17/12/13

LOUVORES A PORTUGAL - POR OLHOS ESTRANGEIROS (I)

Laure Permon, Duquesa de Abrantes (mulher do general Junot), na obra "Douvenirs d'une ambassadeet dún sejour en Espagne et en Portugal":

Duquesa de Abrandes
"Quem não tem visto Lisboa, não tem visto coisas boa". Estas palavras admirativas, que o orgulho nacional inspira sempre a qualquer português habitante de Lisboa, serão reconhecidas como verdadeiras por aqueles, que tiverem tido a ventura de viver sobre as margens encantadas do Tejo!... Com efeito, nada mais belo, que a vista de Lisboa, chegando ao rio, ou por Aldeia Galega, ou por Cacilhas, ou pela Moita. - Tenho percorrido toda a Europa, e, exceptuando Nápoles,nada vi que me tenha penetrado de admiração como esta cidade, levantando-se em forma de anfiteatro na margem da imensa planície de água do Tejo. É especialmente ao vir de Aldeia Galega que seu aspecto é o mais majestosamente imponente. No primeiro plano do quadro o Tejo, cuja largura neste sítio é de mais de duas léguas francesas, está coberto de milhares de embarcações, cujos mastros empavezados anunciam, que toda a marinha do mundo pode vir demandar asilo à baía de Lisboa. É do seio deste lago, ou antes deste mar, que se levantam como anfiteatro as colinas, sobre que assenta Lisboa. à medida que o barco se desvia da margem do Alentejo, descobre-se uma nova beleza no quadro, que se tem diante dos olhos. A cidade estende-se sobre as colinas, que limitam o rio, e se vos apresenta com seus zimbórios, seus conventos, palácios, jardins, campos cultivados, que separam um palácio de um mosteiro, uma praça pública de um cemitério, e lhe dão assim parecença com uma cidade oriental; e depois desenrolam-se ao longe esses jardins embalsamados, essas quintas, que estão em roda de Lisboa, como um rico e suave cinto. Sobre um plano mais longínquo, as rochas de Cintra ornam o fundo desse rico quadro, fantástico de beleza... Eis o conjunto, que se vos oferece, quando aos saírdes de Aldeia Galega, depois de terdes atravessado a árida e arenosa província do Alentejo, embarcais no rio deste nome num escaler dirigido por vinte remadores, e avançais rapidamente para a cidade maravilhosa, sobre esse rio coberto de navios de todas as nações... cada impulso de remo descobre uma parte dessa rica decoração, que se torna cada vez mais visível. É principalmente pela manhã, ao nascer do sol, que devemos ver dourar com seus raios, (antes que sejam mais ardentes), suas novas ruas, a bela Praça do Comércio, o Arsenal, o Terreiro de Trigo, e Belém com sua quinta e sua igreja gótica, Ajuda e seus pomares de laranjas e limões... ao passo que o rio mais rápido e mais profundo e está apertado entre as serras de Almada,esse precipita para o mar, onde se lança entre colinas, que limitam o lado do sul. Não comente bela; mas uma vez na cidade, a estranheza da direcção de suas ruas, de suas praças, a maneira caprichosa como seus próprios defeitos se apresentam à curiosidade do estrangeiro, suas belezas, que não são comuns a nenhuma outra cidade europeia, tudo a torna uma cidade à parte entre as mais extraordinárias, e dá o desejo de voltar para ela, quando já se habitou uma vez.

A pretensão de todas as cidades fundadas sobre montes é de ter sete, à maneira de Roma. Lisboa faz como as outras, e os portugueses sustentam que tem sete montes.

Porém uma particularidade notável é que em 1806, cinquenta anos depois da catástrofe, viam-se ainda nas duas de Lisboa não somente sinais do terremoto de 1755, mas até os entulhos, tais como os deixara aquele ano maldito. Várias ruas de Lisboa, pequenas praças continham ainda esses restos da cólera do céu. Imundícies, esqueletos de cães, cabras, jumentos, até de machos, jaziam por cima de ruínas, e a cidade ameaçada de peste pelas exaltações mephíticas desses montões de matérias algumas vezes em putrefacção, não devia sua salvação mais que ao ar activo e salubre, que purifica com seu sopro, e dá saúde a uma cidade, que deveria, como se vê, perecer com a morte comum aos povos do oriente.

[...]

