06/04/13

A MÚSICA DA IGREJA NO BRASIL (I)


"Como é conhecido, a organística deu os primeiros passos em Terras de Santa Cruz, desde o início da sua descoberta, no século XVI. E, pelos meados da mesma centúria, ia assentando em bases sólidas as suas estruturas de forma progressiva nas dioceses que se iam instaurando. A história regista alguns desses passos especialmente pelos fins do século XVII e todo o século XVIII. O pleno desenvolvimento seria atingido nos princípios do século XIX. (Valença, 1990).

No dizer de Correia de Azevedo: «A música brasileira desenvolveu-se muito antes do século XIX mas a vinda da corte de Lisboa acelerou o processo e animou-se de forma espectacular». («La musique à la cour Portugaise», 336).

O musicólogo Francisco Curt Lange realizou aturadas investigações sobre música religiosa em várias regiões do Brasil. Parte dos estudos, feitos na capitania geral de Minas Gerais, revelaram uma florescente actividade musical durante o século XVIII, a qual incluía, a instalação dos primeiros órgãos no interior do país, a composição de música vocal acompanhada por instrumentos de corda e sopro, a par de representações de três óperas em Vila Rica, por ocasião das festas reais de 1786. Ficou ainda sublinhada a alta qualidade das execuções em que intervinham europeus imigrados, mulatos e índios nativos. (Lange, «Archivo de música» em M. S. , 1952, 89). O mesmo A. publicou trechos de música sacra brasileira do século XVIII, exemplificando a actividade dos compositores e mestres de capela no Brasil colonial. (Norman Fraser, «Latin America» em R. H. Myers, «Twentieth century music», N. I., 1968, p. 279).

Numa obra compósita arquivada na BPMP sob o título de «Relaçam da solemne Procissão», publicada em Lisboa, em 1731, encontra-se um opúsculo cujo conteúdo nos revela até que ponto se reproduzia a vida social e religiosa de Portugal no Brasil do século XVIII. Além do cenário conhecido da procissão do «Corpus Christi» em Lisboa apresenta alguns traços peculiares: «Antes de sahir a procissão, esteve o Divino Sacramento colocado em hum braço da Senhora, em lugar do Menino:celebrou-se huma Missa officiada a dous coros de música...» Depois, à chegada à nova igreja: «Estava o novo Templo nos altares, e em todo o seu âmbito coberto de sedas, ouro e prata, com aquele precioso artifício e decentissimo ornato competente a todo o mais apparato e magnificencia da solemnidade. Foy o Divino Sacramento colocado, e exposto em hum Throno, e se celebrou huma Missa cantada a dous coros...». E o mesmo se fez nos três dias seguintes, sem faltar o respectivo sermão de festa. Houve ainda outros discursos, espectáculos, touradas com três touros, de tarde, corridas de cavalhadas e «comédias de noite». «O Tablado das comédias se fez junto da Igreja» e nele se representaram três comédias. «Deste modo celebraram esta grande solemnidade os moradores da Paroquia de Ouro Preto desta Villa...» Infelizmente o papel da música apenas foi esboçado pelo autor da relação, ou por falta de termos ou por julgar ser coisa dispensável. É de crer que a música policoral fosse acompanhada de instrumentos apropriados à liturgia. Determinadamente o A. da «Relaçam» se refere a instrumentos de sopro que se integravam no cortejo processional ao estilo de banda.

O que se passava em Minas Gerais no campo musical não era fenómeno único no Brasil. Sabemos que nos meados do século XVIII esteve activo como executante «insigne tangedor de todos os instrumentos» — professor de música e compositor o P. António da Silva Alcântara, nascido no Recife, em 19 de Outubro de 1711, o qual foi convidado para mestre de capela da catedral de Olinda. (E. Vieira, Ob. cit., I, 8).

