25/01/18

O PUNHAL DOS CORCUNDAS Nº 11

O PUNHAL DOS CORCUNDAS

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Nº. 11
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Ostendam gentibus nuditatem tuam

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AS DUAS SOBERANIAS

Não trato agora da Soberania dos Reis. Já disse e torno a dizer que esta é inconcussa, indestructível, e que a antiguidade em peso se declarou a favor do Governo de um só... O Príncipe dos Poetas há pouco menos de trinta séculos sancionava os direitos da Soberania dos Reis, e condenava os governos Representativos ou Constitucionais, pondo na boca do mais judicioso e experimentado dos Heróis Gregos aquela memorável sentença... "Não é bom o governo de muitos, um só é que deve governar." (Illiad. liv. 2º). Conheço que este dito amargará aos nossos mais famosos Publicistas; mas tenham paciência, que ainda é agora... Vai-se acabando o tempo dos risinhos sardónicos, fiéis substitutos da sabedoria moderna, e vão caindo de maduros esses decantados axiomas em que já não era lícito argumentar... Cedo nos veremos em coisa que lhes será pesadíssima, e já declaro que hei de rir-me dessa enfiada de nomes mágicos de Eybels Gmeiners, Filangieres, e outros oráculos... Razões e mais razões... Fontes genuínas e mais fontes genuínas... Nada de Cânones viciados, e mal entendidos, nada de autoridades truncadas ou interpoladas... Tem de passar bem má vida comigo, que antes quisera ser escravo em Argel, do que ser bem reputado pelos nossos Sabichões, que antes quero que me chamem esturrado e fanático, do que me apelidem tolerante, comedido, e que sei viver... Tomara eu saber morrer pela Fé, e confirmar-me todos os dias na santa loucura, de que blasonava o grande Apóstolo S. Paulo (Nos stulti propter Christum).

Quis preparar certos bichaços, para que instruídos suficientemente de qual é o meu ânimo, ou rasguem, ou deitem ao fogo este maldito papel, e não estraguem na sua leitura os preciosos momentos que se devem gastar com os Paynes, Constants, e Pradts, e mais Irmãos da Confraria Liberal.

Duas Soberanias têm havido na Europa desde a queda do Império Romano até aos nossos dias, e a qual delas mais conspícua e estrondosa. A Soberania dos Papas, que se ingeriam nas temporalidade dos Reis, que punham e depunham os Soberanos, que absolviam os Povos do juramento de fidelidade ( Cá em nossos dias fez o mesmo um certo Jam, ou Manuel Fernandes, e ninguém lhe contestou esse direito, que só é odioso nos Papas!!), e cometiam outras desordens, que se acreditarmos o Grão Fleury, e o Grão Racine, por bem pouco não puseram à dependura a civilização, as artes e a felicidade da Europa.

A Soberania do Povo é a segunda, que levantada sobre as ruinas da primeira, logo por entrada arrancou à obediência do Pai comum dos Fiéis Províncias e Reinos inteiros, esmigalhou Septros e Coroas, proclamou solenemente que os Reis eram seus verdadeiros súbditos, e no séc. XVIII, em que mais se despregaram as suas fúrias, não tem às costas menos de quatro a cinco mil homens de vítimas, ainda sem computarmos o efeito dos golpes descarregados sobre a geração futura...

Esta é hoje a formosa, a deleitável, a única soberania de que importa dizer bem, carregando-se de altivez a sua por ventura mais desgraçada que criminosa antecessora... Ora pois nem tanto sofrer, que a paciência também cansa.

Entrarão por ventura os Sumos Pontífices no exercício daquela soberania por chamamento da Escritura, da Tradição, ou por Decreto de algum Concílio Geral? Não.... e assim respondo, porque a verdade é o meu único norte. Mas donde lhes veio tão estranha autoridade, que por certo não exercitaram os Pontífices do primeiro século? Responda em meu lugar um Sabichão, um Filósofo de mão cheia, um Robinet, que no seu Dicionário Diplomático (V. Pape) afirma sem rebuço que os Reis e os povos deram essa autoridade aos Sucessores de S. Pedro, e que eles como interessados nela, mamais deverão ser arguidos de a terem exercitado... Bem... Já temos a favor dos Papas uma autoridade clássica... E as Cruzadas, e os Reis depostos? Sim, Senhor, já lá vamos. As Cruzadas livraram a Europa de ser inundada pelo Turbante Mussulmano, e de experimentar a sorte da África, e da Ásia Cristã; e não é nada o último golpe descarregado sobre as vistas ambiciosas do Império de meia Lua, nas águas de Lepanto, é devido a um Papa, e até o Protestante Bacon estranhava que ainda não estivesse canonizado este Pontífice amigo dos homens. Não me esquecem os Reis depostos... No meio do que antiga e modernamente se há discutido sobre esta matéria pouco me importa o que dizem os Luternos, os Calvinos, os Buchanans, os Miltons, e os próprios Marianas; e cortando o nó górdio das incertezas do famoso Grócio, enunciarei mui clara e despejadamente o meu sentir... A nossa Divina Religião manda sofrer os próprios tiranos, e jamais consentirá ela que seus Filhos atentem contra os Ungidos do Senhor... Entretanto é o sumo grau da incoerência, e da sandice que os Padreiros censurem nesta parte a soberania dos Papas... quantas guerras civis e assoladoras se pouparam no género humano por via desta jurisdição pacífica, e benfazeja!.. Eram por ventura dignos de reinar certos homens que acinte flagelavam, e destruíam os seus povos? E se esses povos se acolhiam ao sagrado do Trono Pontifício, entregando a uma só palavra o que sem este meio teriam conseguido à força de armas, seriam por isso mais repreensíveis que os Regicidas de Carlos I de Inglaterra, e Luís XVI de França? Que raio seriam mais temíveis e estragadores; os do Vaticano que feriam muitas vezes uma só cabeça, u os da Assembleia Nacional, os da Convenção, os do Direito Executivo, e os de Napoleão, que em breves horas deixavam um campo alastrado de mortos, e moribundos, que por bem pouco não reduziram a Europa a um deserto, que ao menos era possível fazer-se de Lisboa até Moscovo, uma calçada dos ossos das suas vítimas. 

