão poderosa, e pretendente da Coroa ocultamente a retardava; e nisto se passou ano e meio, no fim do qual morreu o santo Velho, e acabou-se a tragédia divertida [divertida, aqui significa diversificada e divergente], para começar outra perniciosa, e sanguinolenta. Enquanto se cuidava em casamentos, e alegar direitos, o Rei Filipe Prudente, e nesta ocasião prudentíssimo, tinha mandado a Portugal D. Cristóvão de Moura, aquele incomparável Político, de que já falámos na vida do Rei D. Sebastião; e sendo o recado público da Embaixada dar só o peza-me de morte, e desgraça, os parabéns ao Velho pela Coroa, e oferecer dinheiro para resgatar os cativos, que ficaram em África; as instâncias ocultas eram conquistar os corações do Rei, Grandes, e Povo, para que reconhecesse no Rei D. Filipe o melhor direito. D. Cristóvão obrou isto com tal grandeza de juízo, política, modo, segredo, destreza, generosidade, e desinteresse, que, sabendo-se o que fez, e que ele só conquistou para o Rei D. Filipe o Reino, o coração do Rei velho, dos Grandes, e todo o bom, e melhor Povo, ninguém pôde dizer, nem elogiar cabalmente, menos compreender esta acção notável daquele Herói insigne, depois Conde, e Marquês de Castelo Rodrigo, Grande de Espanha, Conselheiro de Estado, e primeiro Vice-Rei deste Reino, a quem ilustrou, nascendo para o seu remédio, e vivendo para lhe evitar precipícios, adquirir honras, e privilégios, como logo diremos. Enquanto D. Cristóvão aplicava remédios cordeais à Monarquia, mostrando que não podíamos resistir às armas de Espanha; e despendendo inumerável dinheiro nos resgates de África, sendo o primeiro, que veio resgatado com dinheiro de Castela o filho do Duque de Bragança, ao qual se seguiram muitos Grandes do Reino, que lá estavam penando. O Cardeal Rei ora se inclinava à sobrinha, Duquesa de Bragança, ora ao sobrinho D. António, filho ilegítimo do Infante D. Luís, ao qual tinha obrigado a tomar ordens de Evangelho; e depois favorecido do Rei de Espanha, conseguiu usar espada, e com ela o recebeu o tio Rei, agora em Lisboa, alegre, festivo, e muito inclinado; intentou ele provar que era filho legítimo do Infante D. Luís, e da Pelicana Violante Gomes, dando testemunhas comparas, que juraram a tinha recebido o Infante por sua mulher ocultadamente: no tempo do seu cativeiro em África estudou bem o ponto, e agora entre os tumultos da Côrte, achou todo o necessário para o intento; e o mais é, o Rei Filipe de Castela seu patrono, de sorte que, provado o ser filho legítimo do Infante D. Luís, ninguém lhe podia disputar a Coroa, e o ser o legítimo, e verdadeiro Rei desta Monarquia; porque se seu pai fosse vivo, havia de ser o Rei, e não o Cardeal, que foi oitavo filho do Rei D. Manuel, e D. Luís, pai de D. António, quinto filho do mesmo Rei. Mas este grande negócio mostrava de instante para instante um rosto diferente, o tio, que o recebeu nos braços quando chegou do cativeiro de África, agora vendo que ele intentava mostrar que seu irmão D. Luís fôra casado com mulher de tão baixa esfera, convocou a si os autos, deu sentença contra ele, mandou que saísse trinta lagoas fora da Côrte, procedeu contra as testemunhas; e Filipe Prudente dando armas contra si, e contra seu Procurador, e Embaixador D. Cristóvão alcançou um Breve do papa a favor de D. António, mandado ir a Causa a Roma, e dando por nula toda, e qualquer sentença; o que logo se executou à risca; porém isto mesmo fez crescer a cólera ao Rei contra os sobrinhos, e mandou que os Duques de Bragança também saíssem trinta lagoas fora de Lisboa. D. António vendo a[?]usa em Roma, e supondo o que alguns lhe diziam, isto é, que o Rei de Espanha não pedira o Breve para o favorecer, mas sim para o incapacitar para a sucessão, porque fôra a súplica feita, antes do Cardeal Rei sentenciar a causa, tempo, em que julgavam todos, e primeiro D. Filipe, que o Velho havia de julgar em favor do sobrinho; o que só se evitava julgando Roma o contrário; cometeu a D. Cristóvão partidos, que lhe deixasse Filipe o Algarve com o título de Rei dele, e trezentos mil ducados de renda, ametade perpétuos, e cederia de todo o direito à Coroa, e pretensão dela, Valia um Ducado nesse tempo quatrocentos e quarenta e um réis, hoje vale quinhentos e cinquenta e um e meio, o que não obstante, parece muito, não só o que pedia, mas ainda ametade. Não se lhe deu resposta; e ele confuso maquinou daí por diante a sua