Órgão da Catedral de Mariana

Já referi noutro volume que, entre 1752 e 1753 foi enviado de Lisboa para o Brasil pelo organeiro João da Cunha um órgão construído por Arp Schnitger, congénere do que se encontra actualmente na Sé de Faro, oferecido por D. João V à catedral de Mariana. Existem indícios de que na mesma Sé se encontrava anteriormente um órgão menos valioso ao serviço do culto. (M. Ferreira, 1991). Portanto, havia quem cultivasse a arte organística de forma permanente na mesma localidade e mantivesse o instrumento em bom uso.

Durante longo período, a Baía de todos os Santos (Salvador) foi a capital do governador geral e, consequentemente, a sede mais importante da organização eclesiástica do Brasil. A Igreja de S. Francisco da Baía (Salvador), cuja construção foi iniciada em 1708, foi benzida em 1713. Sendo Guardião fr. Manuel do Nascimento (1741-43) se comprou um órgão para o coro alto, que veio a ser instalado na guardiania de fr. António de S. Isabel (1755-58). (fr. A. Jabotão, «Novo orbe Seráfico», Lxa., 1761).

Também na Igreja da Ordem Terceira de S. Francisco havia um órgão colocado numa tribuna «de boa e vistosa fábrica com duas entradas para ele» o qual veio a desaparecer». (fr. Pedro Sinzig, «Maravilhas da Religião», Rio, 1933, p. 16 e 34).

Reconstrução digital da Sé da Bahia, destruída em 1933.
De 1759 a 1760 foi mestre de capela da Sé da Baía o P. Caetano de Melo de Jesus, natural do mesmo arcebispado, que publicou dois volumes intitulados: «Escola de canto de órgão». Nesta obra se explicam os preceitos da arte de compor música. Teria escrito para gente do Brasil que estudava composição e pressupunha um público de leitores alargado, não restrito à Baía. (B P E, Ms. M. n°72 e73, Alegria, Lxa., 1977). De facto o II volume apresenta opiniões do P. Inácio Ribeiro Noya, do Recife, do P. Inácio Ribeiro Pimenta, de Olinda, do P. António Nunes de Siqueira, do Rio, que deviam ser músicos profissionais contemporâneos a exercer ensino musical no Brasil. Outras opiniões partiam de sacerdotes de Évora, Lisboa, Elvas e Portalegre conhecidos do autor como mestres de música. (Id., Prefácio, p. 5).

Outro mestre de capela da Sé da Baía foi o P. João Lima «onde por largo tempo ensinou musica assim pratica, como especulativa, saindo da sua escola taes discípulos, que depois assombrarão como mestres a todo o Brazil».

«Voltando para a Pátria teve a mesma ocupação na Cathedral de Olinda, com igual aproveitamento de seus ouvintes». O P. João de Lima «sabia tanger com perfeição» o órgão e outros instrumentos. (BNL, Ms. B 16. 23). O Ms. «Desagravos do Brasil» informa que em Olinda trabalhava o organeiro Agostinho Rodrigues Leite, nascido no Recife, a 22 de Agosto de 1722, construindo «excelentes órgãos» para as igrejas da sua cidade natal e para a Baía.

Consta que na segunda metade do século XVIII foram várias as oficinas de organaria que estiveram trabalhando no Brasil. Não sabemos até que ponto a expulsão dos jesuitas por decreto de D. José I, em 3 de Setembro de 1759, veio impedir o prosseguimento das actividades em prol da cultura musical nas missões e colégios do Brasil que eles dirigiam. Contudo, os factos acima apontados mostram que a expansão da arte organística era um processo rápido realizado sobre elementos fundamentais de sorte que a sobrevivência dela se podia considerar assegurada.

Em 1788, fundou-se no Recife a Irmandade de S. Cecilia, agregando os músicos profissionais e regulando o exercício da profissão de músico. Só podiam entrar nela mediante prévio exame e aprovação dos mestres. Todos os outros eram excluídos do exercício de organistas."

(a continuar...)

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