"Num dos meus livros sobre a organística citei palavras de Ramalho Ortigão que revelavam a existência em antigas casas de desusados manicórdios, velhos cravos de charão , abandonadas espinetas, em cujo teclado amarelecido se teriam dedilhado as primeiras composições de Palestrina e Cimarosa... (Ramalho Ortigão, O Culto da Arte em Portugal, Lisboa, 1896, p. 91).
Recorde-se que Ramalho Ortigão era do Porto. Ai viveu alguns anos e veio a ensinar francês no Colégio da Lapa do qual seu pai era director. Só por volta dos trinta anos rumou para Lisboa . Naturalmente, conhecia a sociedade portuense e seus hábitos, tal como constatemos na obra literária que deixou.
Igreja de Nossa Senhora da Lapa (Porto) |
Segundo Sousa Viterbo, que fez estudos eclesiásticos no Porto, o cultivo da música em Portugal no séc. XVI tinha sobretudo lugar nas catedrais e conventos das ordens religiosas. Em muitas igrejas matrizes também se fazia boa música.
A mais importante organização musical, contudo, era a Capela Real, cuja história já foi suficientemente abordada.
Recorde-se que foi a filha de D. João III e de D. Catarina de Áustria, a imperatriz D. Isabel de Portugal, a criadora da Capela Real espanhola, composta de músicos portugueses e espanhóis. Por sua parte o imperador Carlos V manteve a Capela flamenga que o acompanhava nas viagens. A Capela da Corte ao serviço de D. Isabel sobreviveu após o falecimento da imperatriz (1539). Foi esta mulher com alma de artista, criada no ambiente da Corte portuguesa, que formou na corte de Espanha o gosto pela música de grande qualidade (H. Anglès, La Música en La Corte de Carlos V, Barcelona, 1965).*
Imperatriz D. Isabel |
Outra figura real destacada foi a infanta D. Maria de Portugal, dada em casamento a Filipe II de Espanha que, no dizer de um bom diplomata da época sabia mais do canto que um Mestre de Capela.
Consta que Diogo d´Áranda, tangedor dos órgãos da casa de Santo António, consertou três cravos da rainha D. Catarina em 1538 (Viterbo, Subsídios para a história da música em Portugal, 1932).
Sabemos que no séc. XV a música tinha um lugar proeminente nos Paços dos Condes de Barcelos e Duques de Bragança no seu Palácio de Vila Viçosa. A Colegiada de Barcelos era sustentada pelos Condes. Em Vila Viçosa, para serviço da Capela Ducal e do palácio eram sustentados cerca de 25 instrumentistas, de 1584 a 1626. Está documentada ainda a presença do órgão na Capela. (Mercês de D. Teodósio II).
Interior Paço dos Duques de Bragança (Guimarães) |
Palácio Ducal da Casa de Bragança em Vila Viçosa |
Bastarão estes exemplos para se compreender que em todo o país, tanto a corte, como a nobreza, apreciavam e cultivavam a música sacra nas igrejas, e profana nos salões (...). Foi um movimento cultural que envolveu tanto a Casa Real como a nobreza mais rica de Portugal.*
Os factos relevantes desse movimento cultural foram conhecidos pela sociedade burguesa, Como os nobres procuraram imitar os modelos da corte, também os homens ricos, comerciantes abastados, e os homens da rua, procuraram copiar na medida dos possíveis tais comportamentos sociais, de olhar sempre atento às transformações em moda.
Neste estudo verifica-se que a burguesia rica do porto e região do Norte, a partir do séc. XVI, decidiu investir na música. Em casa de família ricas era de bom tom ter instrumentos, saber tocá-los nas horas de lazer e de festas íntimas.
Este estudo pretende reunir dados pouco conhecidos e revelar em primeira mão a documentação encontrada no Arquivo Distrital do Porto (ADP) sobre instrumentos, livros e materiais de música, importados através dos navios do Norte da Europa, que eram destinados ao Porto e à região de Entre Douro a Minho.
