VI
"Não é apócrifo o MS. (assim responde o cronista Fr. Manuel de Figueiredo ao sábio D. Luís Salazar) por chamar conde a D. Raimundo, e dizer que o seu condado era além do rio Ararim. O Autor do MS. não disse que D. Raimundo foi conde soberano de Borgonha, que era só o caso em que fazia força o argumento, por lhe preferirem seus irmãos na ordem de nascer". Daqui se vê que apenas for mostrado, que o Conde D. Raimundo foi conde soberano da alta Borgonha, fará toda a força o argumento de Salazar, e ficará sendo insubsistente esse condado de Amous que se dá na Arte de Verificar as Datas ao Conde D. Raimundo. Ora se este conde nos documentos do tempo do seu governo se qualifica a si próprio desta maneira: Ego Raymundus Providentia Divina Burgundiae Comes, e fala de seu pai o Conde Guilherme, e dos condes Guilherme e Raimundo seus predecessores; e, o que é ainda mais para notar, se o colector Perard achou numa escritura o selo pendente deste conde, em que se via um cavaleiro com a lança enristada, e com estas letras em roda Sigillum Raymundi Comitis Burgundiae, (1) como é possível, que este Raimundo, irmão de Hugo, terceiro de nome, e Arcebispo de Besançon, seja considerado abaixo de seu irmão Estêvão, e excluído da série dos condes de Borgonha, para se lhe assinar um pequeno e obscuro condado trans Ararim? Pois que direi desse Dux Burgundiorum, (aqui entre umas brevíssimas considerações geográficas) pois que direi desse Dux Burgundiorum, quando o título verdadeiro do duque Roberto era Dux et rector inferioris Burgundiae, visto que, ao passo que Roberto governava esta parte da Borgonha, havia na outra um soberano, que sse intitulava Burgundiorum rez (2)? E que direi à evasiva do cronista Figueiredo, que para se livrar do argumento ex Bisantinis partibus nos dá a cidade de Besançon por metrópole das suas Borgonhas, no que já se estribára para o mesmo intento o Pe. António Pereira de Figueiredo (3)? Um dos primeiros cuidados dos exploradores destas antiguidades deve ser o terem abertos, e mui justamente; quero dizer, a cronologia e a geografia; e para que esta nos desse auxílio na questão presente convinha examinar primeiro, qual era no século XI a divisão das Borgonhas, e se Besançon ficava no mesmo reino em que a cidade de Dijon; e achado que fosse estar Besançon no Reino de Borgonha, ou de Arles, e Dijon numa parte do Reino de França, ambos separados, e obedecendo a diversos soberanos, ficaríamos certos, de que o Bisantinis partibus só forçadamente se pode arrastar para Dijon, que muito embora diste de Besançon um só dia de jornada, porém ficava (e este é o ponto essencial) em reino diverso.
VII
Mas tudo isto, conforme os apaixonados do MS. do mosteiro de Fleury, se deve perdoar a um monge coetâneo, que fazendo talvez meramente para seu uso os apontamento da história do seu tempo, não curava de miudezas genealógicas e cronológicas, nem presumia, que os seus escritos houvessem de ser o farol dos sábios, daí a quatrocentos ou quinhentos anos; porém o caso é, que tratando-se de um ponto genealógico de maior importância não basta o ser coetâneo, é preciso terem-se averiguado escrupulosamente as linhagens das famílias, e que o autor do MS. de Fleury, por se enunciar tão obscuramente, como já disse, mostrou desde logo, faltarem-lhe as outras qualidades essenciais de um historiador, e não merece os créditos de juiz infalível em tais matérias: eu o provarei por dois factos, um antigo, outro moderno. É grande entre nós a autoridade do livro de Noa, que não foi escrito em distância de muitos anos depois do falecimento do primeiro rei de Portugal: e que diz ele da genealogia da consorte do Senhor D. Afonso Henriques?... Que era filha do Conde D. Manrique de Lara; e o mais é, que o insigne genealógico D. Pedro, Conde de Barcelos, abraçou esta opinião, que só foi desmentida quando apareceram os monumentos coevos, que lhe asseguraram outra genealogia mui diversa. Não é menos curioso o facto moderno. Imprime-se em Lisboa uma colecção das Árvores de Costado das Famílias Titulares deste Reino; e ao fazer-se menção da casa titular dos Marqueses de Borba, introduzem-lhe como actual sucessor desta (a muitos respeitos) grande casa um Fernando de Sousa Coutinho, herdeiro que nunca existiu. (1) Ora o colector é contemporâneo, pois a obra saiu impressa em 1829; e dado o caso que ele não chegue a emendar as por ele próprio chamadas consideráveis inexactidões (2) da primeira parte da sua obra, como se defenderão os vindouros de terem como certa e indubitável esta sucessão masculina? se isto suceder a um pobre monge desviado do século, e entregue por estado a outro género de considerações bem diferentes das que pede uma questão genealógica?
