Capítulo II
Paralelo da Religião de Epicuro Com a dos Iluminados
Paralelo da Religião de Epicuro Com a dos Iluminados
Foi
moda no século das revoluções espalhar nomes em lugar de coisas, e
inculcar péssimas coisas com especiosos nomes. Fala em Religião Epicuro,
fala em Religião o Iluminado, e Religião pura, e perfeita. Mas que
entende um, e outro, que toma pela palavra Religião? Acaso [foi] o
que entenderam os outros Filósofos, Príncipes, magistrados, e Povos do
Mundo? Não por certo! Tal é em qualquer indivíduo a Religião, que é a
ideia que forma da Divindade, e da humanidade. O homem, ainda depois da
morte corporal, sujeito ao Império de Deus; Deus, Legislador Supremo, e
distribuidor da felicidade, e da miséria do homem; eis aqui as bases em
que se estabelece, e levanta a importância, e majestade da Religião.
Ritos diferentes, diferentes sacrifícios, e também diferentes formas, e
caracteres da Divindade, ou suposta, ou suspeitada, ou fingida, segundo o
capricho dos homens, (ainda que todas as nações existam concordes
nisto, que vem a ser, no conhecimento de alguma Divindade dominante,
dispensadora dos bens, e dos males), dão a conhecer que o homem
naturalmente quer respeitar, e obedecer a um supremo Nome. Nem outra
coisa queriam dizer os raios de Jove, as frechas de Apolo, as espigas de
Ceres, o Tataro, e o Elísio. Que Deus indolente, e nulo se julgou digno
de Templos, e de Altares?
Epicuro |
Nós vamos ver qual
seja a ideia do homem na Filosofia de Epicuro, e do Iluminado. O homem
dizem um e outro, não é mais que um composto de simples matéria, que
todo se esvai, e acaba na morte, e por isto izento, e livre de qualquer
Religião, porque só vive circunscripto, e limitado só à vida presente.
nada resta depois disto à Religião; porque tanto Epicuro, como o
Iluminado, fazem também a vida actual independente da Religião pela
estranha ideia que nos dão da Divindade. Um Deus de quem se não pode
temer, nem esperar coisa alguma nem enquanto dura a vida, nem depois de
finalizar a vida. eis aqui o grande objecto da Religião de Epicuro, e do
Iluminado.
Enquanto
à ideia de Deus, deve observar-se entre Epicuro, e o Iluminado a maior
diversidade, e ao mesmo tempo a mais exacta semelhança. Os Deuses de
Atenas, não eram os Deuses de Epicuro; exteriormente os honrava, mas
dentro de seu coração os escarnecia; carácter que em Céneca repreendeu
Santo Agostinho: "colebat, quod reprehendebat". Quais eram pois os Deuses que Epicuro desconhecia? Uma feira de Entes, sonhados por ele: Monógramos,
que quer dizer Lineares, figurados, mas não visíveis, que tinham, não
corpo, mas quase corpo, não sangue, mas quase sangue, desterrados para
sempre entre mundo e mundo nos espaços imaginários. Um Aristófones não
podia pôr em cena mais ridiculamente as Divindades da Grécia, nem
Luciano os podia mais claramente expor ao escárnio, e ludibrio dos
homens! E Epicuro, o Filósofo Epicuro, profere, e dogmatiza tais
despropósitos? Parece que, senão delirava, por certo zombava dos Deuses e
dos homens!
Confesso
que o Iluminado vai muito longe destas extravagâncias, incompactíveis
por certo com o decoro filosófico da nossa idade. Ainda os de mais
ardimento, e os que não fazem pública profissão de Ateus, falam do Ente
Supremo como aquela dignidade, que lhes prescreve, não só a mais sábia
Filosofia, mas a mesma Profecia, e Evangélica Sapiência. Ente Soberano, e
único, eterno, imenso, infinito, perfeitíssimo, e em si mesmo
bem-aventurado; tal é o quadro, ou ideia de um Deus, que quase todos os
Iluminados nos apresentam, e nisto há entre eles, e Epicuro uma palmar
diversidade.
Passemos à semelhança: Que fazem os
deuses de Epicuro a respeito dos homens? Nada. O seu primeiro princípio
é este: Eximirem-se de todos os cuidados numa perfeita, e absoluta
indolência. Encerram-se em sua habitação, quietos, tranquilos,
bem-aventurados no seio de um ócio eterno. Ocupação na verdade
extravagante, mas muito digna de tais divindades!
