07/04/15

VOCABULÁRIO DEMOCRÁTICO Nº1 (III)

(continuação da II parte)

ADVERTÊNCIAS NECESSÁRIAS

Ainda que em nova confusão de línguas se tem conservado no geral, o material idioma antigo, não obstante se hão introduzido algumas vezes vozes novas, que exigem uma explicação particular, e por elas se dará principio a este Vocabulário.

Ainda há outra advertência que fazer, e é que a língua republicana democrática está dividida em diferentes dialectos, a saber: o democrático moderado, o terrorístico, o jacobino, e semidemocrático, o libertino puro, o gonsístico, e quiçá muitos outros. Por isso um só Vocábulo tem muitas vezes diversas significações, ainda que na mesma linguagem republicana. Por tanto procuraremos dar todas as explicações possíveis, confessando ser embargo de boa fé, que apesar de todas a as diligências, sempre ficaram muitos vozes (e talvez por toda a eternidade) de um significado confuso e incerto, e isto pelo pouco que convém aos democráticos dar-lhe uma genuína e clara explicação. Apesar de tudo, nós lhes daremos a mais provável, segundo o que a experiência tem confirmado, sobre a qual em todo o caso fundaremos este Vocabulário. Se não tivermos entendido perfeitamente alguns Vocábulos, será esta uma falta tanto mais perdoável, quando é mais verdade que nem os mesmos Republicanos muitas vezes se entendem uns aos outros.


VOCÁBULOS NOVOS

PACTO SOCIAL — Termo jamais ouvido antes de Rousseau, ao menos em sentido antonomástico. Ele é o fundamento primordial do edifício, e da linguagem republicana, pelo que merece uma explicação bem difusa.

Segundo os princípios filosóficos de Rousseau, e seus ilustrados sectários, todos os homens nasceram selvagens, e sem vislumbre de razão, e por tanto iguais aos brutos no modo de obrar. É verdade que todas as historias desmentem um tal estado de bestialidade, porém por mais que os desmintam não têm duvida que os homens deveriam nascer selvagens; (para chegar ao fastígio filosófico, que sem um tal suposto se reduziria a pó) ou se nasceram de outro modo, foi uma extravagancia da Natureza, que a mesma filosofia tem direito de corrigir. Pois como segundo uma tal (impossível) hipótese, quando os homens eram selvagens, eram naturalmente independentes, e a Filosofia perdoa à Natureza (por motivos que ela sabe) a notória injustiça de ter colocado os filhos na absoluta necessidade de te que depender do Pais até à idade, pelo menos, de outro ou dez anos: cousa, que ela tivera feito mui bem, se a evitasse, fazendo-os nascer do esterco, como aos insetos. Porém voltando à nossa historia, não somente eram independentes os homens, mas iguais, e todos tinham uns mesmos direitos, que é como se disséramos, que todos tinham direito a tudo. Livres, pois iguais, e independentes todos os homens, e tendo cada hum em si todos os direitos, não lhes era natural o estado social, nem tinham obrigações de o formar, como não têm os tigres, nem as pantearas. Conheceram, não obstante, as vantagens, que lhes traria viver em sociedade, e trataram, convieram, e resolveram, abandonar a selvajaria com todos os direitos a ela anexos de independência e liberdade, renunciando cada hum por si, e em nome de seus sucessores a certas partesinhas do sobredictos direitos de selvagens, para se unirem todos debaixo de certas condições, e ajustes; e eis-aqui o que se chama, nem mais nem menos, Pacto social.

Para analisar todo este embrulho, segundo o modo antigo de raciocinar, é necessário expô-lo assim.

Os homens nasceram, ou deverão nascer num estado contrario à sua natureza, à razão, e à Providência; todos nasceram, ou deverão nascer com direitos contradictórios, e destruictivos entre si; nenhum teve a obrigação mais leve de guiar-se pela razão, pois neste estado, quando os homens eram bestas, ou deviam sê-lo, conheceram as vantagens de hum outro estado, de que não tinham a menor ideia, e renunciaram a alguma porção dos direitos de besta, por convicção daquela mesma razão, que não usavam, e antes de estar em sociedade, entraram nela, para deliberar, e convir sobre a formação da sociedade: oh! E com graça de que já tinham palavras para explicar ideias, que jamais haviam conhecido. O mais belo é, que se os homens entraram em sociedade, foi porque renunciaram a uns direitos, que se chamam inalienáveis, e porque se contentaram em conservar as raízes de todos os direitos de feras, não obstante que estes fossem contrários à sua razão, seus deveres, e sociedade. Eis-aqui o Pacto Social em seus verdadeiros termos.

