18/11/14

DO CONDE D. HENRIQUE - por D. Fr. Fortunato de S. Boaventura (I)

ENSAIO DE UMA DISSERTAÇÃO HISTÓRICO-CRÍTICA SOBRE OS FACTOS MAIS CONTROVERSOS DA HISTÓRIA DO CONDE D: HENRIQUE, PRIMEIRO SOBERANO DE PORTUGAL, E TRONCO DA AUGUSTÍSSIMA CASA REINANTE.
(por D. Fr. Fortunato de S. Boaventura)

Capela-mor da igreja do Mosteiro de Alcobaça (Portugal)
"São quatro os pontos mais controversos da história do Conde D. Henrique, a saber:

1 - De quem era filho?
2 - A sua jornada, ou jornadas à Terra Santa;
3 - As últimas acções da sua vida;
4 - A independência do seu condado.

Tratarei pois de cada um deles separadamente, e a muitos respeitos com algumas novidades.

I Ponto
De Quem Era Filho?

Convém que a discussão deste primeiro ponto seja precedida de um lançar de olhos sobre as opiniões mais seguidas. A primeira, e mais antiga o supõe filho de um rei da Hungria; a segunda, filho e descendente da Casa de Lorena; a terceira, da Casa de Borgonha Condado; e a quarta, e última lisonjear-se de que a sua origem da Casa de Borgonha Ducado é axioma histórico; pois a quinta dos que iludidos da palavra Visontinus, que tomaram por Bisantinus (o que faz tanta diferença, quanta é a que vem de Besançon, cidade de França, à hoje capital do império otomano) é indigna até de fazer número, quanto mais de ser examinada, ou discutida.

II

Coisa estranha foi que os portugueses (todavia sempre inclinados mais ao que é estrangeiro, do que ao próprio e nacional) renunciassem tão facilmente à opinião mais antiga, que pelo menos valia a pena, de que se examinassem as coisas, porque os nosso antigos a defenderam e seguiram unanimemente por espaço de três séculos; e se tivessem feito o que eu agora me proponho fazer em ordem à opinião estrangeira, teriam sido mais remissos em adoptar esta; e pode ser, que o fruto dos seus exames fosse o voltarem sinceramente, e por uma vez, à que tinham seguido os seus maiores. Há outra circunstância histórica, das que devem pesar muito na consideração de todo o crítico prudente e desapaixonado; e vem a ser; que os próprios franceses já na descrição do séc. XVIII mostraram prescindir do argumento mais forte da quarta opinião, voltando à terceira, e sustentando-a com grande aparato de razões, que por certo me não seriam inúteis, se eu as tivesse pedido examinar; e seja esta a ocasião em que anuncie aos meus leitores, que não tive cópia de livros necessários, e a que principalmente devia recorrer, sendo um destes a História do Ducado de Borgonha, pelo Mauriano Plancher, sem que me seja necessário apontar aqui muitos das História do Reino da Hungria, que não se encontram nas mais cópias e selectas literárias deste reino. Assim mesmo porém desprovido de auxílios, que, se os tivesse, não chamaria a este opúsculo ensaio, mas dissertação formal (o que somente me será possível, quando eu recolha todos os subsídios, de que necessito, e que facilmente poderão dar nova face ao meu trabalho) por isso lhe dou um título, não só modesto, porém até necessário.

III

Considero a quarta opinião hoje tão válida e tão universalmente abraçada que, se eu desde logo tentasse expor a minha opinião, bastaria a força de antigas prevenções sustentadas pela gravíssima autoridade do cronista-mór Fr. António Brandão, de Duarte Ribeiro de Macedo, D. José Barbosa, Pe. António Pereira de Figueiredo, e do cisterciense Fr. Manuel de Figueiredo, para obrigarem a maior parte dos meus leitores a examinar desdenhosamente as minhas provas; que tanto é o poder e a influência de certas opiniões abraçadas sem exame, e defendidas mais por hábito, que por efeito de críticas e maduras reflexões. Convém pois que eu desfaça, primeiro que tudo, como o principal dos meus adversários, que se o deixasse como para a minha retaguarda, não poderia ser tão feliz, como espero, o sucesso final da contenda.