Creio que muitos dos meus leitores (tanto podem os prejuízos de educação literária!!) se tem maravilhado destas asserções hoje triviais por toda a Europa, e seguidas por A. A. Católicos, e Protestantes. Há quem defenda que a soberania temporal dos Sumos Pontífices, qual foi exercida lá nos séculos onze, doze, treze, etc. etc. foi um grande benefício para o género humano, e que a Europa deve a esta Soberania tão odiada pelos Filósofos, e Pedreiros toda a sua civilização e grandeza. Imprimiu-se a obra em 1816, e ainda não houve quem lhe respondesse... nem é fácil, pois os sábios da moda correm, correm, debicam, defloram, e nada mais. Logo que apareça algum que estude, examine, e pese os fundamentos, de qualquer ordem que eles sejam, pode estar certo de que ninguém lhe sai ao caminho, nem lhes fará abandonar o campo...

Ora que façam outro tanto à soberania do povo, e que se metam a demostrar que foi um grande benefício para o género humano... Ah! Não tenham medo que tal aconteça, ainda que dos Chorões da Ermonville ressurgisse o demonstrador de paradoxos, o coroado pela Academia de Dijon, o Grão Rousseau!!

Não me faltava que dizer ao propósito das soberanias... mas fica o melhor no tinteiro, porque ainda é cedo... e os ares ainda me não apresentam aquela serenidade, que virá com o tempo, e com os nunca assaz louvados esforços da Santa Aliança...

Quem nome foi agora escorregar-me da pena!! Aí dá um fanico em algum dos meus leitores... pois toca a fazê-lo tornar a si, e diverti-los... que nem sempre hão de tratar-se questões de polpa...


Ó Hirco Cervo

Apareceu, apareceu... Já o vemos, já o possuímos, e não obstante o passar até agora como impossível na ordem da natureza, só ele não apareceria no séc. XIX, século das coisas raras, estupendas, e maravilhosas!! Muito perderam os Buffons, os Lineos, os Lacepedes, e outros que não chegaram a ver o que eu vejo, e que eu admiro.

Metade do Corpo das tais animálias é de Veado, e a outra é de Bode ou Cabrão... Oh que linda mistura de feições, de gestos, e de movimentos!! Não me farto de os ver, de os analisar, e dar vivas ao meu século, que os gerou e produziu! Não é um só que apareceu, de modo que seja necessário andar à mostra pelo Reino... há muitos nas cidades principais, já os há nas vilas, e o que é mais, ja penetraram nas aldeias e choças dos pastores! Sendo tanta a bicharia, talvez pareça à primeira vista que perderam o ser de monstros, e devem fazer uma nova espécie... Nova espécie... Fora... isso não, que teríamos em campo os Senhores Materiais ou Materialistas a gritarem que estes bicharocos foram gerados pelo simples esforço da matéria... Não Senhor, não é nova espécie. São muitos, e são monstros. Posso afirmar com toda a segurança, que é uma raça hibrida, e que dentro em seis anos já não haverá nem fumos de Hico Cervo em Portugal. Continuemos todavia a sua descrição, que é importante e divertida.

São de várias cores e tamanhos, umas azuis, outros negros, outros brancos, outros pardos, uns apessoados, e de figura gigantesca, outros da marca de Judas, e quase pigmeus... Sendo o seu natural viverem nas cavernas onde estiveram por muito tempo sem haver quem desse fé de tais brutalidades. Sabiam há pouco das suas vivendas, e fizeram-se mais conhecidos do que se fossem gatos pardos... Fazem liga com os Leões, Tigres, Leopardos, e Onças, e não lhes pesa o pé uma onça quando se trata de servirem aqueles bichaços, e de lhes facilitarem a presa de animais pequenos, mansos, e inocentes... Por isso mesmo que degeneraram das espécies primitivas, dão-lhes contínuas mostras de ódio figadal, desejam trincar-lhes o próprio coração, e lhes fazem quanto mal podem, ora mordendo, ora escoucinhando, e até desalojando-as de suas pacíficas moradas. Se a bem ordenada república dos industriosos Castores é a admiração dos naturalistas a ponto de lhes estudarem todos os seus passos, trabalhos, e edifícios, quanta lhes deverá excitar a sociedade dos Hirco Cervos, que sobressaem até nos ofícios mecânicos, e especialmente de pedreiro?

É de ver e de pasmar a suma agilidade com que maneiam a trolha e a colher, mexem e remexem a cal, e sabem destruir para melhor edificarem

Se algum dos meus leitores por mais esperto e agudo tiver percebido que o Hirco Cervo é o Frade Constitucional, por isso não termos grande bulha, a pesar de que o assunto foi agora tocado bem pela rama... Atrás de tempos tempos vêm, e até ao lavar dos cestos é vindima......

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LISBOA: NA IMPRESSÃO RÉGIA. 1823
Com licença da Real Comissão de Censura.

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