Thomas de Kempis
II Livro
O Mundo Interior
II Livro
O Mundo Interior
Cap.IX
Privações de Todo o Conforto
1. Que se despreze a consolação humana quando se
possui a divina, não admira. Muito admira, porém, que se possa estar sem uma
nem outra e que se sofra em paz, para a glória de Deus, este desamparo em que
se acha o coração, sem se buscar a si mesmo nem examinar se merece, ou não, ser
tratado desta sorte.
Que admiração pode merecer o facto de estares
alegre, quando a graça te assiste? Quem não se julgará feliz em situação tão
favorável.
Com muita suavidade caminha aquele a quem a graça
conduz. Como admirar que nada lhe seja penoso, se é ajudado pelo Omnipotente e
conduzido por este guia supremo?
2. Facilmente recebemos as consolações humanas e
não é sem grande dificuldade que o homem se despoja de si mesmo. O ilustre mártir
São Lourenço venceu o mundo calcando aos pés o amor que tinha aos seus parentes
e ao seu Bispo, quando, por dedicação a Jesus Cristo, sofreu que o separassem
de São Sisto, Sumo Pontífice, a quem amava sumamente. Com o amor ao Criador
venceu o amor à criatura e renunciou a todas as consolações humanas para se
sujeitar à vontade de Deus.
Deste modo aprende a privar-te, por amor de Deus,
daqueles a quem mais estimas, e sofre esta separação lembrando-te de que um dia
nos apartaremos uns dos outros.
3. O homem deve entrar em porfiados combates
contra si mesmo até conseguir vencer-se inteiramente e pôr em Deus todos os
seus afectos. Quando alguém confia em si mesmo, facilmente procura as
consolações humanas. Pelo contrário, quem ama deveras a Jesus Cristo e trabalha
com ardor para adquirir virtudes, não faz caso dessas consolações nem busca
doçuras sensíveis. Só deseja penosas lutas e duros trabalhos.
4. Quando Deus, pois, te conceda alguma espiritual
consolação, recebe-a agradecido, reconhecendo que ela não é um efeito do teu
merecimento, mas sim um dom de Deus. Com ela não te desvaneças nem te alegres
em excesso, nem te encha uma vã presunção. Deves com ela ser mais humilde, mais
vigilante e mais circunspecto em todas as tuas acções, porque passada a hora do
júbilo virá a da tentação.
Quando esse júbilo se dissipe, não desesperes, mas
aguarda com humildade e paciência que volte ao teu coração a alegria celeste.
Poderoso é Deus para te da de novo e acrescentada a alegria que tiveste. Isto
não é novidade para os que têm experiência dos caminhos de Deus. Os antigos profetas e os maiores santos
experimentaram em si mesmos, muitas vezes, essa alternativa de paz e de
perturbação.
5. David sentia a presença da graça quando disse: "Na minha abundância jamais serei combatido." Mas, logo que a graça se retirou
dele e viu o que era por si mesmo, acrescentou: "Desde que apartaste de mim o
Vosso semblante, eu me senti cheio de perturbação." Lhe diz com o maior fervor: "Eu clamo, Senhor, a Vós, e Vos ofereço a minha oração." E, tendo conseguido o
desejado fruto, exclama: "O Senhor me ouviu, compadeceu-se de mim e declarou-se
meu protector." Declara qual foi esse socorro, dizendo: "Vós mudastes os meus
gemidos em prazer e me cercastes de alegria."
Se Deus tratou dessa forma os Seus grandes
eleitos, nós não devemos desconfiar por nos sentirmos ora fervorosos ora
tíbios, pois o Santo Espírito vem e vai, segundo lhe agrada. Por esse motivo
disse Job a Deus: "Visitais o homem pela manhã e de repente o provais."
6. Em que posso eu esperar, ou em que devo pôr a
minha confiança, senão na infinita misericórdia de Deus e na graça do mesmo
Senhor? Ainda que me assistam homens de piedade, ou irmãos devotos, ou amigos
fiéis, ou livros santos, ou escritos excelentes; ainda que ouça hinos e os
doces cânticos da Igreja, pouco me ajuda e agrada tudo isso, quando me vejo
destituído da graça e entregue à minha indigência. Não acho, então, melhor
remédio que a paciência, a renúncia de mim mesmo e a resignação à vontade de
Deus.
7. Não encontrei, jamais, alma tão religiosa e tão
devota que não experimentasse algumas vezes ausentar-se-lhe a graça e
diminuir-se-lhe o fervor. Nenhum santo subiu tão alto nem foi tão ilustrado,
que antes, ou depois, não sofresse tentações. Não é digno de contemplar a Deus
quem, por amor de Deus, não sofreu alguma tribulação.
A tribulação é um sinal que de ordinário precede a
consolação. Jesus Cristo promete consolar aqueles que triunfarem das aflições: "Eu darei a comer – diz Ele – o fruto da árvore da vida ao que sair vitorioso
dos trabalhos."
8. Deus dá as consolações divinas para que o homem
se conserve forte no sofrimento de todos os males. Permite, depois, que a
tentação o inquiete, para que não se encha de orgulho no tempo da vitória.
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