CAPÍTULO V
Se à Pública felicidade contribua mais a Filosofia dos Iluminados, se a Religião.
deus Razão |
Os Pedreiros produzem sobre
isto o sentimento, o facto, e a razão. Ora sofreram em paz que eu
contraponho sentimento a sentimento, facto a facto, e razão a razão. O
vosso primeiro sentimento, a vossa primeira persuasão é esta, que a
Religião se ajusta pouco à felicidade pública. Eu respeito como devo a
vossa autoridade, mas observai, eu vos rogo, uma coisa estupenda. Os
Minos, os Licurgos, os Prtágoras, os Sócrates, os Platões, e tantos
outros deste carácter, que não eram por certo nem Clérigos, nem Monges,
nem Frades, mas que eram Políticos, eram Filósofos, eram Príncipes, eram
legisladores, todos eles eram de sentimento oposto, e contrário ao
verso, e de tantos homens prudentíssimos, e sempre desejosos do bem
público, não houve um só que introduzisse em sua República a irreligião,
ou descoberta, e patente, como fazem os Ateus, ou coberta, e embuçada
como vós o praticais. Não houve um só de tantos homens famosos, que não
constituísse por primeira base de um bom governo aquela mesma Religião,
que vós teimosamente rejeitais, quero dizer, Religião fundada sobre a
divina remuneração e Providência. Trocava pois a um Epicuro, homem novo
no Mundo, e tão alheio dos públicos negócios, como os seus Deuses, e
tocava a seus Secretários, com ele tão cabalmente parecidos, iluminar
sobre um objecto tão essencial os primeiros homens do Estado, os
primeiros sábios, os primeiros legisladores! Grande e estranhíssimo
paradoxo! E vós, Iluminados, que tanto procurais engrossar, e reforçar o
Exército Epicureu, quem sois? "Homens iluminados, e iluminadores."
Sim, isso sabia eu; mas nunca julguei que vos pudésseis medir com as
personagens que vos acabo de nomear, exemplos de experiência, de
sabedoria, e honrada humanidade. Vós não quereis a Religião como uma
coisa prejudicial ao bem público, aqueles pelo contrário, queriam a
Religião como uma coisa útilíssima ao bem público. Qual destes
sentimentos seja o mais digno de fé, e de apreço, nós o poderemos julgar
pelo carácter dos indivíduos, uns Legisladores dos Povos, outros
Subvertedores das Sociedades.
Não nos esqueçamos desta
primeira parte do paralelo, e avancemos o passo para a segunda muito
mais sólida, porque se trata de facto. Em coisa nenhuma são os Iluminados
tão eloquentes como em expor os males ocasionados pela Religião. Dirão,
com uma erudição espantosa, o que se tem passado no mais recôndito
gabinete do Imperador do Mogol, o que se acha dito no conselho privado
do Kan da Tartária: nem os obrigue ninguém a lhe produzir os
documentos autênticos; tudo é certo, porque só eles o sabem: conservam
um copioso depósito de historietas nunca vistas, que se chamam, há pouco
tempo, anedotas; sabem mui bem servir-se delas, fazendo com tais notícias, não imagens, mas grotescos
da Religião. Não devo perder tempo, combatendo, em tais factos, o muito
que neles tem que combater a crítica discreta, e luminosa; nem quero
examinar se os verdadeiros males hajam nascido da Religião, ou de algum
erro acidental, e particular em matéria de Religião; se hajam nascido da
Religião, ou de alguma paixão debaixo do pretexto de Religião; nem
quero, outro sim, queixar-me da torpe injustiça de atribuir à Religião
em geral, o que é vício de alguma Religião em particular, e, o que é
ainda muito pior, de atribuir o vício de uma Religião que o aprova, a
outra Religião, que o condena: esqueçamo-nos de tudo isto, e
considere-se em si mesma a Religião São acaso muitos, grandes, e
horríveis os males, que ela ocasionou? Sejam; eu não contesto um só; mas
digam-me os Iluminadíssimos Pedreiros, são mais os males que a
Religião causou, ou os que ela impediu? São maiores os males que ela
trouxe, ou os bens? É preciso que insistamos nisto para decidir com
prudência, se a coisa é útil, ou nociva. Se consideramos os males que
acontecem, sem mais nada, que coisa pode haver que se não possa reputar
nociva? Quantos estragos tem causado o ferro, e quantos incêndios
devoradores o fogo? Este mesmo Céu visível, e mataria, se nos lembramos
unicamente dos tufões, dos dilúvios, dos temporais desfeitos; este Céu,
que é a honra, e a salvação da Terra, nos parecerá por certo o luto, e o
extermínio da mesma Terra. Logo, para julgar das coisas direitamente,
se devem balançar os males com os bens, e se se comparam os males com os
bens causados pela Religião, que juízo devemos fazer da mesma Religião?
Eis
aqui sobre esta matéria dois factos inegáveis, segundo entendo, e por
si mesmo: decisivo: o primeiro, que a despeito e todos esses males, ou
verdadeiros, ou imaginários, em todos os estados a Religião se tem
conservado imóvel, estável, inconcusa, e permanente. Ficam leis
abolidas, abolidas as modas, abolidos os costumes; e se alguma vez
variou a Religião, nunca foi inteiramente abolida. Os mesmos Políticos
mais irreligiosos quiseram sempre em público alguma Religião, temendo
que sem ela se subvertesse a sociedade humana. É preciso concluir que a
Religião, até politicamente considerada, é um grande sustentáculo dos
Estados.