Encontrei em Lisboa quem tinha mudado o aspecto desta cidade, o Conde de Novion. Antes dele as ruas desta capital apenas eram iluminadas por pequenas lanternas, suspensas diante das imagens de Nossa Senhora, que estão quase a cada canto; porém esta luz baça guiava os assassino, mostrando-lhe a vítima, e não era de nenhum socorro; por isso é que as ruas de Lisboa eram mais perigosas para se andar por elas a pé em 1719 por exemplo, que por qualquer de nossas estradas. À meia noite ninguém ousava sair sem ir armado, e as próprias armas quase sempre eram inúteis, porque os bandos de ladrões eram tão numerosos, que mal se lhes podia resistir. Tem-se visto pessoas presas pelos bandidos, serem completamente roubadas, e obterem deles um salvo-conduto para não serem atacadas segunda vez. Pelo que toca aos assassinatos, era costume ir a certas igrejas, conde se encontram homens que faziam justiça pronta e sanguinolenta, conforme a vingança que lha pedia. Aqueles homens viviam ali, naquele lugar santo, como num lugar de refúgio, onde a própria Inquisição não os podia ir arrancar; e além disso as igrejas quase toas estão contiguas a conventos de homens, ou de mulheres, e o assassino estava certo da impunidade, se trabalhasse, como dizia, para o Abade ou Abadessa do convento. Eis um caso acontecido na própria Lisboa em 1798:

O Cônsul de uma nação estrangeira teve uma questão com o parente dum outro Cônsul. Poderia vingar-se com sua espada, mas preferiu ir procurar numa destas igrejas pessoa, que trazia sempre escondido um punhal prestes a ferir. Encontrou a quem desejava; fez seu ajuste, deu metade da soma exigida, que foi (creio que atendendo à quantidade da vitima) 24$000 réis. Devia receber a outra metade depois do assassinato.

O sicário, depois de ter tomado todas as informações possíveis, despediu seu freguês, porque tinha outro negócio entre mãos. Mas o freguês, não era cruel; sentiu depois acalmar essa agitação servil, que dá o furor de uma ofensa a uma alma nobremente nascida. Bem depressa sentiu uma outra tempestade levantar-se em lugar daquela, que se extinguia, e esta tornou-se terrível, e bem ameaçadora, porque era contra ele, e ele tinha andado mal. Finalmente os remorsos tornaram-se insuportáveis.

Eram apenas nove horas; a cidade estava ainda animada e sussurrante. Embrulhou-se em seu capote, pôs seu chapéu baixo, e com passos rápidos dirigiu-se para casa do homem, que por um pouco de ouro devia tomar a desforra. Neste momento a torre de Belém soou as dez horas, o grande sino vibrava no ar, levando para longe o som argentino, e por isso solene de suas badaladas. O indivíduo estremeceu. Ia finalmente descer, quando ouviu o barulho no quarto do homem, barulho que se parecia com o ranger de um leito, quando alguém se vira. O indivíduo bateu com força, e desta vez uma voz lhe respondeu: era a do scelerado. Abriu sua porta ao reconhecer o som da voz de F...

Oh! Já vós por aqui, disse ele bocejando, e estendendo os braços. Por Santa Maria da Glória, que bem apressado sois. Julgava que só nós, que vivemos ao ardor do sol, elevávamos a vingança a tal ponto! Mas parece...
Oh! Não, interrompeu o outro, pelo contrário venho dizer-vos que já não quero a morte daquele, a quem eu tinha condenado.
Ah! Exclamou o assassino com um espanto de que estava possuído pela primeira vez, isso é indiferente; porém é tarde de mais.
Já o mataste, miserável?
E que outra coisa me tínheis vós dito que fizesse senão que o assassinasse? Quem poderia esperar que, depois de terdes condenado vosso inimigo no tribunal de vosso ódio, vós os fosseis absolver nesse mesmo tribunal, uma hora depois?
Nós não procedemos assim em nossa terra. Pelo que me toca, disse ele, com uma expressão de demónio, a única pena que tenho do meu inimigo, é não estar dele ainda em estado de sentir meu punhal.

F. estava abatido. Neste momento o clarão da lua deflectia perfeitamente por cima do pequeno terraço, que ficava ao lado da porta do homem. O clarão caiu direito sobre este,e fez ver uma longa mancha de sangue na manga e na mão do assassino. F. não pode conter um grito, e deitou a fugir pela escada abaixo; mas foi agarrado por esta mesma mão ensanguentada.

