11/11/14

FR. MIGUEL CONTREIRAS (II)

(continuação da I parte)

Cresciam as necessidades da pobreza ao par da diligência e caridade de Fr. Miguel Contreiras; mas nem as dificuldades que o cercavam, nem a multiplicidade de coisas a que tinha de atender no exercício de tão santos deveres, fizeram soçobrava o ânimo do venerando sacerdote; já então muitas pessoas caridosas o acompanhavam nos seus generosos esforços em prol dos desvalidos: cumpria, porém, centralizar esses esforços, organizar para assim dizer a beneficência, de sorte que os socorros se tornassem mais proficuos, e mais regular a administração do património dos necessitados. Estas circunstâncias obrigaram de certo Fr. Miguel a pensar nos meios de remediar os transtornos inevitáveis provenientes da falta de uma organização conveniente; nem descansou sem ter levado ao cabo o seu intento, criando em agosto de 1498, sob os auspícios da Rainha D. Leonor, a Irmandade da Misericórdia de Lisboa, modelada, em parte, pela que existia em Florença desde 1350.

A Misericórdia de Lisboa, a primeira de Portugal e das Hespanhas, é um glorioso monumento da piedade esclarecida de nossos maiores, e o testemunho mais incontrastável de que o coração desses guerreiros robustos que arvorearam o estandarte da cruz nas muralhas de Ceuta e Tanger, que depois dobraram o cabo das Tormentas, abrindo à civilização uma nova e ampla estrada, que finalmente eternizaram o seu nome e o nome português, por feitos do incrível audácia, nos mares e terras do oriente, que o coração desses homens, que Voltaire apelidou de ilustres piratas, não era insensível às lágrimas do pobre sem amparo, da viúva desvalida, da órfã abandonada, do enfermo tolhido de dores.

[Interrupção: depois do parágrafo que segue, os "eloquentíssimos trechos", são linhas com forte traço liberal. Veja-se como havia "católicos liberais" como a "monarquia liberal" de então se podia dizer católica sendo ao mesmo tempo o contrário. No mesmo sítio, vejam-se também as expressões que nos eram estranhas, e que hoje são tão as "apropriadas". Facilmente se sai da caridade para a filantropia.]

Se a Misericórdia de Lisboa, se as demais Misericórdias espalhadas por toda a monarquia, não prestam hoje à humanidade os serviços que podiam e deviam prestar-lhe, atribui isso aos homens e não à instituição, que a não podia haver, atendendo à época em que foi criada, nem mais providente, nem mais prestadia, nem mais repassada do verdadeiro espírito do cristianismo. Lede os seguintes eloquentíssimos trechos do relatório que precede o decreto de 26 de novembro de 1851, que modificou a legislação pela qual se regulavam os estabelecimentos da caridade em Lisboa desde 1833, e dizei-nos depois se não concordais connosco em que a instituição das Misericórdias, a obra do singelo frade da Trindade, foi a mais gloriosa herança que o século XV legou aos vindouros:

"Há séculos já (diz o relatório) que a primitiva instituição do hospital, da gafaria, e da albergaria dos tempos feudais fôra aperfeiçoada pela civilização cristã progressivamente ilustrada, e a sinal se formulará na mais completa de todas as instituições caritativas - a Misericórdia portuguesa - irmandade cujo compromisso era um modelo, e cuja popularidade em breve tempo a faz espalhar desde a capital a todas as províncias do Reino.
Forte pela protecção real, animada pelo favor das leis, rica pelos legados de milhares de portugueses, que de todas as partes do mundo lhe acudiam, essa admirável e veneranda confraria acompanhou também depois a espada conquistadora, e o astrolábio descobridor da Lusitânia aos mais remotos confins da terra; levando com a palavra do Evangelho as obras que não desmentiam da palavra, e que deixaram, ainda nas mesmas conquistas em que já o domínio português se perdeu, a memória indelével da nossa piedade e da nossa misericórdia.
Nenhuma instituição social fez ainda, nem fará jamais tanto para remediar as inevitáveis desigualdades da sorte, e para fazer irmãos e iguais diante de Deus e do Evangelho a todos os homens. Aqui não é a administração pública ou a municipal que, pelos princípios da economia política cai em auxílio dos que não possuem, do órfão e do desvalido, para que o estado tire maiores vantagens, para que o número de contribuintes se aumente, não é a polícia que manda velar nos indigentes, curar os enfermos e enterrar os mortos.
O pensamento português é todo outro, todo cristão, todo evangélico; são os irmãos mais afortunados que se juntam em redor do altar de Deus das misericórdias para ir em socorro de seus irmãos infelizes; é o rico dando o braço ao pobre para o amparar; é o proprietário repartindo com o proletário; e o nobre, o grande, o dignitário do estado lavando os pés ao mendigo plebeu, curando-lhe as chagas, deitando-o em seu leito; é o pai de família aquinhoando o pão dos seus próprios filhos com o enjeitado que não tem pai, adoptado o órfão para o educar, levando o alimento e os rendimentos às casas da miséria envergonhada, que não ousa mendigar, fornecendo trabalho ao operário sem recursos, acompanhando piedosamente o próprio criminoso até aos tribunais para o defender, aos degraus do Trono para suplicar mercê por ele, ainda depois de convencido e condenado, não o desamparando em fim até às escadas do patíbulo para o confortar, com a imagem do Redentor, com a promessa do eterno perdão, no momento supremo, em que a justiça dos homens não pode já apiedar-se."

