10/10/12

O CASO DAS MÚMIAS DE LISBOA - O BOM FEITO DO CASTELHANO CALDERON


S. Pedro de Alcântara
"Contígua com o edifício do mosteiro de Santa Apolónia, ficava logo em seguida uma botica, de mesquinha aparência.

Imediatamente começava a descida da calçada de Santa Apolónia, e aparecia-nos uma ermida pertencente a um palacete que pegava com ela para a banda de baixo.

Já vai longe o tempo, em que o finíssimo espírito de Francisco Palha se entreteve em estudar os antigos habitantes desse palacete, e reuniu num folheto, hoje raro, o fruto das suas investigações (empreendidas, por tal sinal, a instigação minha). Já também vai longe o tempo, em que o interpelei sobre a topografia destes sítios, onde ele nasceu e se criou, na já citada casa de seus avós, e obtive dele duas cartas sobre o assunto, e um desenho elucidativo, com que riamos muito, mas que é preciosíssimo, hoje principalmente, que o autor já não existe! “A clareza do desenho – me escrevia ele brincando – supria a obscuridade da minha prosa”.

Esse palacete, que devia ter sobre a calçada de Santa Apolónia dez sacadas no andar nobre, e outras tantas de peitos em baixo, tinha nos últimos tempos, diz-me Francisco Palha em carta de 29 de Setembro de 1883, “o aspecto de pardieiro. Nos antigos devia ter sido uma casa nobre”.

E certamente o foi. Pertencia à família Abreu de Freitas, fidalgos de antiga estirpe, ainda parentes de S. Pedro de Alcântara, porque Luiz de Abreu de Freitas, que em 1654 fundou a sua ermida, era casado com D. Anna da Fonseca (terceira mulher) sobrinha neta do Bemaventurado, que ficou sendo Orago da mesma ermida (Carvalho da Costa – Chrorogr., tomo III, pag. 366). Abria esta sobre a calçada uma porta com duas frestas aos lados, e janelas em cima. Para a porta subia-se ultimamente por quatro degraus.

A ermida de S. Pedro de Alcântara tinha três capelas" – diz Carvalho da Costa; - “na maior via-se a Imagem do Santo Orago, com a de Santa Teresa da banda do Evangelho, e a de Santo António da banda da Epístola. Tinha esta capela duas tribunas, e sobre elas a imagem do Senhor dos Passos, e o corpo de S. Celestino Mártir, doado pelos Santo Padre Clemente X ao Dr. Gaspar de Abreu de Freitas, sendo em 1676 Ministro residente de Portugal em Roma. As duas capelas laterais eram, uma de S. Dâmaso, Papa, e a outra de Santa Isabel Rainha de Portugal (Chorogr., tomo III, pag. 366)”.

Por baixo do chão ficava o carneiro dos membros da família.

Os brilhantes proprietários do palácio e padroeiro da capela, cavaleiros, enviados, desembargadores, viu-os toda Lisboa em 1871 reduzidos a múmias, descobertos no seu jazigo de família ao demolir-se edifício todo para alargamento dos armazéns do caminho de ferro, e acordados do seu sono para serem visitados e comentados por este importuno e incrédulo século XIX. Depois levaram-nos para o Alto de S. João, e lá os deixaram adormecer outra vez. Por quanto tempo?

Eram doze os corpos que ali se encontraram no jazigo; vi-os eu, e nunca me há de esquecer a impressão singularíssima que produziam, alguns deles inteiros, com os trajes em óptimo estado, se vem que debotados; e até as roupas pareciam vestidas nessa manhã. Não infundiam o horror que os cadáveres infundem; era um respeito misturado com simpatia, e dó. No seu silêncio, e no seu trajo de Corte, tinham o que quer que era de teatral, que nunca vi nos mortos. Lembro-me da beca de Luiz de Abreu de Freitas, do rosário de coquilho que trazia entre as mãos D. Joana Maria Pereira de Torres e Aguiar, e que parecia comprado ontem; lembro-me do lindo vestido de seda bordada da pequenina Maria de Meneses, e dos seus sapatinhos de salto muito elevado.

Segundo me comunicou o snr. Miguel Queirol, deve-se ao engenheiro castelhano da Companhia, D. Filipe Calderon (irmão do ilustre General carlista D. Ramon Cabrera) o não terem ficado desprezados aqueles cadáveres, e não terem sudos arrojados à vala na tumba da Misericórdia. Era Calderon muito apreciador de antiguidades, e doeu-lhe ver profanar tais despojos, sem primeiro se averiguar a quem pertencessem. A Imprensa falou; e foi então que, tendo Calderon conseguido remover em 17 de Junho as doze ossadas encontradas no carneiro do palácio, Francisco Palha, para quem (ele próprio o diz) era o culto dos mortos uma fascinação, se entregou ao insano trabalho de investigações, que deram em resultado de citado livrinho.

Sobre a praia do Tejo tinha o palácio dezasseis janelas em fila. O todo formava na secção horizontal um ângulo muito agudo. Com o vértice ao poente, e aí se via um brasão de armas, partido em pala, dos apelidos Abreu, e Freitas; brasão que mereceu à ilustrada direcção da Companhia ser conservado no telheiro que substituiu o prédio, e pregado na parede para a banda do mar, onde o tenho visto centos de vezes. A Companhia mandou tirar planta exacta do palacete, da qual passou cópia por favor do snr. Queriol.”

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