04/11/13

"DEFEZA DE PORTUGAL" (1831) - Que Queriam com a Entrada da Esquadra Francesa (IV a)

"DEFEZA DE PORTUGAL"

Nº 4

Que pretendiam os pedreiros de Portugal com a ocasião da entrada da Esquadra Francesa no Tejo?

Começo a escrever estas linhas ao romper do dia 24 de Agosto, dia em que a Santa Igreja de Roma, a única verdadeira, celebra a festividade do glorioso apóstolo S. Bartolomeu, e dia no qual, diz o adágio português, andam os diabos à solta. A outros pertence examinar a origem, princípio, causa, e fundamento deste adágio; mas para mim tenho, que ele se introduziu entre os portugueses depois das suas descobertas na Índia, onde padeceu o glorioso apóstolo morte tão cruel, que foi escoriado, ou esfolado vivo; razão porque se diria que nesse dia, em que o santo foi martirizado, andaram os diabos à solta; ou pelo inaudito, e original género de castigo que os gentios inspirados do diabo fizeram no santo, ou porque desde esse dia, morto o santo, tornaram os diabos a dominar livremente aquele país, abandonando logo os seus habitantes a fé de Jesus Cristo. Digo que será esta a origem do dito adágio, porque não me recordo haver lido que os portugueses tenham tido no dia 14 de Agosto desgraça, ou infortúnio tamanho, que os persuadisse a que nesse dia andavam os diabos à solta. Creio que isto é assim como digo, com respeito a todos os dias vigésimos quartos do mês de Agosto antes de vir ao mundo o dia 24 de Agosto do ano de 1820, porque neste dia, e desde esse dia até outro tal, em que isto escrevo, tão à solta andaram, e andam os diabos, que nunca mais alguém os viu presos, e encadeados, não cessando de escoriar, ou de esfolar viva a Monarquia portuguesa, arranjando sobre ela todos os males, de que o Diabo é capaz, males de discórdia, de pobreza, de rebelião, de incredulidade, e de morte, que outros males maiores não tem feito, nem podem fazer ao mundo todos os diabos do inferno juntos. Já sabem os meus leitores que, em falando-se de diabos em Portugal, fala-se dos pedreiros, que neste século são sinónimos na maldade, no engano, na traição, no embuste, no artifício, e na impostura; de maneira que já por estas aldeias: as mulheres quando se agastam, em vez de dizerem como antes "arrenego-te diabo", dizem "arrenego-te pedreiro", e dizem bem. Dizem os pedreiros que ainda alguém não viu o diabo: mentem como sempre: toda a gente tem visto os diabos, porque toda a gente tem visto pedreiros. E se não digam-me eles: como se pinta o diabo? Com cornos na cabeça, cara de cão, barbas de bode, orelhas de burro, barriga de lobo, e pernas de porco. Pois tal, e qual é um pedreiro; ele tem na cabeça a sua mitra triangular, ou tricorne: a sua cara, é verdade que umas vezes parece de cão, outras de gato, outras de macaco; mas tudo vem a ser a mesma causa; nariz rombo, ou chato, se bem é verdade tenho visto muitos pedreiros sem nariz, outros com nariz de papagaio, e outros com nariz de águia; mas essa diferença é pequena: também os tenho visto com focinho de porco, com focinho de sapo, e com focinho de lagarto: a respeito de orelhas, vi-os mui orelhudos, e também os vi desorelhados; também os vi com barriga de lobo esfaimado, e de loba inchada; em uma só coisa os vi uniformes, e é nas barbas de bode, e em terem todos unhas nas palmas das mãos, e dos pés. Esta é a caricatura dum pedreiro, e apesar de todas estas diferenças é a mesma caricatura do diabo; por maneira que se um pintor, ou estatuário os não tiver observado, como eu que tenho visto, e conheço muito pedreiro, se for rogado para delinear, esculpir, ou pintar um pedreiro, não têm mais que fazer senão vir à minha aldeia, e nela achará o diabo debaixo dos pés do Arcanjo S. Miguel: pois aí tem o modelo de um pedreiro; e por mais diferenças,e visagens que lhe ponha, ele sempre se parecerá com o mesmo diabo. Mas eu largo da mão este retrato, que enfastiará os meus leitores, se bem eu não pude menos de tocar este quadro por incidência considerando o dia, em que escrevo, no qual se completam onze anos que estes diabos principiaram a andar à solta; e mesmo recordando-me, que hoje celebram eles o aniversário de sua soltura, e do seu desenfreio, e desenfreio por estatuto recebido em todas as lojas de Portugal, e parece-me estar ouvindo as salvas de artilharia, que se fazem neste dia na desgraçada Ilha Terceira, e os gritos de aplauso, que retumbam por todas as cavernas maçónicas deste Reino.