Ora perguntemos aos Iluminados,
que faça, e em que se ocupe a nosso respeito esse deus, que eles
conhecem tão grande, e tão perfeito? Dita algumas Leis? Promete algum
bem a quem o honra, e lhe obedece? Ameaça algum castigo a quem lhe for
refractário, e rebelde? Não me digam que a mesma dignidade divina é Lei
para todos, e que a razão, e a consciência do homem remunera o homem com
a sua aprovação, e o castiga com seus remorsos. Vãos subterfúgios! Não,
meus Senhores, não é isto o que eu aqui pergunto. Pergunto-vos se o
vosso deus vos intime expressamente algum preceito, e vos prometa algum
prémio, que possa galardoar vossas acções virtuosas? "Ah!", exclamais vós enfaticamente,
"não convêm aos Supremo Ente abaixar tanto os olhos a coisas tão vis,
como são as acções humanas! Porventura é coisa própria de um grande
Monarca atender aos movimentos de um pequeno insecto? É coisa indigna de
Deus o homem, e quanto diz respeito, e se refere ao homem." Entendo
o que se me quer dizer: Deus, conforme a opinião de Epicuro, nem tem,
nem emprega uma providência individual. É grande, é eterno, mas tão
ocioso a respeito do homem, como os deuses ridículos de Epicuro; com
esta diferença, que os deuses de Epicuro nada fazem por motivo de sua
ociosidade, o vosso nada faz, por motivo de sua grandeza; mas em nada
fazerem são perfeitamente semelhantes. E, se tal é a Divindade dos Iluminados, qual será a Religião? Porventura uma coisa grave, e séria que os obrigue, e que os interesse? Nada disto. Se desta iluminada
Religião se desse ao vulgo uma ideia clara, diria o vulgo que era uma
coisa que o não fazia, nem quente, nem frio, porque a Religião é toda
para Deus, e de Deus tira, e tem toda a sua força, e autoridade. Ora, se
deus anda faz, e nada exige de mim, que tem comigo, ou que tenho eu com
a Religião? "Não", diz Epicuro, e com ele os Iluminados, "uma
coisa que por si é excelente obriga à veneração. E que coisa mais
excelente que Deus? Ora toda a Religião consiste na veneração, e no
culto que lhe é inseparável." Mas tudo isto é um equívoco, e um miserável equívoco. Este dito dos Iluminados está bem na boca de quem tem de Deus uma bem diferente ideia; porém a que se reduz esta veneração, e este culto nos Iluminados?
A uma estéril, ainda que necessária admiração, ou quanto muito a uma
homenagem inteiramente arbitrária, qual se consagra à grande alma de
Sócrates, ou de Epaminondas; homenagem tão inútil a quem a consagra,
como inocente a quem a nega; porque, torno a dizer, de quem se exige
este culto? Que proveito, ou que dano causa a quem o dá, ou a quem o
nega? Respondam, meus Senhores; eu honro esta divina excelência,
resulta-me disto algum bem? Nenhum. Logo, eu a venero, e acato em vão. E
se eu a ofendo, resulta-me disto algum mal? Nem um. Logo impunemente a
ofendo. Deste princípio, tão visto pelos factos no Iluminismo, tirou Tertúliano esta justa, e assizada consequência: Negat Deum imendum, itaque libera sunt illis omnia, et soluta. Oh! Que condescendente Divindade! Oh! Que Religião tão cómoda!
Tornemos
a considerar a coisa de seu princípio: uma humanidade, que é toda
material, e que está fora do alcance de todos os tiros do Céu; uma
Divindade, que por cómodo seu, ou por decoro o não dá o mais pequeno
sinal de vida; que, se te volveres a ela, não te olha, se lhe pedires
alguma coisa, não te escuta, se a adorares, não to agradece, se a
ofenderes, não se recente; que, se fores todo proibida de, não te
premeia; se fores doto iniquidade, não se ofende, nem te castiga; tão
indiferente para tudo, como seria uma estátua; venerar esta divindade, e
venerá-la a teu sabor, e de tal maneira, que a podes francamente
ofender sem lei, sem dependência, sem utilidade, sem esperança, sem
temor: e é esta a coisa mais importante, mais tremenda, mais augusta, e
sacrosanta que tem havido, e há entre os homens, a Religião? Mas
digam-me os Iluminados, é isto ilusão, ou Religião? Ela nem vos
obriga, nem vos toca, é como senão fosse, e para o dizer melhor, é um
equivalente da irreligião. Seja juiz aquele mesmo que procurou lavar-se
da mancha de impiedade, o Epicureo Lucrécio Poeta, sempre em contradição
consigo mesmo, porém mais sincero que um Iluminado. Louva
encarecidamente o seu Epicuro; e porque? Porque ousou primeiro levanta
os olhos contra o Céu:
Primus Graius homemo mortales tolere contra
Est occulos ausus, etc.