IV

Publicou-se em Frankfurt (1596) a colecção intitulada Historiae Francorum ab anno Christi 900 a annum 1285 scriptores veteres XI ex Schedis P. Pithaei, e pouco antes, e na própria cidade outra obra, ou colecção do mesmo género, a que tinha dado o título Annalium et Historiae Francorum ab anno Christi 708 ad annum 990 scriptores couetanei XI, o que parece dar a entender, que ele próprio tinha em maior conta a primeira das suas colecções. Na segunda pois, onde entram os autores antigos sem a qualificação de coetaneos, vem a célebre passagem que dá o conde D. Henrique por filho de um dos filhos de Roberto, Dique de Borgonha, expressão vaga, que por si mesma, e sem outra qualquer ponderação deveria ter causado grande reparo e desconfiança; pois constando pela histórica de França que o primogénito do duque Roberto deixará alguns filhos por sua morte, acontecida uns nove anos antes do falecimento de seu pai, convinha, ou para melhor dizer, era obrigação de quem nos transmitia a história contemporânea, designar de qual dos filhos do Duque Roberto era filho o nosso D. Henrique, mormente quando o próprio MS. de Fleury pouco antes nos havia certificado, do que o Príncipe Henrique tinha dois filhos, que depois sucederam no ducado de Borgonha: "Roberto" diz ele "Duce Burgundiorum obeunte quem supra retulimus, Ainrici Regis fuisse fratrem filio quoque ipsius Aiurico ante obitum patris mortuo, filius ipsiusAinrici Hugo Ducatum suscepit, quo facto Monacho post aliquos annos principatum ipsius frater Odo obtinuit." (1) À vista pois de tanto saber genealógico de uma parte, e de tão pouco da outra, será bem fácil a todos os leitores, ainda que sejam medianamente críticos chegarem ao conhecimento, ou da mais apoucada ciência do anónimo, ou de que os dois artigos são de diversos autores. Dado que seja o primeiro caso, não tem o historiador aquela como suprema autoridade, que vulgarmente perplexos e embaraçados para decidirmos, num prólogo de notícias de vários autores, quais destes foram os coetâneos.

V

Se o MS. de Fleury tira a sua força principal de certos indícios, de que o seu autor foi coevo de alguns sucessos, como por exemplo é o seu modo de falar, Vidimus duos solis, o que recai no ano de 1108, nesse mesmo parágrafo se lhe conhece a sua inexactidão, pois afirma que D. Afonso VI de Castela morreu no mesmo ano, em que também falecera o rei Filipe de França, Rex vero Adefonsus eodem anno, quo et Rex Philippus diem clausit extremum, (1) o que é notoriamente falso, pois é sabido que D. Afonso VI morreu no primeiro de junho de 1109; e se os monges de Fleury eram tão exactos em genealogia como em cronologia, mal podemos afiançar-lhe esse grau de autoridade, que mais por capricho, que por justiça tem desfrutado por mais de dois séculos. Nem o MS. é mais feliz na parte geográfica; e visto ser meu intento mais acrescentar do que transcrever, advertirei aos meus leitores duas coisas importantes, de que ainda farei o uso conveniente; e vem a ser: 1ª que o tal condado de D. Raimundo de Borgonha trans Ararim, que foi um dos argumentos geográficos, de que se valeu o mais crítico e apurado genealógico das Hispanhas (2) para denunciar e convencer de apócrifo o decantado MS. de Fleury até depois da novíssima reposta do cronista dos cistercienses ao citado autor, fica subsistindo em toda a sua força: 2ª que muito maior número de considerações geográficas se pode trazer contra o MS. de Fleury. É necessário explana-las brevemente.

(continuação, II parte)

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