25/03/14

SERMÃO SOBRE O ESPÍRITO DA SEITA DOMINANTE NO Séc. XIX (IV)

(continuação da III parte)

Eis aqui porque eu vos peço, que se vos é amável a verdade, que a todas as vistas vos deve ser amabilíssima, se é para vós apreciável o dote singularíssimo da razão que Deus vos há dado, eu vos peço, que vos não alisteis jamais, nem militeis debaixo das revoltosas bandeiras de qualquer partido; vede que se endurecerá de modo tal o vosso coração, que chegareis a ser dominados, e pisados como vis escravos. Vigiai sempre, e não vos deixeis levar senão da equidade; abri os olhos à verdadeira luz, segui sempre seu fulgor, e seus impulsos, por mais que contra vós se arme, e queira guerrear o empenho, a antipatia, ou a amizade, que em nenhum coração deve ter tanta força, e predomínio que o faça inimigo da verdade, ou menos parcial da justiça. Conheço perfeitamente, e até por experiência, que existem entre nós muitos, que querem escusar em si o espírito de partido com as leis da amizade; mais inútil, e indignamente o querem, porque as leis de uma verdadeira amizade são inimigas juradas de suas acções irracionais, e de seus cegos transportes. Onde, senão entre gente bárbara, e inculta, se viu, ou se escutou jamais este estranho modo de discorrer: aquele é do número de meus amigos, logo é preciso que eu entre sem outra razão em seus sentimentos, e paixões, é preciso que eu me vista de seu carácter, que me ponha da sua parte, e que por ele peleje; é-me preciso perseguir quem o persegue, infamar quem o infama, discorrer como ele discorre: ofenda-se emborra a Fé, a justiça, e a verdade. Onde, senão entre gente bárbara, e povos devastadores, se escutou este modo de pensar, e de sentir? E qual é o Povo, até à época do presente Vandalismo, onde se não escutou aquela contrária sentença nascida no mesmo seio da Idolatria: "Amigo até aos Altares", que quer dizer que é péssia, e detestável aquela amizade, a qual se sacrifica ou a verdade, ou a caridade, ou como acontece não raras vezes, a mesma Religião.

É neste passo que o zelo me referve na alma, e todo me abrasa o coração, e mo devora pelo bem da Pátria, e da Religião, me obriga a clamar contra as contradições em que andam consigo mesmo os modernos Filosofantes, cujo pestífero, e subtil veneno tantos indivíduos tem corrompido até no meio do fidelíssimo Povo Português. Estes Filosofantes com um dilúvio de palavras até corruptoras de nossa maternal linguagem, dizem em todos os lugares, e escrevem em todas as páginas, que o homem deve fazer uso da própria razão até nas mesmas matérias de Fé, e nos mais profundos Dogmas que ela nos ensina; e estes mesmos que assim clamam, que assim dogmatizam, e assim se assoalham por gravíssimos pensadores são os mais levados do espírito de partido, que é o maior, e o mais declarado inimigo de toda a razão. E é possível que não conheçam, que discorrendo desta arte fazem da própria razão um uso inútil, e arrogante, devendo fazer da mesma razão um uso proveitoso, e necessário! É necessário, e proveitoso o uso que se faz da razão humana nas coisas humanas, mas é arrogante, e inútil o que se faz da razão humana nas coisas divinas, e é tal a cegueira destes soberbíssimos átomos da sapiência gazetal, que quando falam das coisas humanas, falam, e sentem conforme a índole da paixão do partido que tomaram; e quando falam das coisas divinas, não querem acreditar senão naquilo que chega a compreender um entendimento órfão de luzes, e uma razão sempre envolta nas sombras da ignorância; duas vezes cegos, nas coisas humanas conde poderiam ver, e não querem; nas coisas divinas onde quereriam ver, e não podem: Videntes non vident, et audientes non inteligunt.

Mas tornando a vós com o discurso, eu vos considero bem alheios de quererdes introduzir o espírito de partido em matérias de Religião; mas se em outras matérias lhe dais lugar, é porque ignorais o que ele seja, e quão impróprio, e indigno pareça da razão humana; se o conhecêsseis, eu fico que não querereis fazer a vós mesmos uma tão grande injúria como é aquela de dever dizer sempre: eu amo, eu aborreço, eu louvo, eu reprovo, eu sigo este parecer, eu refuto aquele outro, mas não sei o porquê, nem outra razão me posso dar mais que um certo instinto semelhante àquele, que move as operações dos brutos, e que lhe moveria a língua, se tivessem o dom da palavra. mas se quereis desviar-vos desta manca da natureza e até do perigo da contrair, e se quereis para isso aceitar-me um maduro conselho, e escutar, e entender qual seja a praticar, e entender qual seja a prática mais segura, sabei que nas diversas, e encontradas opiniões que todos os dias surgem, e nas contínuas vicissitudes das coisas humanas, que todos os dias vão fazendo tão grande estrépito pelo Mundo, se vos não tocarem por algum respeito do vosso estado, e condição, não tomeis nelas parte nem com a obra, nem com a palavra, nem com o pensamento, se tanto vos for possível, se não quereis perder o tempo, e paz, a consciência, e faltar a vossos essenciais deveres por muito vos intrometeres nos alheios.

(continuação, parte V)

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