26/05/16

A VERDADEIRA NOBREZA (III)

(continuação da II parte)

Capítulo II
Do Amor de Deus

O Amar a Deus é uma renunciação de todos os vícios, e um oferecimento da própria vontade a Deus, a quem se há de amar sobre todas as coisas, como bem o mostrou o Patriarca Abraão quando levava a seu filho Isaac ao sacrifício. E esta virtude é mais nobre que a Fé e a Esperança, porque aquela olha a Deus com escuridade e como debaixo de um véu: e esta olha-O como a bem árduo que ainda não possui, mas o espera possuir; e olha-O com algum interesse, porque o quer para si, isto é para sua própria perfeição; o qual em sua maneira pertence ao amor, que os Teólogos chamam de concupiscência, mas a caridade ama-O com amor de verdadeira amizade, que é com amor puro, e desinteressado, porque ele consigo só se contenta, e não tem respeito a interesse. Nenhuma diligência por si só é bastante para alcançar esta virtude, porque é obra e dádiva graciosa de Deus, e principalíssima entre todas as suas dádivas; e assim diz o Apóstolo: a caridade de Deus se há infundido em nossos corações por mão do Espírito Santo, que nos foi dado: de forte, que como o santo Espírito é entre as pessoas divinas essencialmente amor, esse mesmo é o que desce na alma do justo, e o que influi, e cria nele este hábito celestial, que o inclina, e move a amar a Deus, o que se alcança com mortificações, e penitência, significadas naquela circuncisão geral, que mandou Deus fazer a Josué em todos os filhos de Israel passado o Rio Jordão quando entravam na terra de promissão. Porque esta para onde todos caminhamos nesta vida pelo deserto da penitência, é a perfeição da caridade, na qual ninguém entrará, senão depois da circuncisão geral do amor próprio, com todos os outros males, e imperfeições que nascem dele, e com uma alma e corpo mortificados, e livres de todos os amores e refrigérios sensuais, porque só em Deus havemos de empregar todo o nosso amor, e pensamento, sobre todo o outro mundano. Quem ama a seu pai, mãe, ou filho mais que a mim, não é digno de mim, disse Cristo: e noutro lugar disse que o primeiro e maior mandamento é amar a Deus de todo o coração. Assim amou Ele ao mundo, que deu seu unigénito Filho, para que todo o homem, que nele crê, e o amar, nem pereça, mas tenha vida eterna. Os que o amarem, e guardarem seus preceitos, usará com eles de sua misericórdia compridos anos na sua posteridade. Amarás a teu Deus e Senhor de todo o teu coração, alma, e forças. Falando Moisés com o povo Hebreu lhe diz, que te pede Deus, senão que o ames, e o sirvas com todas as tuas forças? Ama àquele que te fez (diz o Sábio). E noutra parte porque David seu pai louvou a Deus, e O amou lhas deu contra seus inimigos. E com este Real Profeta digamos: Assim como o veado deseja as fontes das águas, deseja minha alma a Vós meu Deus; teve ela sede de Deus vivo, quando virei, e aparecerei ante a face de meu Deus; ame-Vós eu Senhor fortaleza minha, minha firmeza, meu refúgio, e meu libertador. Da Madalena disse Cristo, que se lhe perdoaram muitos pecados, porque muito amou. Aquele que é maior no amor de Deus, é o que atrai mais este mesmo amor. Tanto Ele paga do que lhe temos a Ele, que três vezes perguntou o Redentor do mundo a S. Pedro se o amava, antes de torná-lo Pastor de suas ovelhas. Neste amor consiste toda a verdadeira nobreza, porque assim como Deus é fonte de todos os bens, assim sem ele, não há uma pequena sombra de felicidade. Nele está toda a honra, e quem de verdade O ama, nele se transforma, prerrogativa própria de amor. A alma mais verdadeiramente está onde ama, que onde anima, porque a condição do perfeito amor é ter todos os sentidos na coisa que ama, e estar todo unido, e transportado nela. Assim o está o que deveras ama a Deus, segundo é caridade, e o que está em caridade está em Deus, e Deus nele, com que será honrado, e nobre. Não é outra coisa sê-lo, que viver virtuosamente, porque a honra é uma dignidade adquirida por virtude, esta é o prémio daquela, a qual não há-de ser herdada, nem havida por infortúnio doutrem, senão por si mesma, que se alcança a mandou Deus na guarda dos seus preceitos; porque o amante deseja agradar à coisa amada. Dos preceitos divinos mana toda a virtude. Nobres e honrados são os que os têm por fim de suas honras. Neste amor não há temor de ausência, que é uma das suas cruéis penas, com esta segurança se ama seguramente. A Deus se há de amar com recato, doce, forte, e prudentemente, de maneira que como só nele é a verdadeira nobreza, segue-se que quem o amar, e imitar, será nobre, honrado, e feliz.

(continuação, IV parte)

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