(continuação da II parte)
ANALYSE
SOBRE A JUSTIÇA DO COMMERCIO
DO
RESGATE DOS ESCRAVOS
DA
COSTA DA ÁFRICA,
NOVAMENTE REVISTA, E ACRESCENTADA
POR SEU AUTHOR
D. JOSÉ JOAQUIM DA CUNHA
DE AZEREDO COUTINHO
BISPO DE ELVAS, EM OUTRO TEMPO BISPO DE PERNAMBUCO, ELEITO DE MIRANDA, E BRAGANÇA, DO CONSELHO DE SUA MAGESTADE.
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LISBOA
ANNO M.DCCC.VIII
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NA NOVA OFFICINA DE JOÃO RODRIGUES NEVES
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Por Ordem Superior
SOBRE A JUSTIÇA DO COMÉRCIO
DO
RESGATE DOS ESCRAVOS
DA
COSTA DA ÁFRICA
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1º - Que o Homem logo que nasce, e que se pode arrastar, ainda sem se conhecer, nem a seus Pais, foge deles para os matos, e para as brenhas, e se faz silvestre, e solitário;
2º - Que ainda antes de ter ideias algumas, e menos dos bens e males das Sociedades, já sabe discorrer, e fazer pactos, e convenções sobre eles para conseguir um bem, e acautelar um mal, que ele ainda ignora (1 - Os mesmo Filósofos são os que dizem, que não há ideias inatas);
§. III
Destes princípios opostos, e contrários à natureza do Homem, necessariamente se hão de seguir consequências absurdas, e contrárias à natureza, ao bem, e à existência do Homem; tais são as seguintes:
Que os Soberanos, ou os primeiros Agentes das Sociedades, por isso que elas se dizem uma obra dos indivíduos, de que elas se compõem, não tem, nem podem ter sobre elas alguns direitos, que esses indivíduos lhes não cedessem.
Que os Soberanos, ou Agente das Sociedades não podem castigar os indivíduos de que elas se compõem como a pedra da liberdade, nem da vida; porque nenhum desses indivíduos lhe cedeu, nem podia ceder tais direitos.
Que as Leis dos Soberanos, ou Agentes das Sociedades só obrigam, quando elas são conformes com o Direito Natural.
Que o Direito Natural é aquele, que dita a Razão Natural: ora, o menino, o velho, o sábio, o ignorante tem cada um sua razão particular, a que ele chama natural: logo são tantos os direitos naturais, quantas são as razões do menino, do velho, do sábio, do ignorante, etc.
Eis aqui até onde se precipitam todos aqueles, que desprezam a autoridade das Leis só tem por guia a sua razão natural. Da mesma sorte o matador, o ladrão, e todo o Homem corrompido não deixa jamais de ter alguma razão para os seus interesses, e até mesmo para as suas paixões, e para os seus vícios; razão que ele chama recta, boa, e natural: logo cada indivíduo de qualquer Sociedade só está obrigado a obedecer à Lei dessa Sociedade, em quanto ela for conforme, ou não se opuser aos seus interesses, às suas paixões, e à sua vontade.
Ora, cada um está obrigado pela Lei Natural a defender os seus direitos naturais, ainda que seja pela morte, e destruição daquele, que lhos pretende destruir: logo cada individuo de qualquer Sociedade está obrigado pelo seu direito natural (ditado pela sua razão natural) (1 - Direito se diz da faculdade, que a Lei dá a qualquer para exigir do outro o que lhe é devido. Heinec. Elem. Jur. Nat., et Gent. 1 (4?) e Cap. T. § 7. Ora, a faculdade, que a Lei Natural, ou da Natureza dá a qualquer para exigir de outro aquilo, que lhe é devido, é a força, e todos os meios necessários para obrigar: logo o Direito Natural, ou o Direito, que compete a qualquer no estado natural é a força, e todos os meios necessários para obrigar; mas como os homens já hoje se não podem considerar no estado natural, mas sim no estado de Sociedade, e por consequência sujeitos aos direitos prescritos pelas Leis da Sociedade; é claro, que não tem lugar a alegação do Direito Natural contra Direito particular de cada uma das Sociedades, o qual não é mais do que o Direito Natural aplicado às circunstâncias, e um extracto, ou a melhor interpretação do maior bem da Sociedade em tais, ou tais circunstâncias, interpretação que só compete à parte do corpo da Sociedade, ou aos Poderes legitimamente constituídos para isso; de outra sorte qualquer particular se poderia dizer interprete da grande Lei da Sociedade, e cada intérprete quereria, que a sua interpretação prevalecesse à dos outros, o que tudo seria uma confusão, e desordem, e uma anarquia continuada: logo toda a apelação, e recurso para o Direito Natural absoluto despido das circunstâncias, ou não pode ter lugar no estado das Sociedades, ou é insidioso, e perturbador da Ordem pública, e destruidor das mesmas Sociedades.) a matar, e destruir aquele Soberano, ou Soberanos, e Agentes dessa Sociedade, que o pretenderem obrigar a que não mate, a que não furte, a que não seja corrompido, a que não corrompa os outros, a que não faça à sua vontade, etc..