Não se pode dizer mais nem melhor da piedosa fundação do humilde frade.

Outro estabelecimento de beneficência da maior importância, que lhe deve incontestavelmente a existência, que lhe deveu incontestavelmente a existência, recebendo dele os mais eficazes serviços, recomenda à veneração das posterioridade a memória de Fr. Miguel Contreiras.

E o utilíssimo hospital das Caldas da Rainha, que ainda hoje felizmente existe, mandado edificar pela virtuosa rainha a senhora D. Leonor por conselho e exortações do seu ilustre confessor.

O magnífico templo da Misericórdia, que o terrível terremoto de 1755 sumiu nas ruínas, e que era situado junto da Ribeira Velha, foi, a seu rogos, começado por ElRei D. Manuel, concluindo-o D. João III no ano de 1534; a grandiosa fabrica do hospital do Rossio, começado por D. João II a 15 de maio de 1492, no qual mandará incorporar todos os hospitais dispersos pela cidade, estava por concluir. D. Manuel, solicitado instantemente por Fr. Miguel Contreiras, cuja influência era imensa assim na Côrte como na cidade, ordenou que se rematasse a obra com a grandeza própria do generoso ânimo daquele monarca.

Enquanto a ardente caridade do venerando sacerdote amparava os desvalidos, criando os piedosos institutos que conhecemos e enumeramos, a sua palavra, e sem dúvida o exemplo de tão esplêndidas virtudes, traria ao seio da Igreja cristã muitos dos que haviam nascido e perseveravam na religião de Moisés, e que eram então uma parte considerável, e porventura a mais industriosa e opulenta da população de Lisboa.

Chegou o mês de janeiro de 1505, e o que não puderam trabalhos prosseguidos com tão incansável zelo, acabaram os anos e as enfermidades suas inseparáveis companheiras. A 29 desse mesmo mês a morte do confessor da Rainha a Senhora D. Leonor, o instituidor da Misericórdia de Lisboa,o amigo e o protector dos abandonados da fortuna, foi anunciada pela cidade e geralmente considerada e sentida como uma calamidade pública. E foi de feito; que homens como Fr. Miguel Contreiras não aparecem com muita frequência no suceder dos tempos.

Sepultaram-no na capela-mor da igreja da Trindade, em sepultura rasa, sem letra ou epitáfio. O convento da Trindade, pela extinção das ordens religiosas [expulsão das Ordens Religiosas "decretada" por D. Pedro "IV"], foi vendido em hasta pública, e provavelmente as cinzas de Fr. Miguel acham-se confundidas no alicerce de alguma edificação burguesa!...

Logo depois da sua morte, ordenou-se que o seu retrato fosse desenhado nas bandeiras da Misericórdia; e por acórdão de 15 de setembro de 1576, sendo provedor Rui Lourenço de Távora, que nesse ano serviu de Vice-Rei da Índia, determinou-se que se pintasse com o hábito da sua ordem, e com as letras F. M. I. (Fr. Miguel Instituidor). Esta louvável prática foi ampliada a todo o Reino e conquistas por alvará de Filipe "III", passado em Lisboa a 26 de abril de 1627." (P Panorama: semanário de literatura e instrução. 1853)

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