Mais um momento, um momento , Senhor! Tenho pena, apesar de tudo, que o nosso negócio andasse tão depressa;mas julguei que fazia bem, e deve-se a minha paga. Dai-me então, e que não haja mais questão entre nós: bem vos conheço, e eu sabia bem procurar-vos, se me não quisésseis pagar meu trabalho.
F. atirou-lhe com a bolsa, sem querer tocar naquela mão manchada de sangue. O malvado apanhou a bolsa, e contou o dinheiro, que continha. 
Está aqui mais do que é preciso, disse ele ao separar sua paga do resto do dinheiro. Aqui está isto que vos pertence.
Ficai com tudo, respondeu F.
Então ficarei com ele, visto estardes penalizado da morte daquele nome, que todavia era um homem valente, e não vos disse isso por ser inútil para o nosso fim. Defendeu-se como um diabo, e vi-me obrigado a chamar em minha ajuda um dos meus homens, um dos meus ajudantes, porque muitas vezes o negócio é custoso, e corre seus riscos. Um de nossos colegas, Sebastião, bem novo ainda no ofício, foi morto por um inglês, a quem não atacava, e do qual somente queria a bolsa. Sua mulher ficou sem nada, e nós vi-mo-nos na necessidade de lhe fornecermos uma pequena mesada, contribuindo cada um de nós com sua quota. Se quiserdes, Senhor, as três peças, que sobram, serão para a viúva de Sebastião, e para mandar dizer missas por alma do rapaz, por cuja morte estais mortificado. Ouvi então; a culpa não foi minha; disseste-me às onze horas... o rapaz passou porém em ocasião favorável para a ponta do meu punhal... às oito horas e meia... a ocasião era excelente...ah! palavra de honra, caiu, mas levantou-se ainda...

Esta história, que me foi narrada por aquele mesmo, que dela foi o herói, pode fazer conhecer os costumes de Portugal no fim do último século somente.

[...]

À esquerda, conventos, igrejas, jardins, quintas, pomares de laranjeiras, onde os áureos pomos brilham ao lado das flores embalsamadas. Em frente, a íngreme altura, sobre que está construido o castelo, que defende a cidade. À direita o Tejo, coberto de navios com pavilhões de mil cores, flores por todos os lados, e por todos os sítios um ar doce e embalsamado, que vos enfeitiça, que vos penetra com seu encanto, e por cima de tudo isto dardeja um sol puro! Tudo em volta de vós respira um duplicada alegria; tudo, até os edifícios, que parecem cobertos de um véu de várias cores, dando ares dum docel lançado por cima de suas grimpas. Neste país a natureza está sempre em festival. Nunca lhe pedi uma distracção, uma consolação, que me não respondesse concedendo-mas com profusão. Não há sofrimento de alma, não há dor de corpo, que me não tenham sido mitigadas com a visita deste paraíso. Durante minha residência em Portugal, vi chegarem àquele país doentes condenados a morrer, e todavia prendiam-se à vida! Muitos desmentiram a sentença, e aqueles que a padeceram, não sofriam pelo menos o aguilhão ardente da morte. Sem dúvida, neste país morre-se, chora-se sofre-se como em todas as outras partes; a dor é uma lei de nossa natureza, a que não podemos fugir: mas, assim como o apoio adormenta os padecimentos do corpo, a vista deste país lhe mitiga os sofrimentos.

Na margem do Tejo fica a bela Praça do Comércio [Terreiro do Paço]. Nada temos em Paris, mesmo actualmente, tão belo como os cais, que terminam este lado da praia.

Muito tenho viajado; percorri o norte e o meio-dia da Europa, e nunca se patenteou a meus olhos uma cidade tão extraordinária, e aos mesmo tempo tão notável e tão formosa, como Lisboa. Nunca um céu mais belo espergiu sua luz sobre uma cidade rodeada de uma natureza, que a cinge com suas maravilhas: mas ao mesmo tempo em lugar nenhum eu vi tantos dons de Deus tão mal conhecidos e inutilizados.

É nos arredores de Lisboa que se torna necessário aprender a conhecer este país, que se pode descrever, mas nunca pintar. Estas circunvizinhanças  parecem ser formadas para fazerem uma decoração à maneira de vestíbulo, e de entrada a este vale de Cintra, cantado pelo amor com sua voz de cisne em Camões, e celebrado por Lord Byron em Child Harold, e admirado por quantos o percorreram, a ponto de não o quererem deixar.

[...]

O nome de Inês de Castro quase que é mágico para evocar tudo quanto se refere à sua pátria, a essas margens encantadoras do Mondego, a esses maravilhosos arrabaldes de Coimbra, cuja a beleza pode rivalizar com tudo, quanto a Espanha pode por sua vez oferecer ao estrangeiro, que percorre aquele país. Posso mesmo acrescentar que a universidade de Coimbra levava muita vantagem a todas as outras de Espanha. Ai! (...)"

(continuação, II parte)

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