06/04/15

VOCABULÁRIO DEMOCRÁTICO Nº1 - Introdução (II)

(continuação da I parte)


NOVO VOCABULÁRIO
FILOSÓFICO-DEMOCRÁTICO


Cum desolationem faciunt, pacem appellant.
TACITO

INTRODUÇÃO

Todos os homens, que em outro tempo habitavam a terra, viviam unidos no campo de Sennaar: tinham todos umas mesmas ideias, a mesma linguagem, e os mesmo costumes. Multiplicados de maneira, que lhes foi necessário separarem-se pela falta de subsistências, empreenderam, antes de o efectuarem, fabricar aquela famosa Cidade, e Torre, que deviam servir de testemunho eterno, não menos de comum origem, que da sociabilidade, cultura e mutuo amor, que desde o principio havia unido a linhagem humana para confusão de alguns abortos da natureza, que com o discurso do tempo haviam querer confundir a origem do homem com a das feras, e deduzir desta suposta original bestialidade humana a liberdade, a sociedade, e os direitos dos homens.

Mas, nem porque estes vissem que lhes era necessária a separação, lhes deixava de ser amarga, e mui de propósito iam dilatando um negócio, donde lhes resultava um desgosto, que assim não podam evitar. Todos se empregavam em celebrar com demonstrações de alegria os últimos momentos de união, fazendo ver com isto que nunca o bem nos causa tão sensíveis, e doces impressões como nos últimos instantes, em que se nos avizinha a sua perda.

Porém, no comenos que os cuidados e trabalhos humanos se prodigalizavam em um só lugar, a terra por todas as partes deserta reclamava habitadores e indústria: e a Providência soube obrigar os homens a separar-se sem lesão do belo desejo de viverem unidos. Chegou finalmente o dia destinado por ela para o complemento de um prodígio, que por modo algum podiam imaginar. Despertam do sono, e se dispõe aos seus costumados mestres: falam uns com outros, os pais, e os filhos, o maridos, e a mulher, os vizinhos, e os parentes; entende-se mui bem; julgam falar a mesma linguagem que dantes, e falam outra inteiramente diferente: chegam à grande fábrica, falam-se; alguns particulares entendem-se; porém a comum confunde-se, e articula vozes sem comunicar pensamentos. A inocente discórdia não ofende a Natureza: todos estão conformes em máximas, em vontade, em amor, em desejos, e somente em vozes discordam. A Providência mesma já tem sinado, os que devem unir-se, e os que devem separar-se. Despedem-se os homens para multiplicar as Nações; e o ultimo adeus, que podem dar-se à despedida, é de mudos abraços, e ternas lágrimas.

Tal foi o prodígio da confusão em Babel; grande na verdade, porém inocente, e útil. Mas, oh! Quam diverso teria sido o resultado, se em vez da mudança das vozes correspondentes às idas, se houvessem mudado as ideias correspondentes ás vozes?! A suceder assim, seguir-se-ia que julgando os homens entender-se, pois não usavam de palavras senão bem conhecidas, nem se entenderiam, nem fariam outra cousa que enganarem-se. E então que confusão! Que discórdia! Que fatais distúrbios se não teriam originado!!...

Pois esta perniciosa confusão de línguas é a que, de algum tempo a esta parte, se há descoberto com surpresa universal em todos os idiomas da Europa! É verdade que as vozes são as mesmas, porem é igualmente certo que muitíssimas delas, e as de mais importância, não significam já o que antes significavam. É verdade, repito, que são as mesmas vozes, porém também é indubitável que um sem número delas, longe de explicar, o que até aqui hão explicado, não têm outro uso que significar o contrario do que soam. Desta confusão pois, tão fatal em ideias e vozes, tem nascido justamente o universal transtorno social, que tanto à nossa custa palpamos. Ela é que tem feito que muitos Povos, enganados por falsos e mal intendidos Vocábulos, hajam corrido direitos àquilo mesmo, que na realidade detestavam; e só hajam encontrado a escravidão a miséria, a desgraça, onde pensavam achar o porto da liberdade, da felicidade, e o supremo poder, com que tantos os lisonjeavam.

É demasiado interessante este acontecimento, para que se esqueça sua história, com razão pode ser considerado como uma espécie de prodígio. Ele é uma nova confusão de línguas, e se não se há obrado instantânea e milagrosamente, como o de Babel, é sem embargo muito mais importante, funesto, e doloroso para todo os Género Humano, do que foi aquele.

Sua origem remota quiçá pode buscar-se nos tempos de Cromwel, ou de Hobes, e Espinosa; porém a mais recente se deve fixar com segurança nos de Rousseau, e sua contraditaria pena.

Havia já muito tempo que certos entes ridículos, que se diziam Filósofos, maquinavam a ruína da Religião, da ordem, dos costumes, e das Soberanias Legítimas; mas esta empresa era mui difícil, e não devia pôr-se em pratica, sem que o engano mais delicado houvesse antes preparado o caminho. É por esta razão que muitos tentaram a carreira, porém com infeliz sucesso. Só Rousseau teve a glória de inventar uma vereda capaz de confundir os cérebros, e de fazer que todos os homens corressem após aquilo mesmo, que mais aborreciam.

Inventou um absurdo agradável, e chamou-se "Pacto Social": fundou este pacto social sobre a liberdade humana: a liberdade humana sobre os direitos do homem: os direitos do homem sobre a natureza; e a natureza sobre o que ninguém entende, nem há podido compreender, senão ele.