Se não se cobrassem impostos alfandegários não possuiríamos documentação escrita sobre muitos factos reveladores da vida social e da cultura de certas épocas históricas. os materiais desembarcados através da alfândega da Ribeira do Douro eram destinados em parte para uso das igrejas, e também para outros fins de carácter social ou familiar, como os bailes de anos , partidas e recitais. O gosto pessoal de fazer música, de a praticar na intimidade ou em pequenos grupos de amadores de música foi uma característica notável da época pré-romântica e mais ainda em pleno romantismo." (Manuel Valença, "Intrumentos musicais importados em Portugal - ARP SCHNITGER e órgão recentes", Ed. Franciscana...)*
Comentários:
* Não era o gosto o que determinava o uso e escolha dos investimentos na música do culto. O gosto sempre foi um aspecto secundário, visto que havia ainda consciência de que a excelência deve ser colocada para o Culto devido a Deus. O máximo esforço e empenho, os recursos materiais, eram também dispostos para o bem mais alto: Deus. O bom gosto, verdadeiramente, é assim aquele que existe por estar ordenado ao Bem, sendo que o restante é mau gosto.
* A música sacra é aquela própria do culto, e faz parte dele. A ideia de uma "música sacra" independente do culto é consequência da recente problemática em torno do Concílio Vaticano II (agravada pela invenção da nova Missa de Paulo VI) que, por incompatibilidades várias entre o Magistério e as novidades litúrgicas, abandona a grande parte das produções artísticas de maior valor na nossa civilização (seja musical ou não) deixando-a à mão da exploração comercial e do recreativo. A comercialização destes tesouros do culto são hoje mal chamados indiferentemente "música sacra" e que muitas vezes são na verdade "música religiosa". A selecção feita pela indústria discográfica ao longo do séc. XX não só introduziu o indiferentismo sobre a diferença entre "musica sacra" e "música religiosa" como introduziu vários critérios de "catalogação" para fins comerciais que são hoje equivocadamente tomados como critérios reais, sendo que os reais são ignorados. É o caso da "musica gregoriana" que erradamente se julga excluída da música sacra, quando é esta o fundamento e modelo. A música sacra, sendo a auge, parte do culto para a sociedade tal como do mesmo Culto que em grau maior de grandioso milagre partem as Graças Divinas para toda a ordem social. Não me parece certo o "Nobreza mais rica", visto que a Nobreza estava primeiramente diposta segundo a sua função e não segundo a eventual maior ou menor riqueza: ao Duque pertence mais (responsabilidades e poder), ao Conde pertence menos (responsabilidades e poder), sendo que, se por algum motivo o Conde viesse a ter maiores bens materiais que o Duque (isto é um exemplo por alto) não haveria motivos para que o Conde tivesse uma Capela Musical mais numerosa que a do Duque, visto que todos estes aspectos, hoje deixados ao acaso do poder económico, eram nesse tempo tomados segundo critérios lógicos bem definidos. O Conde que tivesse menos cuidados com o Serviço de Deus na sua capela teria faltado com o seu dever para com Deus, para com a sua Casa (família e criados), para com a sociedade. Os sacramentos administrados nas capelas, o número de sacerdotes, o número de Missas, e um role enorme de coisas, estavam claramente definidos segundo as obrigações sociais de cada um. Evidentemente que quanto maior era a qualidade da música sacra melhores consequências musicais poderiam receber os fiéis. O amadorismo musical, ou o profissionalismo em espaços menos exigentes que o do Culto a Deus, acabava por ser uma repercussão da excelência da música sacra. Ao fim e ao cabo o Culto permitiu a existência de uma selecção dos melhores músicos subsidiados para o sempre renovado acontecimento da civilização Europeia: o Santo Sacrifício da Missa.
* O início do declínio da música sacra coincide (qual o motivo?!) com a crise ideológica semeada pelo Liberalismo e agravada pelas revoluções. Declínio esse que toma dimensões sociais: pretendeu-se acreditar que a excelência e a pureza cobiçadas deveriam ser roubadas a Deus para servir o homem. Deu-se um período longo de transição: os músicos são forçados pelos novos problemas, e pelas novas facilidades proporcionadas, a deslocarem-se do sagrado para o profano ao ponto de o profano ditar modas que não tardaram a evadir o espaço sagrado. Logicamente que tudo diz o facto dessas dificuldades novas dificultarem a situação da música sacra ao mesmo tempo que as novas facilidades apenas passam a existir para a música profana. Esta dessacralização, afinal, não é a da música e a de toda a ordem de coisas cobiçáveis mas é sim a da sociedade. São temas demasiado longos para tratar numa nota explicativa (que tem de existir por considerar que o texto segue distraidamente algo do "pensamento dominante" e não o da realidade).
