17/06/12

DO TEMOR DE DEUS - VERDADEIRA NOBREZA

O texto que segue é transcrito do livro "A Verdadeira Nobreza" de António de Pinheiro da Costa (o moço, Cavaleiro Professo da Ordem de Cristo) em 1655. Destina-se o livro aos nobres, para lembrar a ajudá-los na sua responsabilidade como verdadeiros nobres. Pede o autor no prólogo ao leitor "que lhe emende as faltas que nele [livro] achar com ânimo sincero, e desapaixonado, e em avisado advertimento que tudo o que ele contêm se sujeita à correcção da Santa Madre Igreja Católica Romana de quem obediente filho sou". É obra aprovada pelas autoridades eclesiásticas e tem ainda uma especial dedicatória ao "Excelentíssimo Senhor D. Vasco da Gama Marques de Nisa, Conde da Vidigueira, Almirante da Índia".


Este é um dos milhões de testemunhos escritos de como a Fé era verdadeira na sociedade daqueles tempos.  Fé que, ao contrário do que hoje se difunde pela ignorância dos sacerdotes católicos contra o que sempre ensinou a Santa igreja, é na verdade, e resumidamente, a crença na Santa Doutrina por graça de Deus (todo o conjunto de verdades). À ignorância maioritária e crescente do clero de hoje soma-se a geral e crescente ausência do temor de Deus. Eis este o motivo mais directo pelo qual transcrevo:

CAPÍTULO III
DO TEMO DE DEUS

Quanto mais o justo ama a Deus ardentemente, tanto mais foge de O ofender, como nota o venerável Beda (Bed. Com. 5.c.2 in Luc.). O amor e temor são duas asas com que voa o nosso espírito ao Céu. O temor, ainda que ponha a alma triste, e encolhida, aparelha melhor para o amar, que é princípio de todas as riquezas. Entendia-o muito bem Tobias, quando industriando a seu filho dizia: Filho, pobres fomos; porém teremos muitos bens de temermos a Deus (Tob. 4).

Os que teme, di-lo o Espírito Santo, buscam aquelas coisas que lhe são agradáveis [a Deus] (Eccles. 2). Este temor é a fonte de vida: ele [o temor de Deus], e o amor são as primeiras letras do Abecedário Cristão (Prov. 1). Quem mais sábio que o bom? Quem mais prudente que o virtuoso? Quem mais avisado que o temente a Deus?

Havendo contado a divina Escritura a alta genealogia (Judit. [?]), e estremada formosura daquela valerosa Edite, de suas riquezas, de seu admirável reconhecimento, jejum, e penitência, diz, que era ela famosíssima em tudo, porque temia muito a Deus, não com o temor (segundo adverte Clemente Alexandrino (Clem. Alexand. I.2. florum) como que se foge de uma fera e se aborrece, senão com o temor filial e generoso, que se deve a um pai, ao qual se teme e ama juntamente, não para desmedrar, senão para mais valer.

Doce e justo chama David ao Senhor, o qual declara Cassiodoro (Casiod. in pag. 1.24), para que como a doce o amemos, e como a justo o temamos. O amá-Lo, e temê-Lo é ser homem, como diz o Eclesiástico (Eccl.I.2), porque o contrário é de bestas, e demónios, e é ser nada, diz S. Bernardo: e bem se pode dizer nada a quem lhe falta tanto bem (S. Ber, ser, ao [?]).

Vendo-se Caim lançado da presença divina, parecia-lhe que não haveria lugar, aonde se escondesse da face de Deus, e dizia: qualquer que  me achar, me tirará a vida e me matará (Gen. 4). Porque temia Caim, e temeu-O toda a vida? Senão que por haver morto ao irmão sem temor do Senhor, era já nada (S. Jerónimo, n mor). Desse temor se começa no caminho de Deus para chegar à fortaleza da virtude (Ca[?]ia. sup. pag. 14). O das coisas da terra causa desconfiança; mas o temor divino concede firmeza de esperança (S. Gregor. in Evang. hom, 16).

