02/07/15

REFUTAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DOS PEDREIROS ILUMINADOS (V)

(continuação da IV parte)

CAPÍTULO V
Se à Pública felicidade contribua mais a Filosofia dos Iluminados, se a Religião.

deus Razão
Os Pedreiros produzem sobre isto o sentimento, o facto, e a razão. Ora sofreram em paz que eu contraponho sentimento a sentimento, facto a facto, e razão a razão. O vosso primeiro sentimento, a vossa primeira persuasão é esta, que a Religião se ajusta pouco à felicidade pública. Eu respeito como devo a vossa autoridade, mas observai, eu vos rogo, uma coisa estupenda. Os Minos, os Licurgos, os Prtágoras, os Sócrates, os Platões, e tantos outros deste carácter, que não eram por certo nem Clérigos, nem Monges, nem Frades, mas que eram Políticos, eram Filósofos, eram Príncipes, eram legisladores, todos eles eram de sentimento oposto, e contrário ao verso, e de tantos homens prudentíssimos, e sempre desejosos do bem público, não houve um só que introduzisse em sua República a irreligião, ou descoberta, e patente, como fazem os Ateus, ou coberta, e embuçada como vós o praticais. Não houve um só de tantos homens famosos, que não constituísse por primeira base de um bom governo aquela mesma Religião, que vós teimosamente rejeitais, quero dizer, Religião fundada sobre a divina remuneração e Providência. Trocava pois a um Epicuro, homem novo no Mundo, e tão alheio dos públicos negócios, como os seus Deuses, e tocava a seus Secretários, com ele tão cabalmente parecidos, iluminar sobre um objecto tão essencial os primeiros homens do Estado, os primeiros sábios, os primeiros legisladores! Grande e estranhíssimo paradoxo! E vós, Iluminados, que tanto procurais engrossar, e reforçar o Exército Epicureu, quem sois? "Homens iluminados, e iluminadores." Sim, isso sabia eu; mas nunca julguei que vos pudésseis medir com as personagens que vos acabo de nomear, exemplos de experiência, de sabedoria, e honrada humanidade. Vós não quereis a Religião como uma coisa prejudicial ao bem público, aqueles pelo contrário, queriam a Religião como uma coisa útilíssima ao bem público. Qual destes sentimentos seja o mais digno de fé, e de apreço, nós o poderemos julgar pelo carácter dos indivíduos, uns Legisladores dos Povos, outros Subvertedores das Sociedades.

Não nos esqueçamos desta primeira parte do paralelo, e avancemos o passo para a segunda muito mais sólida, porque se trata de facto. Em coisa nenhuma são os Iluminados tão eloquentes como em expor os males ocasionados pela Religião. Dirão, com uma erudição espantosa, o que se tem passado no mais recôndito gabinete do Imperador do Mogol, o que se acha dito no conselho privado do Kan da Tartária: nem os obrigue ninguém a lhe produzir os documentos autênticos; tudo é certo, porque só eles o sabem: conservam um copioso depósito de historietas nunca vistas, que se chamam, há pouco tempo, anedotas; sabem mui bem servir-se delas, fazendo com tais notícias, não imagens, mas grotescos da Religião. Não devo perder tempo, combatendo, em tais factos, o muito que neles tem que combater a crítica discreta, e luminosa; nem quero examinar se os verdadeiros males hajam nascido da Religião, ou de algum erro acidental, e particular em matéria de Religião; se hajam nascido da Religião, ou de alguma paixão debaixo do pretexto de Religião; nem quero, outro sim, queixar-me da torpe injustiça de atribuir à Religião em geral, o que é vício de alguma Religião em particular, e, o que é ainda muito pior, de atribuir o vício de uma Religião que o aprova, a outra Religião, que o condena: esqueçamo-nos de tudo isto, e considere-se em si mesma a Religião São acaso muitos, grandes, e horríveis os males, que ela ocasionou? Sejam; eu não contesto um só; mas digam-me os Iluminadíssimos Pedreiros, são mais os males que a Religião causou, ou os que ela impediu? São maiores os males que ela trouxe, ou os bens? É preciso que insistamos nisto para decidir com prudência, se a coisa é útil, ou nociva. Se consideramos os males que acontecem, sem mais nada, que coisa pode haver que se não possa reputar nociva? Quantos estragos tem causado o ferro, e quantos incêndios devoradores o fogo? Este mesmo Céu visível, e mataria, se nos lembramos unicamente dos tufões, dos dilúvios, dos temporais desfeitos; este Céu, que é a honra, e a salvação da Terra, nos parecerá por certo o luto, e o extermínio da mesma Terra. Logo, para julgar das coisas direitamente, se devem balançar os males com os bens, e se se comparam os males com os bens causados pela Religião, que juízo devemos fazer da mesma Religião?

Eis aqui sobre esta matéria dois factos inegáveis, segundo entendo, e por si mesmo: decisivo: o primeiro, que a despeito e todos esses males, ou verdadeiros, ou imaginários, em todos os estados a Religião se tem conservado imóvel, estável, inconcusa, e permanente. Ficam leis abolidas, abolidas as modas, abolidos os costumes; e se alguma vez variou a Religião, nunca foi inteiramente abolida. Os mesmos Políticos mais irreligiosos quiseram sempre em público alguma Religião, temendo que sem ela se subvertesse a sociedade humana. É preciso concluir que a Religião, até politicamente considerada, é um grande sustentáculo dos Estados.