Eis aqui as belas consequências do grande sistema dos Pactos Sociais, em que os Indivíduos de qualquer Sociedade se consideram os Criadores, os Legisladores, e os Soberanos de si mesmos, os Juízes sem apelação em causa própria, e os Julgadores Supremos dos seus interesses, e das suas paixões.
Eis aqui desmascarado o revoltoso sistema, que se diz a mais feliz produção do Século XVIII do Século Iluminado, que espalhando a luz por toda a parte tem feito ver os sagrados direitos do Homem, e da sua liberdade (1 - Não é de admirar, que este sistema se teria espalhado tanto, depois de ser ele, como é, tão lisonjeiro das paixões dos Homens: os seus sucessos com tudo não provam mais em seu favor do que as conquistas do Maometismo em favor do Alcorão). Passemos a analisar a natureza do Homem, e seus direitos.
§. IV
O Homem é um animal criado pela Natureza (falo conforme a linguagem dos novos Filósofos para melhor ser entendida por eles) para viver em sociedade, assim como muitos animais, que por mais que se trabalhe por separá-los, correm uns para os outros todas as vezes, que se acham em liberdade, e se ajuntam por uma tendência natural, como qualquer corpo puxa para o seu centro, sem que para isso seja necessário haver entre eles pactos, e convenções de direitos: tais são as ovelhas, e todos os animais, que vivem em rebanhos, qualquer corpo largado da mão.
Qualquer animal quando nasce tem logo toda a força necessária para mover os seus membros, e para seguir a mãe na sua marcha: os seus sentidos, os seus órgãos são logo dispostos cada um para os seus fins: a sua potencia agente com tudo é limitada, e circunscrita dentro de certos limites, quantos bastam para a sua existência.
O Homem porém nasce em embrião para ser desenvolvido pela Sociedade se a mãe não se abaixar a tomá-lo no seu regaço, e lhe não meter na boca as fontes do leite, e da nutrição, ele será logo morto, antes mesmo de ser menino. Os seus sentidos, os seus órgãos nascem imperfeitos; a Sociedade é a que lhe ensina a Fazer um melhor uso deles.
§. VII
Os seu braços, ainda que robustos, as suas mãos, ainda que perfeitas, não saberiam trabalhar, ao mesmo como a delicadeza, e perfeição, que todos os dias admiramos nas obras dos Homens das Sociedades; os seus olhos, ainda que dotados de uma vista perspicaz, so veriam muito grosseiramente as belas obras da natureza, e da Arte: da mesma sorte os seus ouvidos, o olfacto, o tacto, etc..
§. VIII
§. IX
O Homem é uma parte integrante do grande Corpo da Sociedade; é um membro, que separado do seu corpo, ou morre, ou fica sem acção. A experiência tem já feito ver, que o Homem apartado da Sociedade desde os seus primeiros anos, até parece interior aos brutos: ele não os iguala mesmo na perfeição dos sentidos: o dom da palavra este veículo da comunicação dos nossos pensamentos, que forma a mesma imensa dos conhecimentos humanos, e que os vai transmitindo de uns ao outros, é totalmente inútil para o Homem sem a Sociedade. O Homem, enfim, sem a Sociedade até parece que perde a natureza de racional: logo é necessário confessar, que o Homem fora da sociedade desde a sua infância, ou não existe, ou não passa de embrião.
Em uma palavra, o Homem para viver em Sociedade não precisa fazer pactos, antes pelo contrário é necessário uma força para o apartar dela.Ele não tem mesmo a escolha para entrar nesta, ou naquela Sociedade: ele só nasce no meio daquela para o qual a Natureza o destinou, ou ele queira, ou não queria. Eis aqui a verdade; eis aqui descoberto o grande princípio de onde devem partir todos os nossos discursos.
