Capítulo III
Quanto o Justo ame a seu Deus mais ardentemente, tanto mais foge de O ofender; como nota o venerável Beda. O amor, e o temor são duas asas com que voa o nosso espírito ao Céu. O temor, ainda que ponha a alma triste, e encolhida, aparelha-a melhor para O amar, que é princípio de todas as suas riquezas. Entendia-o mui bem Tobias, quando industriando a seu filho, dizia: "Filho, pobres somos, porém teremos muitos bens se temermos a Deus". Os que temem, diz o Espírito Santo, buscam aquelas coisas que Lhe são agradáveis. Este temor é a fonte da vida: ele, e o amor são as primeiras letras do abecedário cristão. O temor do Senhor é princípio da sabedoria. Quem mais sábio que o bom? Quem mais prudente que o virtuoso? Quem mais avisado que o temente a Deus? Havendo contado a divina Escritura a alta genealogia, e estremada formosura daquela valorosa Judite, de suas riquezas, de seu admirável recolhimento, jejum, e penitência, diz, que era ela famosíssima em tudo, porque temia muito a Deus, não com o temor (segundo adverte Clemente Alexandrino) com que se foge de uma fera, e se aborrece, senão com o temor filial, e generoso, que se deve a um pai, ao qual se teme e ama juntamente, não para desmedrar, senão para mais valer. Doce, e justo chama David ao Senhor, o qual declara Cassiodoro, para que como a doce amemos, e como a justo o temamos. O amá-Lo, e temê-Lo é ser homem, como diz o Eclesiástico, porque o contrário é de bestas, e demónios, e é ser nada; diz S. Bernardo: "e bem se pode dizer nada a quem lhe falte tanto bem". Vendo-se Caim lançado da presença divina, parecia-lhe, que não haveria lugar, onde se escondesse da face de Deus, e dizia: "Qualquer que me achar, me tirará a vida, e me matará". Porque temia Caim, e temeu toda a vida? senão que, por haver morto ao irmão sem temor do Senhor, era já nada! Deste temor se começa no caminho de Deus para chegar à fortaleza da virtude. O [temor] das coisas da terra causa desconfiança, mas o temor divino concede firmeza de esperança. O juízo de Deus se há de temer, para que não se tema. O homem que desde sua infância (dizia Panuncio) pôs diante de si o temor dos deuses, e a vergonha dos homens, está habituado à virtude, e mantém verdade a todos. O viver sempre com santo temor, e receio, é coisa muito proveitosa para alcançar a graça, e conservá-la. Em qualquer tempo é ele proveitoso, antes que pecar para ser um homem livre do pecado, e ser perdoado. Uns pecadores há, que pecam virando a Deus as costas, outros em sua presença. Não há culpa, que Ele não veja: mas alguns as fazem tão sem temor, e vergonha, como se lhas não viessem, de quem diz Jeremias: "Para ofenderem-Me viram as costas", como os varões que pinta Ezequiel com elas viradas à Sancta Sanctorum, aplicando os ramalhetes de flores aos narizes, que é pecar sem receio, nem modo, como senão houvera Deus. Deste género de pecadores era a Madalena, que vivendo lascivamente, virou as costas a Deus, dando-se aos deleites e prazeres do mundo, sem nenhum temor seu, e assim lhe foi necessário, que se apresentasse com ele ao Redentor do mundo para seu remédio, não de rosto a rosto, senão detrás das suas costas como guiada já do Espírito Santo, temerosa de que Seus olhos a não olhassem de fito, que se um olhar de Deus irado afoga no mar vermelho os carros, e cavalos de Faraó, como não temeria uma mulher fraca? Além de que pelas costas de Deus se entende a humanidade de Cristo, bem nosso. Moisés (disse a Majestade divina falando com ele), "quem me vir o rosto, não poderá viver, contentai-vos com ver minhas costas". Nelas achou a pecadora conveniência seu amparo, porque quando os raios da via de Deus colérico, e inexorável se encaminham a castigar suas culpas, ache perdão delas na humanidade de seu Filho, que com tanta liberalidade a dava aos tormentos, e à morte por redenção dos pecadores. Outros há que pecam considerando que há Deus, e está presente a seus pecados, e que lhos vê. Desta linhagem foi David, e assim disse: "Et malum coram te feci". E o Pródigo: "Pequei em tua presença", e ainda que é ousadia, e atrevimento ofendê-lo à sua vista; contudo isso tiram tão grandes temores de sua presença, que fazem a esperança de sua saúde mais segura. Para contar a divina Escritura a nomeada história da paciência de Job, diz na sua primeira entrada, que era varão simples, recto, e temente a Deus. Tal era aquele honrado velho Simeão, que no fim de sua vida mereceu ver em seus braços o Autor, e princípio dela, de que diz o Evangelista S. Lucas, que era justo, e temeroso; não é este temor, o que os maus têm pelo medo do castigo, mas filial, e amoroso. Daqui é, que muitos efeitos de amor parecera no que de presto se julga do temor, sendo pelo contrário, porque andam eles tão germanados, que os interesses, victórias, e heróicos feitos de um, se reputam, como se fossem do outro. Finalmente são estes os dois pesos, com que se meneia o artifício do Relógio espiritual. Estas as duas portas da escada de Jacob, uma das quais tocava no Céu, e outra estribava na terra. São os dois Querubins, que cobriam a Arca do testamento. São as bases de ouro, sobre quem se levantavam os dois pilares graciosos, a quem comparou o Esposo à sua Esposa. São enfim dois anéis de memória para se trazer no dedo do coração, com que será um homem verdadeiramente nobre, e honrado. Suposto este infalível fundamento, se dificultará brevemente das parte mais essenciais do nosso assunto.
(a continuar)
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