O juízo de Deus se há-de temer, para que não se tema. O  homem que desde sua infância (dizia Panuncio) pôs diante de si o temor dos deuses, e a vergonha dos homens, está habituado à virtude, e mantem verdade a todos. O viver sempre com santo temor, e receio, é coisa muito proveitosa para alcançar a graça, e conservá-la (O Mestre Avila).

Em qualquer tempo é ele proveitoso, antes de pecar por ser um homem livre do pecado, e ser perdoado. Uns pecadores há que pecam virando a Deus as costas, outros sua presença. Não há culpa que ele não veja: mas alguns as fazem tão sem temor e vergonha como se lhas não vissem, de quem diz Jermias: Para ofender-me me viraram as costas, como os varões que pinta Ezequiel com elas viradas à Sancta Sanctorum, aplicam os ramalhetes de flores aos narizes, que é pecar sem receio, nem medo, como se não houvera Deus (Ezeq. 3?,8?).

Deste género de pecadores era Magdalena, que vivendo muito lastimante (Luc. 7), virou as costas a Deus, dando-se aos deleites e prazeres do mundo, sem nenhum temor seu, e assim lhe foi necessário, que se apresente como ela ao Redentor do mundo para seu remédio, não de rosto a rosto, senão detrás das suas costas como guiada já do Espírito Santo, temerosa de que seus olhos a não olhassem de fito, que se um olhar de Deus irado afoga no mar vermelho os carros, e cavalos do Faraó, como não temeria uma mulher fraca? (Exod. 14) Além de que pelas costas de Deus se entende a humanidade de Cristo em nosso. Moisés (disse a Magestade divina falando com ele) quem me vir o rosto, não poderá viver, contentai-vos com ver minhas costas (Exod. 33). Nelas achou a pecadora convertida seu amparo, porque quando os raios da vida de Deus colérico e inexorável se encaminham a castigar suas culpas, ache perdão delas na humanidade de seu Filho, que com tanta liberdade a dava aos tormentos, e à morte por dedenção dos pecadores. Outros há que pecam considerando que há Deus e está presente a seus pecados e que lhos vê. Desta linhagem foi David, e assim disse: Et malum coram te feci (Salm. 50). E o Pródigo: Pequei em tua presença, e ainda que é ousadia, atevimento ofendê-lo à sua vista; contudo isso tiram tão grandes temores de sua presença que fazem a esperança de sua saúde mais segura (Euc. 15).

Enfim é este temos guardar das virtudes, como lhe chama S. Jerónimo. Para contar a divina Escritura a nomeada história da paciência de Job, diz na sua primeira entrada que era varão simples (S. Jerónimo [?] I 27 [ad?] bio lam.), recto, e temeroso a Deus (Job. I). Tal era aquele honrado velho Simeão, que no fim da vida mereceu ver em seus braços o Autor, e princípio dela, de quem diz o Evangelista S. Lucas, que era justo e temeroso; não é este temor o que os maus têm pelo medo do castigo, mas filial e amoroso (Luc. 2). Daqui é que muitos efeitos de amor parecerá no que presto se julga do temor, sendo pelo contrário, porque andam eles tão germanados que os interesses, victórias, e heroicos feitos de um se reputarão, como se fossem do outro (Genes. 28). Finalmente são estes os dois pesos com que se meneia o artifício do Relógio espiritual. Estas duas portas da escada de jacob, uma das quais tocava no Céu, e outra estribuava na terra. São dos ois Querubins, que cubriam a Arca do testamento (Exod. 23). São as bases do ouro, sobre quem se levantam os dois pilares graciosos, a quem comparou o Esopo à sua Esposa (Cant. 5). São enfim dois aneis de memória para se trazer no dedo do coração, com que será um homem verdadeiramente nobre e honrado. Suposto este infalível fundamento, se discursará brevemente das parte mais essenciais do nosso assunto."

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