O segundo facto ainda é mais decisivo, pois se observou não só uma vez, mas inumeráveis vezes, quero dizer, a Religião esplendidamente ligada com a felicidade pública Falarei do antigo Egito, tão celebrado por sua glória, e riqueza, como por sua Religião? Quem não conhece a antiga Creta, e a antiga Esparta, ambas conhecidas por sua diuturna felicidade? E quando lhes começou esta felicidade? Quando ambas foram consagradas pela Religião! E quem o disse? Um Filósofo, e talvez o maior que existira entre os Gregos, Sócrates: assim o vemos no Diálogo de Platão intitulado Minos. Eis aqui suas palavras convertidas em latim pelo grande Marcilio Ficino: "Creta per omne tempus est feliz, ac etiam Lacedemon, ex quo iis legibus, utpote divinis uti coepit." E qual foi o tempo em que mais floresceu a Pérsia, Atenas, e Roma? Não foi a primeira no tempo do grande Ciro, a segunda no de Aristides, e a última no de Fabrício até ao Menor Africano? Foram verdadeiramente aquelas as idades de ouro, não, quais vós a imaginais, sem censor sem leis, sem temores, mas idades cheias daquela Religião a quem vós chamais tirania, a qual senhoreava não só espírito dos povos, mas o dos mesmos Soberanos. Apélo para a fé da mais autorisada Histódia: Heródoto, Xenofonte, Políbio, Tito Lívio, C. Nepote andam pelas mãos de todos. Se acabou a felicidade e se extinguiu o a fé pública, e particular, se as dignidades se tornaram veniais, e se transformaram em públicas oficinas de latrocínio, se os Tutores do Estado se fizeram traidores, se, alterada a ordem, perturbado o repouso, quebrada a paz, os Cidadãos voltaram o ferro contra as entranhas da mãe comum, qual foi o motivo? Ouvi, Iluminados, um Epicureu ilustre, tantas vezes escarnecedor satírico da sua Religião, e depois acusador acerbo da irreligião que conheceu tão funesta à sua Pátria, Horácio, o qual, confundido, e magoado à vista de tantas desgraças que oprimiam a sua  Pátria, exclamava: "Para que nos admiramos da aluvião, que nos inunda, se, despedaçado o dique, já não há medo, nem respeito aos deuses? E de que maneira poderemos reparar os danos que nos flagelam? Em vão o esperas, ó Roma, (continua o convertido Poeta) em vão o esperas, se primeiro não espiares os ultrajes feitos aos Numes." Que mais? O grande Lírico, com força, e sublimidade digna do argumento, não duvida atribuir à Religião toda a passada prosperidade, e de inculcar, e criminar a irreligião das presentes desventuras. Epicureus, e Iluminados que respondeis a este Epicureu, a este Romano iluminado?

Chama-me agora aquele interprete, General, e Censor, o grande Bayle, o qual tem a ousadia de afirmar, que em quanto ao externo viveria uma Comunidade de Ateus do mesmo modo que vive uma Comunidade de homens que professam Religião. Se isto fosse verdade, ó Iluminados, seria falso o que afirmais, que a pública felicidade não se pode concordar com a Religião. Se a vida é a mesma, porque não será a ventura também a mesma? Mas Bayle diz, que seria o mesmo viver; e como o prova? Onde estão os factos, e factos dignos, conspícuos, e autorizados? Eu tenho produzido a favor da Religião, os Egípcios, os Cretenses, os Espartanos, os Persas, os Atenienses, os Romanos; citei os legítimos testemunhos, e posso produzir factos, e testemunhos ainda mais solenes. Onde guarda Bayle seus factos, e seus testemunhos? Decaíram acaso os Romanos do tempo de Horácio juntamente com a Religião? Onde estão os Hotentotes, os Caraíbas, os Topinambás, ou outra qualquer raça de gente, conhecida apenas quanto baste para excitar a nossa compaixão? Dir-se-há que Bayle para prova do seu dito, tem da sua parte a razão? Mas eu respondo, que se exigem factos, e não razões; os factos, cuja linguagem é mais sensível, e mais conveniente; e acrescento, factos de grandes populações inteiras, quais são os que eu alego, e produzo. Que poucos homens escolhidos, conformes de génio, concordes em ideias possam por algum tempo viver civilmente sem Religião, isto não é o ponto aqui controverso; mas um povo sem Religião, se se acha, só poderá ser no meio da mais bestial barbaridade, qual não viu, ou não fingiu Fernão Mendes Pinto. Aí se achará então a idade do ouro, aí a preconizada felicidade, e quem por ela tanto suspira, vá tranquilamente habitar no meio deste povo. Mas já que me provocam ao campo da razão, de bom agrado entro neste campo, pois é confirmadora do facto; e juíza do sentimento. E que grandes objectos devemos tratar! O princípio, a essência, os meios, e os modos da pública felicidade.

(a continuar)

2 comentários:

Luís António Ferreira disse...

Boa noite,

esta obra vai ter continuação?

Cumprimentos,

anónimo disse...

Caro Luís António Ferreira,

a obra está a ser terminada para edição em papel. Caso queira, podemos enviar-lhe, e para tal basta entrar em contacto para ascendensblog@gmail.com

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