desgraça, e da Monarquia: o Rei Cardeal cheio de bons desejos, e com natural frouxidão para executá-los, chamou o Povo à Côrte na Vila de Almeirim; e enquanto se juntavam, Filipe Prudente temendo as diligências dos Duques de Bragança, e de D. António, ofereceu a este por D. Cristóvão o Priorado de S. João em Espanha; e o governo deste Reino, enquanto fosse vivo, ao Duque; e o casamento do Príncipe, seu filho herdeiro, com uma filha sua, e os maiores aumentos para a Casa de Bragança: ambos rejeitaram os oferecimentos; e chegados os Procuradores, se resolveu nas Côrtes, que o Rei nomeasse Governadores, que depois da sua morte julgassem a quem pertencia o Reino. Não se dá parecer mais falto de juízo em caso tão pensado; as desgraças não tinham número, as futuras diante dos olhos voando, o remédio declarar herdeiro, os pretendentes já só três; porque a distância fez, que perdessem as esperanças os mais: e resolvem três Estados de um Reino juntos, que, depois de mais alterações, e parcialidades, que viam crescer todos os instantes, sem as poder coibir o poder, e venerável respeito de um Rei velho, Cardeal, Pontífice, e Inquisidor, curassem poucos Vassalos o que não queriam tarar todos os Estados do Reino juntos: os Embaixadores de Espanha eram já dois; porque tinha chegado o Duque de Ossuna a fazer só a D. Cristóvão companhia, e ambos instáram ao Rei pela resolução: seguiu-se ao requerimento um particular Concelho, no qual se assentou se compusessem como o Rei D. Filipe; convieram logo nisso os dois Estados, Eclesiásticos, e Nobreza; porém o monstro Povo resistiu firmíssimo, pensão de quem não tem juízo para considerar as coisas, o tempo, a ordem da providência, e o castigo Divino. Neste tempo, se aproveitaram muitos das mercês do Rei de Espanha, para o que trazia muitos papeis assinados em branco D. Cristóvão de Moura; porém ele, e seu pai, cujo exemplo foi causa de se inlinar a D. Filipe o melhor da Nobreza, procederam com exemplar, e eternamente memorável desinteresse, e fidalguia, porque D. Cristóvão se não aproveitou de coisas alguma, e seu pai nunca quis ver o Rei de Espanha: isto é pisar a cobiça, e avareza: e a maior façanha, que obraram os homens nesta vida: poucos deixaram nome na função presente; mas bastou um, para que a Nação ficasse com nome, este foi D. João Telo de Menezes, um dos cinco Governadores por morte do Cardeal Rei, herói dão desinteressado, e constante, que o Duque de Ossuna escreveu a D. Filipe, que a D. João, ou lhe haviam de cortar a cabeça, ou trazê-lo sobre as cabeça; de sorte, que (diz o grande Faria) os que nesta ocasião aceitaram mercês do Rei de Espanha, ou venderam o que era de Espanha por justiça, e de toda a sorte lhe devem restituir o que aceitaram. O Rei vendo crescer as ondas, sem ter ânimo para aplacá-las, chamou outra vez Côrtes para extingui-las, e só conseguiu que fossem mais bravas; porque como a opinião do Povo entretanto cobrou forças, apenas conheceram que ele estava inclinado às razões de Espanha, e direitos de Filipe Prudente, não deixaram acabar a pratica; gritaram de sorte, e com tal loucura, e veneração que infundiam os seus anos, carácter Pontifical, e Púrpura, que tudo nesse século tinha veneração dobrada, porque menos vezes se via; nem o exemplo dos Bispos, e mais Gentes seculares do Reino, diligências dos Embaixadores, e forças da razão, foram bastantes para temperar aquela perigosa dissonância do povo, animado pela sua ideada esperança cada indivíduo, como se bastassem ideias sem união, armas, nem dinheiro para desistir a um Monarca tão poderoso com exercito pronto, protestando direito à sucessão de um Reino desolado, porque não estava unido: verdade expressa de Cristo no Evangelho, onde diz que todo o Reino dividido em si, será desolado, e cairá todo. Mas quem havia persuadir a um Povo, que é monstro, verdades do Evangelho, nem profecias de S. Bernardo, nem o castigo Divino pelos pecados próprios, e de seus antepassados? Em fim nada se resolveu nas Côrtes, nem mais fruto, que serem maiores as parcialidades, e a morte, que parece que queria já ver o fim desta tragédia. Muito antes levou o Rei em Almeirim no último de Janeiro, dia em que tinha nascido, com sessenta e oito anos de idade, um, e quase meio de Reinado, no de 1589. Vinde logo." ("Academia dos Humildes e Ignorantes", Conferência XLVIII, ano de M.DCC.LIX, Lisboa)

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