O que em sua linguagem nada mais quer dizer, que ser destruidor da Religião; e Cícero com filosófica gravidade, e fraqueza, melhor nos aclarou este mistério: "Xerxes com os braços da sua soldadesca, (diz Cícero, comparando o Conquistador com o Filósofo), Xerxes com os braços da sua soldadesca, e Epicuro com as máquinas da sua doutrina, conspiram para a ruína da Religião; só com esta diferença, Xerxes com a cara descoberta, atacou o corpo da Religião, isto é, o culto exterior, e Epicuro, com o rebuço da Filosofia, atacou o espírito da mesma Religião, destruindo seus princípios, tirando todo o freio à humanidade, e tornando ociosa e improvida a Divindade."
Primus Graius homemo mortales tolere contra
Est occulos ausus, etc.
O que em sua linguagem nada mais quer dizer, que ser destruidor da Religião; e Cícero com filosófica gravidade, e fraqueza, melhor nos aclarou este mistério: "Xerxes com os braços da sua soldadesca, (diz Cícero, comparando o Conquistador com o Filósofo), Xerxes com os braços da sua soldadesca, e Epicuro com as máquinas da sua doutrina, conspiram para a ruína da Religião; só com esta diferença, Xerxes com a cara descoberta, atacou o corpo da Religião, isto é, o culto exterior, e Epicuro, com o rebuço da Filosofia, atacou o espírito da mesma Religião, destruindo seus princípios, tirando todo o freio à humanidade, e tornando ociosa e improvida a Divindade."
E vossas máquinas, ó Iluminados,
não são as mesmas de que se serviu Epicuro? Os vossos princípios não
são os mesmos? mas entre vós, e Epicuro há uma estranha, e notável
diferença. Epicuro deixou ao menos intactos, e sustentou, o culto
externo, os Templos, os altares, adorações, oblações, sacrifícios....
Vós, pelo contrário, unicamente vos limitais ao culto interior, isto é,
um culto de que Deus não cura, e que nada importa ao homem. E à vista
disto, que nome vos darei? Chamar-vos-hei Epicuros, ou Xerxes? Sereis
uma, e outra coisa, já que com vossos dogmas, e princípios haveis
destruído, ou atacado o corpo, e o espírito da Religião; e se persistis
em querer o nome da Religião, seja assim, mas confessai que a vossa
Religião é a coisa mais vã que tem o mundo: confessai que uma semelhante
Religião se acomodasse maravilhosamente com a impiedade, e que nada
mais é, que uma espécie de Ateísmo, e Ateísmo dissimulado, ou mitigado;
faz ressoar altamente o santo nome de Deus, mas é Ateísmo; porque o
Deus, cujo nome proferis, é para vós como se não fosse, porque de nada
cura, e nada estende a sua providência: e quão pequena é a diferença
entre o fazer nada, e o não ser! E tal é a diferença que passa entre o
vosso Deísmo e o Ateísmo; porque tem, e goza de todos os seus
privilégios. Ou não exista um Deus, ou nada faça, é para vós o mesmo,
igual liberdade, e igual soltura: Negat Deum imendum, libera sunt omnia, et soluta:
esta era a intenção daqueles ímpios de que vos disse falara a Escritura
- Dissolver-se-há, acabará nossa alma como se dissipa o fumo, e o Ente
Supremo não atenderá por isto: Spiritus diffundetur; non videbit Dominus: e tão seguros como os Ateus que diziam: "Non est Deus. E atrevem-se os Pedreiros-livres a dizer: "Somo religiosos, somos até Cristãos". E gritam estrepidosamente: "Impostura, inveja, e fanatismo são os nossos perseguidores."
Assim bradam, se se lhes diz que seus abominandos princípios são
anti-Cristãos. Ensinou acaso Jesus Cristo o que eles ensinam? É
porventura o Evangelho conforme à sua doutrina? Creio que os Iluminadíssimos
Pedreiros são do jaez, e estôfa daqueles de quem fala Santo Agostinho,
que se envergonhavam de se chamarem Cristãos, para lhe não chamarem
Platónicos, e Zenonitas: Cujus superbia nominis erubescunt esse Christiani.
Neste afectado Cristianismo, nem Zeno, nem Platão descobririam seus
mais ligeiros liniamentos, e feições. A Divindade, que estes Filósofos
criam, não existia tão descuidada das coisas humanas, nem idearam jamais
a humanidade a um mesmo tempo tão livre, e tão abjecta. Como podem ser
Cristãos os que não conservam, nem os primeiros elementos da Religião
natural, e filosófica? Querem dizer-se Cristãos para desfigurarem o
Cristianismo à sombra deste nome, e cravarem-lhe mais profundamente o
punhal que escondem.
(continuação, III cap.)
(continuação, III cap.)
Sem comentários:
Enviar um comentário