§. XI
A Natureza, que criou os homens para a Sociedade, foi também a mesma, que os criou, quer eles queiram, que não, com diferentes, e desiguais dotes, uns com mais força, juízo, viveza, e penetração do que outros, ou eles se considerem nascidos no mesmo dia, ou com relação aos diversos tempos da vida de cada um; mas como deste estado de colisão de tantos interesses, de tantas paixões, e de tão diversos modos de pensar, nasceria infalivelmente a confusão, a desordem, e a destruição de cada um dos membros, e por consequência de toda a Sociedade; veio a ser de absoluta necessidade para a existência de toda a Sociedade, uma Lei geral, que regule o melhor bem de cada um, ou quando os interesses de um devem ceder aos interesses do outro em tais, ou tais circunstâncias: logo uma Lei geral, que regule os direitos de cada um dos homens da Sociedade, é a Lei Natural dimanada da mesma Natureza, que criou o Homem para a Sociedade.
§. XIV
A Lei sem pena não é Lei, é um conselho. Logo ou se há de dizer que um Povo, uma Sociedade, uma Nação pode existir sem Lei, ou que a pena da Lei é para a existência do Homem na Sociedade. Logo a penas das Leis humanas não deduzem, nem podem deduzir os seus direitos das propostas convenções anteriores às Sociedades; mas sim de mesma necessidade da existência do Homem na Sociedade.
A pena da Lei por mais forte, que ela seja, nunca se pode dizer injusta; pois que sendo ela, como deve ser imposta, e declarada antes de cometido o delito, está na mão, ou no arbítrio de cada um não cometer esse delito, e por consequência fazer nula, e sem efeito essa pena (1 - Ep. ad Roman. cap. 13 v. 3 Vis autem non timere potestatem? Bonum fac, et habebis laudem ex illa.). Logo toda a injustiça, e toda a maldade está, não da parte da Lei, mas sim da parte do delinquente, e daquele que quebranta a Lei; e tanto mais quanto ele sabe que ofende, e quebranta uma Lei, e uma pena mais forte (2 - Se uma pena mais forte não basta para conter o mau, como bastará a menos forte?)
§. XVII
O delinquente por isso que deliberadamente, e muito por sua vontade ataca, e ofende os direitos de cada um prescritos, e declarados pelas Leis da Sociedade, ou da Nação afiançados pela força dela, não só perde todos os direitos da protecção, e auxílios da Nação; mas também se faz inimigo dela pelo dano, que ele faz ao todo, ou a alguma das suas partes. Ora, já vimos que qualquer Sociedade, assim como qualquer homem pela Lei Natural, que lhe impôs a necessidade da sua existência, tem o direito de castigar, matar, e destruir o seu inimigo, quando assim lhe é necessário para conservar, e manter a sua existência, ou esse inimigo queira, ou não queira ceder os seus chamados direito da liberdade, ou da vida ( 3 - V. o § XI, e XII). Logo os direitos, que uma Sociedade, ou Nação, tem de impor as penas, ou castigar, ainda que seja com a da escravidão, ou de morte, a qualquer dos seus membros, ou dos seus inimigos, não é deduzido dos direitos, que se dizem, ou se supõem cedidos por algum, ou por todos eles; mas sim da necessidade da existência das mesmas Sociedades ou Nações (1 - V § XII). Logo a necessidade da existência é a suprema Lei das Nações.
Mas como uma grande Sociedade, ou Nação não pode ser governada, e dirigida por toda ela ao mesmo tempo, porque tudo seria tumutuário, anárquico, e sem ordem, como um corpo sem cabeça, ou como um monstro, que fosse todo cabeças sem membros executores (2 - Daqui vem, que a Soberania do Povo, ou uma Democracia rigorosa, e absoluta, ou é impraticável, ou é só o nome. V. § CIX, e seguintes); foi absolutamente necessário para o maior bem dos mesmos homens em Sociedade, ou em Corpo de Nação autorizar certo Poder, ou Poderes para fazerem as Leis, e por elas regularem o maior bem da Sociedade, ou Nação em tais, ou tais circunstâncias. Logo os direitos dos que estão autorizados para fazer o bem das Sociedades, ou Nações, são provenientes da necessidade da existência das mesmas Sociedades, ou Nações, de que eles estão encarregados.
§. XIX
§. XX
§. XXI
Todos os dias estão cada uma das Sociedades, ou Nações, mudando, alterando, e revogando as suas Leis, só porque se mudaram as circunstâncias, que faziam justa esta, ou aquela Lei, ou que faziam necessária a sua revogação. Ora, a justiça absoluta é imutável, porque é também absoluta, e imutável a Natureza que a produz. Logo, ou se há de dizer, que todas as Leis humanas são injustas, porque se mudam, ou que para elas se dizerem justas, não necessário, que sejam fundadas numa justiça absoluta, mas sim basta que sejam numa justiça relativa.
(a continuar)