03/09/14

ACLAMAÇÃO DE D. MARIA I (I)

Antes da transcrição que segue, será oportuno dizer que a aclamação de um Rei legítimo, em monarquia tradicional (necessariamente católica, não constitucional, não liberal), não é o fazer ou o legitimar de um Rei, mas sim o reconhecimento público da sua legitimidade.

Aclamação de D. Maria

"Lisboa, 14 de Maio de 1777

Dia sob todos os aspectos formosíssimo foi o de ontem em Lisboa. As ruas inundadas de forasteiros, o Tejo coalhado de embarcações embandeiradas; alegria em todos os rostos, animação por toda a parte. Há quantos anos se não respirava tamanha felicidade nesta capital?

Quando chegámos ao Terreiro do Paço já nêle se comprimia uma multidão de gente das mais variadas condições, não só de Lisboa e arredores, mas vinda de terras mui distantes para presenciar a grande solenidade da Aclamação e as festas que se vão seguir. Quatro regimentos de infantaria se formam em batalha, na dita real praça, fazendo frente para a varanda.

Esta, onde teve lugar a cerimónia, é uma obra magnificente, erguida onde eram os antigos Paços da Ribeira. Delineou o seu risco felicíssimo oSargento-mor Mateus Vicente de Oliveira e compõe-se duma galeria com vinte e oito arcos, rematada ao norte e sul por dois corpos de nobre arquitectura com escadarias repartidas em tabuleiros por onde se sobe para a Varanda. Mede essa galeria 478 palmos de comprido por 75 de largo e está adornada exteriormente com figuras alegóricas, troféus, medalhões e festões de seda de soberbo efeito, e interiormente com sanefas de veludo carmesim franjadas a oiro, alcatifas de França de riquíssima qualidade e painéis no tecto de surpreendente pintura.

Ao fundo da galeria, o trono para Suas Majestades ornado de seda e talha sobre-doirada, de tão primoroso artifício que não se torna possível descrevê-lo.

Eram quatro horas da tarde quando se formou o cortejo real que, atravessando várias salas, acompanhou as Majestades até o trono onde ia realizar-se a solene função.

Vinham à frente os Porteiros da Cana, uns com canas nas mãos, outros com maças de prata aos ombros. Seguiam-se os Reis de Armas, arautos e passavantes, com suas ricas cotas de armas, e logo os moços da Câmara, os moços fidalgos, o Corregedor do Crime da Côrte e Casa e, após estes, todos os grandes títulos em duas alas – Barões, Viscondes, Condes, Principais, Bispos, Arcebispos e os Marqueses com os oficiais da Casa Real no meio, todos com as suas insígnias. Depois os Secretários de Estado: Ex.mos Viscondes de Vila Nova da Cerveira, Martinho de Melo e Castro e Aires de Sá e Melo, o Duque de Cadaval, o Em.mo Patriarca eleito, capelão-mor, o Conde de Óbidos, meirinho-mor, com sua vara na mão, o Conde de S. Lourenço, alferes-mor, com o Estandarte Real enrolado, o Senhor Infante D. João, vestido em corpo, fazendo de Condestável, com o estoque levantado, seguido do Conde de Val de Reis; e o sereníssimo Príncipe D. José, vestido de capa e volta, acompanhado do seu camarista D. Francisco Xavier de Meneses Breiner, ambos descobertos. Imediatamente a seguir vinha El-Rei, em grande cerimónia, vestido de terciopelo com riscas cor de fogo, bordado a lantejoulas e cautilhos, coberto de chapéu por dois lados desabado com adorno de plumas brancas e presilha de preciosíssimos brilhantes. Dos ombros pendia-lhe a opa roçagante de lhama de prata recamada a oiro, cuja cauda pegava D. Pedro da Câmara, seu Estribeiro-mor.

Coroava êste magnífico e luzido acompanhamento a Rainha Nossa Senhora, riquíssimamente vestida com manto de tafetá tecido com fio de prata e recamado de lantejoulas; o peitilho era todo guarnecido de flores de brilhantes de excessivo preço e admirável artifício, sôbre o qual pendia de fita vermelha a Cruz da Ordem de Cristo composta de brilhantes-diamantes de pasmosa grandeza. O toucado fingia uma coroa imperial tecida de jóias do mais subido valor e cingia-lhe a régia fronte com tal arte que figurava ser uma só pedra sem semelhante na preciosidade e bom gôsto. O manto real, que lhe caía dos ombros, era de volante carmesim tecido a prata e guarnecido pelas extremidades com rendas de oiro. No corpo do manto viam-se, dispostos em proporcionadas distâncias, cento e vinte castelos com reais quinas, tecidos a oiro.

Servia de braceiro a sua majestade, o Senhor D. João, seu Mordomo-mor; acompanhava-a do lado esquerdo o Marquês de Tancos, e pegava-lhe na cauda do mando a Marquesa de Vila Flor, Camareira-mor. Fechavam o cortejo as damas de honor: Condessas de Galveias e de Lumiares, e mais oito damas todas vestidas à imperial, com seu adorno de ricos adereços e preciosas flores de diamantes.

(continuação, II parte)

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