Comentários:
* Não era o gosto o que determinava o uso e escolha dos investimentos na música do culto. O gosto sempre foi um aspecto secundário, visto que havia ainda consciência de que a excelência deve ser colocada para o Culto devido a Deus. O máximo esforço e empenho, os recursos materiais, eram também dispostos para o bem mais alto: Deus. O bom gosto, verdadeiramente, é assim aquele que existe por estar ordenado ao Bem, sendo que o restante é mau gosto.
* A música sacra é aquela própria do culto, e faz parte dele. A ideia de uma "música sacra" independente do culto é consequência da recente problemática em torno do Concílio Vaticano II (agravada pela invenção da nova Missa de Paulo VI) que, por incompatibilidades várias entre o Magistério e as novidades litúrgicas, abandona a grande parte das produções artísticas de maior valor na nossa civilização (seja musical ou não) deixando-a à mão da exploração comercial e do recreativo. A comercialização destes tesouros do culto são hoje mal chamados indiferentemente "música sacra" e que muitas vezes são na verdade "música religiosa". A selecção feita pela indústria discográfica ao longo do séc. XX não só introduziu o indiferentismo sobre a diferença entre "musica sacra" e "música religiosa" como introduziu vários critérios de "catalogação" para fins comerciais que são hoje equivocadamente tomados como critérios reais, sendo que os reais são ignorados. É o caso da "musica gregoriana" que erradamente se julga excluída da música sacra, quando é esta o fundamento e modelo. A música sacra, sendo a auge, parte do culto para a sociedade tal como do mesmo Culto que em grau maior de grandioso milagre partem as Graças Divinas para toda a ordem social. Não me parece certo o "Nobreza mais rica", visto que a Nobreza estava primeiramente diposta segundo a sua função e não segundo a eventual maior ou menor riqueza: ao Duque pertence mais (responsabilidades e poder), ao Conde pertence menos (responsabilidades e poder), sendo que, se por algum motivo o Conde viesse a ter maiores bens materiais que o Duque (isto é um exemplo por alto) não haveria motivos para que o Conde tivesse uma Capela Musical mais numerosa que a do Duque, visto que todos estes aspectos, hoje deixados ao acaso do poder económico, eram nesse tempo tomados segundo critérios lógicos bem definidos. O Conde que tivesse menos cuidados com o Serviço de Deus na sua capela teria faltado com o seu dever para com Deus, para com a sua Casa (família e criados), para com a sociedade. Os sacramentos administrados nas capelas, o número de sacerdotes, o número de Missas, e um role enorme de coisas, estavam claramente definidos segundo as obrigações sociais de cada um. Evidentemente que quanto maior era a qualidade da música sacra melhores consequências musicais poderiam receber os fiéis. O amadorismo musical, ou o profissionalismo em espaços menos exigentes que o do Culto a Deus, acabava por ser uma repercussão da excelência da música sacra. Ao fim e ao cabo o Culto permitiu a existência de uma selecção dos melhores músicos subsidiados para o sempre renovado acontecimento da civilização Europeia: o Santo Sacrifício da Missa.
* O início do declínio da música sacra coincide (qual o motivo?!) com a crise ideológica semeada pelo Liberalismo e agravada pelas revoluções. Declínio esse que toma dimensões sociais: pretendeu-se acreditar que a excelência e a pureza cobiçadas deveriam ser roubadas a Deus para servir o homem. Deu-se um período longo de transição: os músicos são forçados pelos novos problemas, e pelas novas facilidades proporcionadas, a deslocarem-se do sagrado para o profano ao ponto de o profano ditar modas que não tardaram a evadir o espaço sagrado. Logicamente que tudo diz o facto dessas dificuldades novas dificultarem a situação da música sacra ao mesmo tempo que as novas facilidades apenas passam a existir para a música profana. Esta dessacralização, afinal, não é a da música e a de toda a ordem de coisas cobiçáveis mas é sim a da sociedade. São temas demasiado longos para tratar numa nota explicativa (que tem de existir por considerar que o texto segue distraidamente algo do "pensamento dominante" e não o da realidade).
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