O segundo facto ainda é mais decisivo, pois se
observou não só uma vez, mas inumeráveis vezes, quero dizer, a Religião
esplendidamente ligada com a felicidade pública Falarei do antigo
Egito, tão celebrado por sua glória, e riqueza, como por sua Religião?
Quem não conhece a antiga Creta, e a antiga Esparta, ambas conhecidas
por sua diuturna felicidade? E quando lhes começou esta felicidade?
Quando ambas foram consagradas pela Religião! E quem o disse? Um
Filósofo, e talvez o maior que existira entre os Gregos, Sócrates: assim
o vemos no Diálogo de Platão intitulado Minos. Eis aqui suas palavras convertidas em latim pelo grande Marcilio Ficino: "Creta per omne tempus est feliz, ac etiam Lacedemon, ex quo iis legibus, utpote divinis uti coepit."
E qual foi o tempo em que mais floresceu a Pérsia, Atenas, e Roma? Não
foi a primeira no tempo do grande Ciro, a segunda no de Aristides, e a
última no de Fabrício até ao Menor Africano? Foram verdadeiramente
aquelas as idades de ouro, não, quais vós a imaginais, sem censor sem
leis, sem temores, mas idades cheias daquela Religião a quem vós chamais
tirania, a qual senhoreava não só espírito dos povos, mas o dos mesmos
Soberanos. Apélo para a fé da mais autorisada Histódia: Heródoto,
Xenofonte, Políbio, Tito Lívio, C. Nepote andam pelas mãos de todos. Se
acabou a felicidade e se extinguiu o a fé pública, e particular, se as
dignidades se tornaram veniais, e se transformaram em públicas oficinas
de latrocínio, se os Tutores do Estado se fizeram traidores, se,
alterada a ordem, perturbado o repouso, quebrada a paz, os Cidadãos
voltaram o ferro contra as entranhas da mãe comum, qual foi o motivo?
Ouvi, Iluminados, um Epicureu ilustre, tantas vezes escarnecedor
satírico da sua Religião, e depois acusador acerbo da irreligião que
conheceu tão funesta à sua Pátria, Horácio, o qual, confundido, e
magoado à vista de tantas desgraças que oprimiam a sua Pátria,
exclamava: "Para que nos admiramos da aluvião, que nos inunda, se,
despedaçado o dique, já não há medo, nem respeito aos deuses? E de que
maneira poderemos reparar os danos que nos flagelam? Em vão o esperas, ó
Roma, (continua o convertido Poeta) em vão o esperas, se primeiro não espiares os ultrajes feitos aos Numes." Que
mais? O grande Lírico, com força, e sublimidade digna do argumento, não
duvida atribuir à Religião toda a passada prosperidade, e de inculcar, e
criminar a irreligião das presentes desventuras. Epicureus, e Iluminados que respondeis a este Epicureu, a este Romano iluminado?
Chama-me
agora aquele interprete, General, e Censor, o grande Bayle, o qual tem a
ousadia de afirmar, que em quanto ao externo viveria uma Comunidade de
Ateus do mesmo modo que vive uma Comunidade de homens que professam
Religião. Se isto fosse verdade, ó Iluminados, seria falso o que
afirmais, que a pública felicidade não se pode concordar com a Religião.
Se a vida é a mesma, porque não será a ventura também a mesma? Mas
Bayle diz, que seria o mesmo viver; e como o prova? Onde estão os
factos, e factos dignos, conspícuos, e autorizados? Eu tenho produzido a
favor da Religião, os Egípcios, os Cretenses, os Espartanos, os Persas,
os Atenienses, os Romanos; citei os legítimos testemunhos, e posso
produzir factos, e testemunhos ainda mais solenes. Onde guarda Bayle
seus factos, e seus testemunhos? Decaíram acaso os Romanos do tempo de
Horácio juntamente com a Religião? Onde estão os Hotentotes, os
Caraíbas, os Topinambás, ou outra qualquer raça de gente, conhecida
apenas quanto baste para excitar a nossa compaixão? Dir-se-há que Bayle
para prova do seu dito, tem da sua parte a razão? Mas eu respondo, que
se exigem factos, e não razões; os factos, cuja linguagem é mais
sensível, e mais conveniente; e acrescento, factos de grandes populações
inteiras, quais são os que eu alego, e produzo. Que poucos homens
escolhidos, conformes de génio, concordes em ideias possam por algum
tempo viver civilmente sem Religião, isto não é o ponto aqui
controverso; mas um povo sem Religião, se se acha, só poderá ser no meio
da mais bestial barbaridade, qual não viu, ou não fingiu Fernão Mendes
Pinto. Aí se achará então a idade do ouro, aí a preconizada felicidade, e
quem por ela tanto suspira, vá tranquilamente habitar no meio deste
povo. Mas já que me provocam ao campo da razão, de bom agrado entro
neste campo, pois é confirmadora do facto; e juíza do sentimento. E que
grandes objectos devemos tratar! O princípio, a essência, os meios, e os
modos da pública felicidade.
(a continuar)
2 comentários:
Boa noite,
esta obra vai ter continuação?
Cumprimentos,
Caro Luís António Ferreira,
a obra está a ser terminada para edição em papel. Caso queira, podemos enviar-lhe, e para tal basta entrar em contacto para ascendensblog@gmail.com
Volte sempre.
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