Não me pode sair da lembrança este malfadado dia 24 de Agosto de 1820, para nele derramar lágrimas de compaixão sobre a desgraça de Portugal, e sobre o engano, em que se deixaram cair então os portugueses, prometendo-lhes aqueles malvados embusteiros a convocação dos três Estados do Reino, ou das antigas Côrtes.E houve quem acreditasse a estes velhacos? Sim, houve; porque os portugueses amavam muito o seu Rei, e se lhes disse que os Três Estados se iam reunir, para determinar a ElRei ao seu regresso a Lisboa. Tanto pode em peitos verdadeiramente portugueses o desejo de verem o seu Rei, que facilmente acreditaram, a quem lhes promete o verem-no. Mas quem deu a uns poucos de Coronéis à frente da Força armada a autoridade de convocar os Três Estados do Reino? Donde lhes veio esse poder, e missão a uns poucos de paisanos alucinados, sem título, sem hierarquia, sem distinção para se constituírem em Governo da Nação, e convocarem-na, unirem-na, e representarem-na? Onde estaca o Clero? Num frade Lente do Pátio de Coimbra, e num Deão, a quem não havia autorizado nem o seu Bispo, nem o seu Cabido? Num frade e num clérigo podem representar o Clero de Portugal? Onde estava a Nobreza? Em dois, ou três lavradores do Douro, e em dois, ou três proprietários do Porto, que deviam a sua riqueza, e a sua tal qual distinção pública a uma dúzia, ou duas de pipas de vinho que tiveram a fortuna de vender caro aos ingleses? Onde estava o Povo português? Em três, ou quatro caixeiros do Porto? Onde estava a Magistratura? Num filho de um pobre barqueiro, noutro de um tanoeiro, e noutro de um miserável boticário? E era este o Governo de Portugal, a quem se acreditou, a quem se obedeceu, a quem se defendeu com o pretexto de convocar as antigas Côrtes!!! Em verdade que não houve no mundo nação alguma mais vilipendiada, insultada, escarnecida, enxovalhada, e traída do que o foi a nação portuguesa no dia 24 de Agosto do ano de 1820. Eu direi por honra dos portugueses, ou eles dormiam na ilusão, na credulidade, e na mais fatal cegueira. Porém o certo é que os portugueses não conheciam os pedreiros, e só eles se conheciam uns aos outros; nem mesmo houve quem os advertisse, e prevenisse sobre as suas manobras, porque os que deviam advertir; e prevenir o legítimo Governo de Portugal, ou eram cúmplices da nefanda conspiração, ou eram inaptos para o emprego, que exerciam: de qualquer maneira que isso fosse, eles são réus de crime de alta maldade, porque uma polícia bem organizada, activa, e vigilante, animada de zelo pelo Rei, e pela Pátria não pode recusar-se de não saber, ou de não estar ao facto das revoluções, que se forjam contra o Rei, e contra a Pátria. Eu não ando por este objecto como gato por brasas, porque não tenho medo dos crocodilos, que já estão fora do Tejo; sempre os conheci, ou nas veigas, ou nas matas, e adverti em tempo a quem os evitou, quando julgou oportuno. Digo somente que no verão passado de 1830 viajei desde Lisboa até esta aldeia, gastando três semanas no caminho, e descanso, e alguém me não perguntou pelo passaporte; e assim como eu caminhei sem embaraço poderá caminhar o revolucionário Saldanha, e caminhavam então livremente seus prosélitos, e recrutadores da revolução.

(continuação, parte b)

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