Isto é hum caos de confusão, (dirá qualquer homem, que não tenha endoidecido de todo) de que nada se pode entender. Porém se assim não fora. Como havia de ir bem filosoficamente? De hum absurdo não se pode entender senão uma só cousa, a saber, que é hum absurdo. Ponhamos a cousa em mais alguma clareza.

Segundo os Filósofos, o homem nasce livre: ninguém pode priva-lo desta liberdade: ele só é quem pode ceder alguma porção dela. Se é livre, pode fazer ou não fazer sociedade com os outros homens, e renunciar em beneficio dela. Alguma parte de sua liberdade e seus direitos. Se assim o faz, fá-lo sem obrigação, e vem a formar hum pacto livre e espontâneo com os outros homens, que é o que cabalmente se chama pacto social. Por tanto, todo o homem, que se acha em sociedade, se acha nela por hum pacto, que fez, porque lhe deu na vontade.

Façamos um argumento idêntico. O homem nasce livre; ninguém pode priva-lo desta liberdade: se é livre, é senhor de conservar sua vida, ou de não  a conservar; ninguém o pode obrigar a isso; por conseguinte ele tem a liberdade de matar-se, sempre, e quando lhe faça conta. Se conserva a vida o faz sem alguma obrigação; e vem a formar um pacto livre, e espontâneo  consigo mesmo, em virtude do qual renuncia ao natural direito, que tem de matar-se: todo o homem pois, que ainda vivo sobre a terra, não vive senão em virtude de um pacto social, que fez consigo mesmo: todos se riem deste pacto: e porque nós não riremos deste outro sonhado pelo Cidadão Genebrino, e que se funda nos mesmos principio de independência, e liberdade?!

Uma vez que se cometa o erro, e se tenha a pouca vergonha de se fazer consistir a liberdade humana unicamente na potencia física de fazer mal; e esta dê, outrossim, ao homem direito de fazê-lo, e de ir contra os ditames da razão, do dever, da justiça, e da consciência  jamais fará o homem nenhuma acção justa, e virtuosa, senão em virtude de algum pacto, ou consigo, ou com outros homens. Sempre terá direito e liberdade para matar-se a si mesmo, e para matar os outros. Sempre terá faculdade para roubar, enganar, caluniar, e fazer quantas iniquidades lhe sejam possíveis; e nunca se absterá disto senão em virtude de algum pacto, contrario à sua liberdade e seus direitos. Oh! E quantos pactos sociais restam que fazer aos Democráticos, como o demonstra por toda a parte uma funesta experiência! ...

Porém se a liberdade do homem não consiste em a só potencia física de fazer mal, mas sim em uma faculdade dependente em tudo da razão, do dever, e da justiça, tão livre é o homem em estar na sociedade, em que a Natureza, a Providência, e o amor à ordem o hão colocado, como o é em matar-se a si mesmo, e a todos os outros homens. Contra a razão não há liberdade, que valha, e todos os pactos e direitos contra a justiça e os deveres são nulos, por cuja causa, tanto é pacto a sociedade, como é o conservar-se a vida, ou abster-se de toda a acção injusta e iníqua. É hum absurdo ridículo forjar pactos livres daquilo mesmo, que é uma obrigação, imposta pela razão, pela justiça, pela natureza, e pela necessidade; e forja-lo unicamente, porque se tem a potencia física de fazer o contrario. Logo o pacto social de Rousseau, e de seus ímpios Discípulos é uma verdadeira quimera, que jamais existiu senão na sua escaldada, e sempre contraditória imaginação, indigna da razão, a quem degrada, injuriosa à Natureza, a quem ultraja, falsa em sua existência, infame em suas consequências, e disparatadíssima em sua invenção.
(continuação, IV parte)

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