23/03/14

SERMÃO SOBRE O ESPÍRITO DA SEITA DOMINANTE NO Séc. XIX (II)

(continuação da I parte)

DISCURSO

Persuado-me que vos devo anunciar primeiro que tudo, que uma das propriedades, ou a principal propriedade do espírito de partido é não escolher deliberadamente, e com pleno conhecimento de causa aquele partido que se abraça, segue, e defende: esta adopção sempre se faz com os olhos tapados, ou por motivos que não têm relação alguma com o mérito, ou o demérito dos dois partidos. Quanto é contrário à razão, e ao entendimento humano um semelhante procedimento, vós mesmos o podeis conhecer, e compreender. A necessidade de escolher é não só frequente, mas necessária, e indispensável no homem, é uma necessidade de todos os dias, e de todas as horas: qualquer motivo ou de utilidade, ou de prazer nos obriga sempre, e efectivamente a fazer escolha ainda das coisas mais indiferentes, e pequenas, a tomarmos mais este do que aquele caminho, mais este do que aquele sustento, mais este do que aquele vestido; e se nos importa escolher bem para conservar a saúde do corpo, muito mais nos importa escolher bem para conservar a saúde da alma. mas isto nem é costume, nem é lei do espírito de partido: a sua lei, e a sua fundamental constituição é sempre o contrário, e o avesso de tudo isto. Somente o acaso, sem se consultar a razão, obriga o homem a inclinar-se a uma das duas partes, e a abraçá-la com constância, e pertinácia, (e pois eu falo a um século, que tanto mostra prezar as decisões da razão natural, ouçam as admiráveis expressões de um Gentio eloquente, qual era Cicero: De rebus incognitis judicant, et ad quamcumque sunt disciplinam quasi tempestate delati ad eam tamquam ad saxum adhaerescunt. Isto os conduz a extremos, não só indignos do homem Cristão mas do homem, que em tudo se diz, e em tudo quer ser conhecido como Filósofo. Dividem-se os doutos de uma Cidade em duas opiniões: ele se decide por uma, não porque entenda o que ela em si contem, nem a doutrina que encerra, nem as razões em que se funda, mas só porque é opinião de algum seu aderente, ou porque é a primeira de que ouviu falar, e foi imbuído, ou porque levado de um certo material instincto, se persuadiu que era a melhor, e a mais acertada. O mesmo digo de um acontecimento remoto, que de uns é afirmado, e de outros é negado, e controvertido; se o partido afirmativo o ganha, já para ele não é opinião, mas verdadeira ciência, ainda que as suas provas não sejam daquelas, que o público exige, isto é, capazes de desterrar do entendimento toda a sombra de dúvida. A maior desventura é, que uma vez que ele se haja declarado por um partido, ou tomado a afirmativa, ou a negativa, já mais dá lugar a exame, ou àquela indagação da verdade, que é indispensável para uma, ou outra coisa. Fica para sempre desprezada esta indagação, e em seu lugar aparece, como sempre vemos, uma animosidade intolerável, um discorrer frenético sobre o mesmo objecto, por mais que salte aos olhos a evidência do contrário. Se aparece um escrito, é fraudulento, como observamos em certos periódicos efémeros, e suprimidos, que apareceram entre nós; se neles vinha alguma alegação, era sempre truncada, e infiel, e só constante vemos num deles ainda a furto introduzido, como o mais incendiário de todos os papeis, uma fadiga, um afã quase perpétuo de língua para engrossar o tenebroso partido da revolução, e do caos. Qualquer dos adeptos deste monstro, que dá latido ao longe, foge como do Demónio de todos aqueles, que com a razão, e com a verdade o poderiam tirar dos braços da ilusão, e do engano. E quando se não pode esquivar de quem lhe rasga a funesta venda que lhe tapa os olhos, ouve as suas mais convincentes provas com torvo semblante, com riso amargo, e com todo o ar, e gesto de enjoo, e do fastio; e toda a sua reposta será uma rija trovoada de palavras, e horrenda tempestade de contumélias. Nenhum de vós se equivoca com este retrato; e eu não me admiro tanto da pertinácia com que um membro da confraria tenebrosa resiste à evidência das razões, quando da dureza com que persiste aferrado ao partido assolador, vendo, e sentindo em si mesmo as desgraças, os extermínios, as infâmias, que ele voluntariamente atrai sobre sua cabeça.

D. Pedro, que veio a "liderar" a ala
liberal contra a Monarquia Portuguesa
Estes que tendes ouvido, são os efeitos, e as obras do espírito de partido, que inficionam por certo, e endurecem a vontade; mas eu devo agora só falar-vos da infecção que trazem ao entendimento. Este contágio, ou contaminação o torna, a despeito da evidência, pertinazmente crédulo nas coisas, que são favoráveis a seu modo de sentir, e de entender, e pertinazmente incrédulos nas razões contrárias, ou opostas aos seus funestos princípios. Dizei a um destes malvados,que a revolução trouxe todos os males às presentes gerações; mostrai-lhe para provas desta verdade a Europa em cadeias, os tronos aviltados, ou aniquilados, a liberdade extinta, as leis escarnecidas; mostrai-lhe a terra húmida de sangue, e lágrimas de tantos miseráveis; monstrai-lhe o pranto de tantas viúvas, o desamparo de tantos órfãos, e consternação de tantos povos, o abatimento, e miséria de tantas Nações, o desprezo, e profanação de todos os direitos, a dispersão de tantas famílias; mostrai-lhes a Religião perseguida, os Templos desacatados, a moral vilipendiada, o Evangelho em problema na boca dos ímpios: olhar-vos-há com desprezo, e com um ultraje sorriso, a que chama a expressão da sua compaixão pela vossa imbecilidade; e se se dignar falar-vos, e responder-vos, dir-vos-há ou que sois atrevidos, e temerários (como a mim já se me disse) em querer penetrar os profundos arcanos de um monstro imperante, ou que tudo isso é preciso para o plano geral da causa continental, e para os grandes preliminares da paz marítima. Tanto cega, e tiraniza o espírito de partido. Falai a este mesmo homem em futuros brilhantes, e canais abertos, em Poetas ressuscitados, vereis como se lhe banha o impudente, ou estúpido rosto de riso consolador, clamando, que estes três grandes, e importantíssimo objectos realizados formariam a glória, e a felicidade deste Reino.

Ora saindo deste esfera dos acontecimento, que tanto nos atormentaram na ordem civil, para a esfera da Religião, a experiência de todos os séculos Cristãos me obriga a dizer, que uma alma invadida do espírito de partido, é de todas as mais disposta a rebelar-se, e a separar-se da crença Católica, porque não cede nem à autoridade, nem aos milagres. Ainda que vejam, diz Jesus Cristo, ressuscitar um morto, não acreditarão; e como se um verdadeiro Demónio a possuíra, tanto mais se obstina em sua cegueira, e propósitos, quanto é mais clara, e brilhante a luz da verdade oposta, que ela considera como inimiga.

(continuação, III parte)

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