Porém como a Religião, a razão, e os deveres estavam em oposição manifesta com a sua liberdade, e seus direitos, deixando a um lado a definição verdadeira daquela, e destes, armou tal confusão de linguagem (algarabia), e faltou tão contradictoriamente da Religião, da liberdade, dos deveres, e dos direitos, que jamais se chegará a saber o que foi, o que ele entendeu por semelhantes nomes. Mas ao mesmo tempo que com estes Vocábulos se confundia a razão, se foi introduzindo uma linguagem doce, que mansamente ia lisonjeando as paixões mais vivas, e despertando o orgulho, e o desejo da independência, e insubordinação. O método foi qualificado de excelente por todos aqueles, que suspiravam por precipitar o género humano em o ateísmo, no desenfreamento, e a libertinagem. O charlatão Filósofo teve infinitos sequazes, discípulos, e defensores; e transtornadas as cabeças, começou todo o mundo a gritar: pacto social, liberdade, igualdade, direitos, sem saber, nem entender o que significavam estes Vocábulos. Ultimamente, a geringonça há sido tal, que não somente se hão transtornado os cérebros dos ignorantes e estúpidos, mas até os de muitos, que se jactavam de doutos e raciocinadores.

Nada menos se pretendia que uma tal confusão, para ir pescando os homens. Falava-se, escrevia-se, e até se apregoava liberdade, soberania, direitos, governo, leis, religião, superstição, fanatismo, e outros infinitos Vocábulo; e falavam-se, e escreviam-se de uma maneira, que perdendo insensivelmente seu verdadeiro significado, e conservando do antigo nada mais que o som, excitaram em os Povos e disparatado entusiasmo, e a extravagante mania de caminhar em direitura à irreligião, à imoralidade, à escravidão e pobreza, imaginando que iam lançar-se em os braços da liberdade, e da ventura.

Atónitos ficaram os homens, quando, instruídos finalmente pela experiência, viram que a liberdade se opunha à razão, os direitos do homem a seus deveres, a natureza a si mesma, sua sonhada soberania à sua felicidade, e as grandiosas promessas aos factos. Foi então quando conheceram de algum modo a inopinada confusão de línguas, sem com tudo descobrir a origem de um tal prodígio.

Já a este tempo estavam repartidos esquadrões de Filósofos, que, reunidos em lugares determinados, trabalhavam com o santo fim de fazer-se tiranos debaixo do nome de libertadores, e de fundar o despotismo, e a escravidão debaixo do nome de Democracia, ou Republica. Mas como a Religião era para isto um estorvo, começaram a combatê-la debaixo do nome de superstição, e a denegri-la cobrindo-a de opróbrios, e dictérios. Assim foram seguindo seu infernal plano de roubar os Estados e os Reinos, debaixo do nome dos fazer livres e felizes; de destruir as propriedades com o pretexto de igualdade, e de induzir os Povos para que preferissem a bestialidade democrática aos pequenos defeitos da Monarquia. Esta perversa linguagem tem chegado a propagar-se de maneira, que não somente é já comum em todas as Republicas democráticas, mas a estas horas se acha espalhada por todo o mundo. Tem-se tornado por tanto necessário formar, e publicar um Vocabulário da língua antiga, e da moderna democracia e republicana, não só para impedir que os Povos, enganados pela semelhanças das palavras, vivam eternamente deslumbrados; mas para que se entendam os republicanos, e para que se destruam os seus embustes.

A experiência, que é a mestra mais segura em todas as coisas, é mui especialmente sobre isto que nos fala com toda a clareza: sirvamo-nos de um exemplo: um cão, que logo depois da voz "pau" provou os seus repetidos golpes, chega perfeitamente a entender o que significa, e foge apenas ouve a tal palavra "pau". E se isto assim é, porque razão a experiência não há de ter ensinado aos homens o verdadeiro significado dos Vocábulos republicanos? Por ventura não tem eles palpados o que constantemente se tem seguido às palavras dos republicanos liberdade, propriedade, soberania, etc.?!

Algumas objecções se podem fazer a este Vocabulário, a que convém responder. Dir-se-há, por exemplo, a língua republicana se irá enriquecendo cada dia mais: logo o presente Vocabulário é imperfeito. Não temos a menor duvida a este respeito; porém isso quer dizer que haverá matéria para novos Tomos; e por esta causa poremos em frontispício deste = Tomo primeiro.

Um agudo Jacobino sustentou em um Café, que um Vocabulário Republicano era inútil, pois que daqui a duzentos anos, e talvez antes, teriam voltado os Vocábulos a seu antigo significado; e se agora p. ex. Felicidade dos Povos, significa extrema ruína e miséria, daqui a dois séculos significará, ainda que republicanamente, o que antes significava.

Porém apesar de tudo, sobram-nos fundamentos para crer que os sucessores dos ilustres autores da linguagem republicana, se existe (o que Deus não permita) por todo esse tempo, terão sumo cuidado de conservar a língua em sua primitiva pureza. Além de que, como a presente geração não há de ter a honra de falar com os Republicanos, que hão de viver daqui a dois séculos, a deseja vivamente entender aos que agora vivem, por esta causa o presente Vocabulário não pode deixar de ser de suma utilidade.

(continuação, III parte)

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