VIII
Tão convencido estava o primeiro divulgador da opinião, que tenho combatido, e espero desalojar, pelo menos, das suas mais fortes oposições, que afim de tornar mais crível, ou verosímil o testemunho do monge de Fleury, amontoa provas sobre provas; e apesar de que estas já foram examinadas, e refutadas tão larga, como victoriosamente pelo sábio já citado, cumpre-me todavia fazer os meus leitores como árbitros do peso, que elas merecem. Já combati as provas tiradas do frívolo argumento de que, vista a pouca distância, que há de Besançon a Dijon era como indiferente para o caso o haver nascido em Besançon; porém as outras devem ter-se em conta de mui superiores no género de fraqueza e inverosimilhança. Deixemos falar o próprio Godofredo. Em terceiro lugar (diz ele) Laonico Chalconcondylas (que vivia pelos anos de 1460) refere nomeadamente no livro 5º da sua história (porque assim o leu em algum historiador) que os reis de Portugal descenderam da Casa Real de França: Rex Portugalliae ortus est ex familia Galliae regum. Se o douto Salazar e Castro desfez tudo isto, como de um sopro, fazendo ver a distância, que vai do ano 1060, em que dizem ter nascido o Conde D. Henrique, até 1460, eu seguirei outro caminho; e parecendo reforçar o argumento dos meus contrários, daí mesmo tirei forças para mais fácil e seguramente o destruir. Na passagem de Chalconcondylas trata-se das alianças matrimoniais dos reis castelhanos com as filhas, e próximas parentes dos reis de Portugal; e destes, que floresciam no séc. XV, a saber, do Senhor D. Duarte, ou do Senhor D. Afonso V, é que o historiador grego afirma especialmente, e no singular, que descendem os reis de França; e tão longe estava o autor de subir até à pretensa origem dos nossos reis, que na edição parisiense de 1650 lhe pôs o editor à margem, como em adição às palavras Galliac Regum, a palavra Lutzburgica, (1) dando a entender, que a Casa de Luxemburgo, e não a de Bourbom, era verdadeiramente a que dera origem aos nossos reis; porém eu consinto, que ás sobreditas palavras se dê toda a extensão e força, de que elas forem susceptíveis; e confesso aos meus leitores, que uma história coeva do nosso Conde D. Henrique diz expressamente, que este conde venia de sangre real de Francia; mas quem dirá que para vir da casa real de França era condição sine qua, o ser bisneto de um rei de França? Para que ele viesse, ou descendesse da casa real de França era de sobejo, que ele pertencesse à casa de Borgonha Condado, ou à casa de Lorena; e por isso não triunfa, nem triunfará jamais a opinião, que a todo o custo o deseja manter na casa de Borgonha Ducado, pois quando assim fosse é bem natural que a um bisneto, sobrinho e primo do reis de França coubesse outra melhor designação e qualificação, e que os historiadores se explicassem de outra maneira, isto é, dizendo francamente, que este príncipe era da Família Real de França. A quarta prova é tal, que o meu silêncio é mais uma graça especialíssima, quase faz ao autor, do que um formal desprezo; e sem que eu demore os meus leitores na quinta prova deduzida de que o nome Henrique era mais usual em França, do que em outra qualquer parte das Gálias 82), ou na sexta não menos extravagante, do que as armas dos príncipes de Portugal antes do Senhor D. João I eram as flores de liz, não os privarei de examinarem a sétima, que vem a ser: "Em sétimo lugar os principies e os reis, que vêm dominar em país estranho, costumam de bom grado servir-se, e adiantar com preferência os seus naturais e do país da sua origem, mais que os do país em que dominam; e por isso nós achámos que o próprio Conde D. Henrique, e seu filho ElRei D. Afonso empregaram em Portugal, e deram comandos de tropas a um Giraldo, sem pavor, que foi causa de se tomar Évora aos mouros, e a um D. Egas Moniz, ou Hugo de Monains, que foi aio de sobredito Rei D. Afonso; assim como deram o Arcebispado de Braga a um Giraldo, e o Bispado de Lisboa aum Gilberto, que são nomes franceses muito usados então, e depois no Ducado de Borgonha (3)." É somente no Ducado de Borgonha seriam usados estes nomes? Não haveria um só inglês, que se chamasse Gilberto. Oh! se havia, e por sinal que foi inglês o primeiro Bispo de Lisboa D. Gilberto. Embora D. Giraldo nascesse em França, porém na sua eleição para Arcebispo de Braga influiu mais quem o mandou vir de França, isto é, o Arcebispo de Toledo D. Bernardo, que o próprio Conde D. Henrique; porém ferve-me todo o sangue ao ver, que há escritor tão audaz, e pouco reflectido, que se abalança a querer esbulhar-nos de um dos nossos mais ilustres e famigerados conterrâneos, ou de Egas Moniz. Este modelo raríssimo de lealdade portuguesa era português, e natural da província do Minho. Descendia sim de D. Muninho Viegas, o gasco, nome este conservado nos nossos mais antigos Nobiliários, e que parece mostrar, que este cavalheiro nascera na Gasconha; mas que tem esta província, então ducado, e que por largos anos fez parte dos domínios da Coroa da Inglaterra, com o Ducado de Borgonha? Até geograficamente consideradas são bem diversas. mas para que demoro eu os meus leitores, pode ser já inquietos, e desejosos de que eu proponha o meu sentir? Se os demoro, é sempre com os olhos fitos na utilidade da nossa causa, pois é de interesse comum, que as nossas antiguidades se coloquem outra vez no lugar, que lhes pertence, e que tão indevidamente lhes foi roubado.
(continuação, III parte)
(continuação, III parte)
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